©steve bronstein
 
 
 
 
 
 
 
                                                                     
 
 
 

PRELÚDIO

 

Ano 2007. Uma jovem espera o ônibus no ponto. Está sentada em um banco. Nas mãos, um aparelho de telefone celular. Não conversa com pessoa alguma, apenas assiste a um videoclipe. Dispersa-se.

50 anos atrás. Uma jovem espera o ônibus no ponto. Está sentada em um banco. Nas mãos, um livro. Concentra-se.

 

"À loucura, ao ritmo frenético da produção, corresponde um novo homem, absolutamente dissociado, racional, isolado do ambiente social, frio, com uma tenacidade cega e preocupante e que busca permanentemente recompor o contato social, mas por meios ilusórios ou literalmente delirantes (máquinas, vídeos, jogos eletrônicos, consumo, linguagem dissociada etc.)". A Produção Social da Loucura, Ciro Marcondes Filho

 

Como escreveu José Ortega y Gasset, em A Rebelião das Massas, "não é que o homem-massa seja idiota. Ao contrário, o atual é mais rápido, tem mais capacidade intelectiva que o de qualquer outra época. Mas essa capacidade não lhe serve para nada; a rigor, a vaga sensação de possuí-la só serve para ele fechar-se ainda mais em si, e não para usá-la".

A jovem contemporânea do início do texto possui todos os instrumentos tecnológicos, a começar pela sua mente, até extensões como telefone celular, computador com internet, etc., mas o uso que ela faz desses instrumentos a isola do mundo e de si mesma, ou, para não ser tão drástico, está muito aquém do que poderia ser. A outra jovem, aquela com um livro nas mãos, mesmo não dispondo dos inúmeros recursos tecnológicos dos nossos dias, comunica-se de forma mais eficaz com o mundo e não está na situação de isolamento de si mesmo, porque o seu imaginário flui e engendra idéias e conexões, ao invés de se apagar em instantâneos sensoriais vazios.

 

 

A SOCIEDADE HIPERMÍDIA

 

O bombardeio de informações e a sofisticação tecnológica somados a um processo de massificação e de reprodução de conteúdos de valor relativizado e submetidos a uma estrutura de poder que inverte permanentemente todo e qualquer sentido, através de um discurso que desapropria o signo, esvaziando-o de significação e colocando no lugar simulacros, inibiram o homem contemporâneo de modo a provocar nele uma retração imaginativa, daí, talvez, a inibição criativa atual.

O poder da imagem e o esvaziamento do conteúdo provocaram um estado encantatório que transformou a televisão, principalmente, em "instrumento de opressão simbólica", como escreveu Pierre Bourdieu em seu livro Sobre a Televisão. A televisão se tornou, assim, o lugar da verdade, mas esta verdade é simulacro. É o senso-comum, os prejulgamentos e as interpretações espontâneas e sem profundidade. É o convite à dramatização do real, ao espetáculo.

As revoluções simbólicas que atingem as estruturas mentais e que mudam nosso modo de ver e de pensar correm o risco de não ocorrer mais, porque tais revoluções representam o novo e nós vivemos hoje sob o efeito anestésico e alienante da novidade. Vivemos sob um encantamento que ora nos leva para um lado (a provocar uma emoção), ora para outro lado (a provocar outra emoção), porque é muito mais fácil lidar com emoções, com o desejo profundo das pessoas, do que com o pensamento. E lidar com emoções, encantar, é o que faz a mídia (basicamente a televisão), através do poder (e uso) da imagem.

A mente humana constrói o virtual. Só agora fomos capazes de criar uma máquina, uma extensão tecnológica, capaz de produzir, como a mente humana, uma (outra) realidade virtual.

 

"(...) os dispositivos hipertextuais constituem de fato uma espécie de objetivação, de exteriorização de virtualização dos processos de leitura". O Que é Virtual?, Pierre Lévy

 

Mas esses dispositivos tecnológicos não passam de extensões de algo já existente na mente humana, como se fossem próteses que potencializam capacidades humanas inerentes desde a origem do sapiens. Tais artifícios são meramente produtos da hipermodernidade na qual vivemos, são novidades tecnológicas que não representam, de modo algum, o novo. A nossa época ainda espera o nascimento dessas novas formas, da arte à ciência, e, fundamentalmente, de um novo paradigma, como resultado — efeito — das mudanças provocadas na estrutura da mente humana potencializada pelas mais sofisticadas extensões tecnológicas atuais.

Não podemos nos colocar no lugar de vítimas. É imprescindível desbloquearmos nossos formatos de codificação. É imprescindível não nos dispersarmos oscilantes e resignadamente submissos. Torna-se obrigatório fazermos uma crítica dialética permanente do mundo e de nós mesmos, se quisermos orbitar a esfera do ser ontológico, em detrimento de um mundo de aparências que prefere a imagem à coisa, um mundo de vacuidade desprovido de uma rede de signos, um mundo descentrado, um mundo da lógica do entretenimento.

 

"(...) coube a Heidegger fazer da verdade o reduto do Ser que o ente procura desvelar, razão de sua condição errante. Em outras palavras, a verdade foi retirada da claridade que iluminaria o percurso do homem, para se alojar nas profundezas do Ser encoberto". Crise e Escritura, Ivo Lucchesi

 

A inquietação é necessária na medida que nos leva a pe(n)sar o sentido da própria existência. Pesar e pensar (sobre), aqui, significam preenchimento, adensamento, valorização da vida. Pe(n)sar a própria angústia resultante desse compromisso existencial é o caminho daquele que não permitiu a diluição da sua subjetividade pelo senso-comum que transforma o indivíduo em massa amorfa. Neste contexto, a frase de Emanuel Kant em Crítica da Faculdade do Juízo é emblemática: "O indignado é esteticamente sublime, em oposição ao desencorajado". Portanto, aqueles que se deixam levar pelo caminho mais fácil, caminho de não-reflexão, por meio do devaneio, anulam aquilo que os torna humanos, espelhos absolutos produtores do real (realidade + imaginário); morte do indivíduo, da subjetividade. O indignado, ao contrário, busca pe(n)sar o sentido, ou, como escreveu Albert Camus, em O Homem Revoltado, ele "não exige a vida, mas as razões da vida".

 

"Em síntese, portanto, o perfil da sociedade de massa vem sendo orientado, com contorno bem visíveis, por uma política de esvaziamento das potencialidades transformadoras do real, a partir de estratégias que, apoiadas na mitificação da técnica, 'fetichizam' o imaginário do receptor, transformando-o em objeto de manipulação". A Cultura do Olhar, Ivo Lucchesi

 

A sedução da imagem imposta pela codificação audiovisual vigente na cultura contemporânea retira de tudo e de todos toda e qualquer significação. Apenas o sensorial importa e basta. Apenas as paixões pueris. Apenas o afeto momentâneo (e por isto instável). Porque "seduzir é morrer como realidade e produzir-se como engano", afirmou Jean Baudrillard em Da Sedução. Em outra ocasião, definiria a sedução como "aquilo que desloca o sentido do discurso e o desvia de sua verdade".

Vivemos, pois, numa época ameaçadora, enganados pelas idéias de luz que não sobrevivem sequer a uma observação mais cuidadosa. O nosso espólio foi a técnica e não o sentido de humanidade. E o presente se nos configura outra vez como trevas.

 

 

LINHAGEM LITERÁRIA

 

O exibido é superfície — Aquele que se encanta com o visual e não enxerga a verdadeira rede de signos que há por trás não saberá que sob "cada imagem revelada existe outra mais fiel à realidade (...) [que] no fundo dessa imagem há outra e mais outra atrás da última e assim por diante, até a verdadeira imagem daquela realidade misteriosa, absoluta, que ninguém jamais verá". Wim Wenders, no filme Além das Nuvens

 

Sobre a distinção no processo de leitura,

 

"Isso implica o domínio ou a incapacidade de rastrear conexões, inferências, ilações e relações, o que finda por estabelecer parâmetros radicalmente desiguais: o domínio de quem promove a 'leitura perversa' e a incapacidade de quem opera a 'leitura ingênua'. O sistema trama para apostar na progressão geométrica da segunda, o que lhe tem assegurado a hegemonia". A Cultura do Olhar, Ivo Lucchesi

 

Apesar de inúmeras inovações, nenhuma modalidade audiovisual acrescentou o novo, a estética do estranhamento deriva assim de uma linhagem literária. Do enigma passível de decifração, característico de uma codificação perversa, temos, por meio do estranhamento, uma situação cuja decifração fica, parcialmente, suspensa, abrindo-se um leque de possibilidades semióticas*

Na contramão desta estética do estranhamento, temos uma estética da reduplicação, que não propõe questionamento e sim expõe apenas a superfície (a imagem pelo que ela é, destituída de qualquer carga de significação** ); hoje hegemônica na nossa cultura, uma cultura do entretenimento que leva a crer que tudo está/é claro, que transforma a banalização e o consumo desmedido em valores compensatórios**, produzindo o apagamento da memória, instituindo a noção de que tudo é perecível, inclusive o próprio eu**.

O consumo da estética hegemônica da reduplicação, potencializada pela grade midiática, leva-nos a um esquecimento de si mesmo. É mais do que a hora de nos perguntarmos se não

 

"estaremos sendo partícipes de um processo de transformação, cujo ponto de chegada culminará na ação autoritária de uma consciência planetária, em torno da qual gravitarão inexpressivas subjetividades dispersas e fragmentárias?". Do Flâneur ao Voyeur: a Crise da(s) Modernidade(s), Ivo Lucchesi

 

Como escreveu Antonio Hohlfeldt, em Cinema e Literatura: Liberdade Ambígua, "o cinema é mais exterior, e neste sentido ele instaura o mundo, enquanto que a literatura, mais interior, recria um mundo. Efetivamente, o cinema omite a experiência subjetiva, porque para ele tudo deve ser objetivado pelo olho da câmera, transformado no olho do espectador (...)". Wim Wenders, em seu filme Além das Nuvens, fala desse processo instaurador e revela que o filme propriamente dito é só uma composição incompleta, que por detrás dele há uma outra realidade não registrada, e que esta realidade a ser des/velada é a manifestação daquele impulso vital originário, o impulso vital capaz de criar o mundo, ou mundos sem fim, daquele silêncio germinal, daquela escuridão primeva, estádios atemporais de onde surgem as vozes, de onde a realidade se acende — uma realidade misteriosa, absoluta, que ninguém jamais verá.

 

"O código verbal destina-se ao pensamento; o visual aciona a percepção. O primeiro é predominantemente racional, o segundo é basicamente sensorial". O Sistema Midiático e o Real, Ivo Lucchesi

 

Se da linguagem audiovisual nos são dadas impressões, da linguagem verbal extraímos uma lógica plena de argumentação, crítica e análise. A primeira está sob o império da percepção; a segunda do pensamento, da razão. Mas quando as duas linguagens se encontram e há uma troca fértil, a travessia-limite que termina por conceber a essência do ato de criação produz as cadeias sígnicas fundamentais que inaugurarão aquilo que chamamos de arte, forçando-nos a procurar identificar e compreender a pluralidade de significações e levando-nos além do ponto de partida. Não apenas a superfície das coisas é ampliada, como se amplia também o nosso horizonte, paradoxalmente numa verticalidade e numa profundidade irrestritas.

 

 

A TRAVESSIA-LIMITE E O JOGO DE ESCONDE-ESCONDE

 

"As relações entre cinema e literatura são uma das tantas que entretecem a objetividade da cultura. Dentro desta relação passam influências de outras zonas da culturalidade: a sociologia, a filosofia, a psicanálise. Há filmes nos quais o elemento sociológico passa à linguagem cinematográfica sem a mediação sequer de um texto literário. É natural que o cinema se inscreva no total desenvolvimento da cultura: ao se problematizarem suas próprias técnicas estéticas, abrem-se novos problemas de expressão. (...) Não se trata de um duelo entre cinema e literatura, mas de uma troca, cujos benefícios mútuos são crescentes". A Máscara e o Enigma, Bella Jozef

 

É através dessas trocas entre cinema e literatura que podemos ver realizadas as mais elaboradas e sofisticadas obras cinematográficas, aquelas que verdadeiramente cumprem o papel de sétima arte, que apresentam uma estética conceitual, uma estética do sentido que provoca o espectador por meio de uma complexa rede de signos que não tem a finalidade de dar todas as respostas, que, antes, prefere colocar muitas perguntas, como em um jogo de esconde-esconde, deixando para o espectador a experiência libertadora de des/cobrir os mais diferentes planos de significação, travessia-limite fundamental da arte.

O curta Jogo de Memória, baseado na obra de Lídia Fagundes Teles, Verão no Aquário, por exemplo, possui qualidade de cinema-arte, ou cinema hermético, no sentido de portar uma mensagem explícita/implícita e de possuir ambivalência lúdica (revelar/esconder). Uma frase do filme traduz muito do exposto aqui: "Que jogo é esse que você vê e eu não vejo?". No contexto da narrativa, esta pergunta está carregada de significação, mas ultrapassa sua fronteira porque também leva o espectador a se perguntar sobre os próprios aspectos conceituais da arte.

Qual a leitura que fazemos daquilo que vemos? Não há limites para a subjetividade criadora de sentido, mesmo diante de um mundo atravessado pelo sinal de estilhaçamento das subjetividades. A resistência se dá através dos tempos em guetos. Sobrevive como vírus, latente, para ressurgir com força no momento propício.

Interdição, recalques — Em verdade, o perverso é aquele que conhece a si mesmo, sabe-se potencialmente capaz de tudo, e sabe que saber-se potencialmente capaz de tudo não é fazer tudo. Ele escolhe.

 

 

EPÍLOGO

 

"Toda existência consciente existe como consciência do existir". O Ser e o Nada, Jean-Paul Sartre

 

Uma pedagogia do olhar. Faz-se imperativo neste início de século saber identificar e compreender os procedimentos de codificação perpetrados pelo sistema que gera os produtos comunicacionais que nos são oferecidos diariamente.

Espero, assim, com este texto, ter dado uma pequena contribuição ao leitor no árduo caminho para desbloquear os formatos de codificação e se descobrir capaz da travessia-limite libertadora.

 

 

 

 

junho, 2007

 

 

 

Notas e Referências Bibliográficas

 

 
 
 
Rodrigo Novaes de Almeida (Rio de Janeiro-RJ, 1976). Cursou as Faculdades de Filosofia (UFRJ) e Comunicação (FACHA). Além de escritor e poeta, é artista plástico. Autor do livro-blogue Vórtice famigerado.
 
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