SOBRE ELE

Já conversou com Jesus Cristo e Deus em sonho. O primeiro foi gente boa, já o segundo só quis se gabar de ser Deus. O Espírito Santo não apareceu.



CIRCO DE LOUCOS

Lúcio era um cara um tanto desmiolado, inconseqüente, sempre aprontava das suas, metia os pés pelas mãos. Até que um dia perdeu o rumo, desistiu de tudo e se entregou ao isolamento do mundo. Lúcio queria morrer. Não morreu e o tempo agiu com cautela sobre ele. A transformação foi tamanha que ele teve que se reinventar. Como um novo homem, Lúcio voltou a freqüentar as amizades, os lugares, as marés. Porém, para sua surpresa, descobriu que agora o circo de loucos eram os outros.



APÓCRIFO 3:1-4

Naquele estádio de tempo, Jeová criou a mais bela das criaturas e chamou-a de Lilith. Seria Lilith o deleite contemplativo do Senhor Deus.[1] Não obstante, Lilith maravilhou-se com outro, arquiduque de luz, maior dentre os anjos do Senhor Deus.[2] Lilith provocou Lúcifer para que ele tomasse o trono de Jeová, para que juntos triunfassem sobre a Criação.[3] Os dois caíram em desgraça. Lilith, condenada a copular com os demônios das terras do mundo e Lúcifer a reinar nos infernos sob a alcunha de Satã.[4] Dizem ainda que Lilith mata os homens ao provocar neles uma turgescência permanente. Mas esta é uma outra história, bem mais recente...



OH! OH!

O automóvel pára num posto de gasolina. Eduardo, ao volante, olha para trás, vê um de seus amigos com o cigarro aceso e diz porra, Rodrigo! Joga fora este cigarro! Nós estamos no posto... Rodrigo joga o cigarro pela janela. Eduardo e os outros amigos que estão no automóvel dizem caralho, Rodrigo! Você jogou o cigarro aceso na bomba de gasolina... Rodrigo diz oh! Oh! BUM. Explodiu o quarteirão inteiro.



NANOCONTO 208

Ela foi a primeira a dizer eu te amo. E ele apenas disse obrigado. Eles brigaram. Dois dias depois fizeram as pazes. Ele disse eu te amo muitas vezes desde então. Contudo, para ela, eu te amo agora tinha um sabor amargo.

 

 

PAZ VERDADEIRA

Fulano se matou com um tiro na cabeça. A família estava inconformada. Os amigos estavam inconformados. Os conhecidos também. Mesmo os poucos inimigos que fez na sua vida de merda não entenderam nada.

Uns diriam egoísta filho-da-puta! Até na morte não pensou em mais ninguém senão nele mesmo...

Para o suicidado, porém, o que os outros pensassem não faria a menor diferença. Ele não ligava a mínima vivo, imagina agora que estava morto.

Moral da história: a paz verdadeira é fria e dura, como um cadáver.



PORRA EM BRASA

A música não parava de tocar. A agulha da vitrola machucava a bolacha preta e o chiado que saía da caixa de som era mais alto do que a voz agonizante do cantor de pagode do vinil. A porcaria do ventilador não funcionava como deveria. Teobaldo e Vânia suavam. A temperatura estava em torno dos cinqüenta graus dentro daquela quitinete. Era verão, o asfalto derretia nas ruas da cidade. Nestas condições, uma trepada poderia levar dias para terminar. O sangue das pessoas queimava como brasa, tinha a grossa consistência do ferro em seu estado líquido. As pontas de cigarro escapavam do cinzeiro já cheio. Porra pra todo lado.



GOELA ABAIXO

Zeca Banguela estava virado há três noites. De boteco em boteco lá ia ele tropeçando das pernas bebendo uns gorós. O filho da mãe estava mesmo acabado. Já não sabia do bairro que estava sequer nome. Olhava adiante, desenhava uma reta e caía, ora para esquerda ora para direita, noutras tortas linhas imaginárias. Chamava a todos os donos de bar de Digníssimo Portador da Pureza. E era da pura mais vagabunda que ele bebia. A pura das moedas de centavos. Que catava nas ruas. Que pedia aos passantes para comprar o pão e o leite dos filhos. Dos filhos que ele não tinha, que nunca teve. Nenhum legado, nada. Cachaça goela abaixo.



HUMANITAS PRECISA COMER

Deus criou Adão e Eva. Adão e Eva tiveram Caim e Abel. Caim matou Abel. O Diabo fez Lilith. Caim e Lilith tiveram muitos filhos. Nós viemos deles.



TODAS AS PEÇAS DO TABULEIRO SÃO CINZAS

Xeque-mate. Nada mais a ser dito. O Rei caiu. Está morto. Na vida real, todas as peças do tabuleiro são cinzas.


GENTILEZA

Cristo Redentor. Braços abertos do Rio de Janeiro. Um dia, de saco cheio e bastante cansado, abaixou os braços, desceu morro abaixo, e foi pregar Gentileza nas ruas do centro.



QUERO ROUBAR VOCÊ PRA MIM

Não se vive a vida pela metade. Fica comigo.



ARREBATAMENTO

Tocava um vinil na vitrola. E poucos sabiam o que era um vinil e o que era uma vitrola. (Mas) quem tem ouvidos, que ouça!



TRANSCENDENTE

E depois da chuva ela disse: - Tu não me amas! Não houve resposta. O ar tornara-se impregnado do perfume da terra. - Tu não me amas! - Tu não me amas! Fez-se ouvir no mundo um estrondo. E não houve resposta. O céu (ainda) estava fechado.



GÊNESIS

Parte I

A primeira gota do orvalho no Jardim derreterá ao primeiro raio de sol da manhã e produzir-se-á o primeiro som depois do longo silêncio do Inefável.

Parte II

Uma libélula sorverá o primeiro gole e voará rumo à Imponderabilidade.
Parte III

Será criado o Homem. Será chamado Homem. E viverá como Homem.

Parte Final

Estará escrito que o Homem não possuirá asas.



O CRUCIFICADO

Ele estava ao meu lado, vestia-se de branco e mostrava-me um homem a pregar para uma multidão. Este homem era Ele mesmo, o Crucificado. Ele, que estava ao meu lado e vestia-se de branco e mostrava-me o homem que eu deveria vir a ser a pregar para uma multidão. Este homem seria Eu mesmo. Porque eu também me vestia de branco então. E eu deveria vir a ser Ele, o Crucificado, que estava ao meu lado e vestia-se de branco.



E PUDIM DE LEITE

José amava Maria que amava José Maria que amava Maria José que amava José Maria José que amava Maria José Maria que amava... Drummond, Cortázar, García Márquez e pudim de leite.



PRIMEIRO DIA DE AULA

Tinha um quadro negro, verde. Giz branco. Um apagador. Ele escreveu o seu nome, virou para a classe e disse, silêncio!



PIMENTA CHILENA

Não estava acostumado. Morreu pela boca. O pobre coitado.



SAUDADE

Será sempre da gente no outro.



MICROCONTO

Um microconto é um haicai em prosa.



COPACABANA

Foi lá em Copacabana que eu me tornei puta. Porque, não sei se vocês sabem, nós putas não nascemos putas. São os homens que já nascem filhos-da-puta.

[Codinome Madalena]



APOCALIPSE

Basta. E isso é isto. O fim do mundo.



TESTE DE QI

Teste de QI na firma. Vez do Timóteo. Se disserem que sou estúpido, vou rir, como um estúpido faria, porque estúpido ri de tudo. E se disserem que sou gênio, vou comprar um chapéu novo, porque o que eu tenho está apertado e eu precisarei de um bom chapéu para proteger a minha cabeça. Iniciou-se o teste. Horas depois, o resultado: nem estúpido nem gênio. Timóteo não riu e manteve o chapéu de sempre.


SEXO FRÁGIL UMA OVA

Uns dizem que os homens não prestam. Outros dizem que as mulheres hoje em dia estão piores do que os homens. Elas saem para caçar, abatem a presa, comem e jogam a carniça fora. Depois deitam a cabeça no travesseiro e, extasiadas, dormem profundamente.



LISTA DOS ASES

Uma mulher que diz ao ouvido que Nós fodemos como cães.



OLHOS VERDES

Já amei dez anos um amor de três dias.



O CAMARÃO E A LAGARTIXA

Era uma vez um camarão de ribeira que se apaixonou por uma lagartixa.
Era uma vez uma lagartixa de parede de casebre que não deu bola pro camarão por pura teimosia.

Certo dia a lagartixa se distraiu, caiu da parede, foi ao chão. E o pobre do camarão, preocupado, pulou pra fora d'água pra ver a sua amada. Então veio o gato, que não tinha entrado na história até este exato momento, colocou a lagartixa pra correr e comeu o camarão.

Vejam só vocês a ironia desta história, o gato se apaixonou pela lagartixa, que já estava lá no alto da parede recuperando-se do susto.



A COLEÇÃO DE PEDRAS

Era uma vez uma menina que colecionava pedras. Não eram pedras quaisquer. Elas tinham a forma de coração. Não podiam ser lapidadas. Todas elas deveriam ser brutas. Tinham vários tamanhos e cores...

Era uma vez uma menina que tinha um coração de pedra. Ninguém conseguia lapidá-lo. Era bruto e frio. Nenhuma paixão adentrava-o. Sem tamanho e cor definidos. Colecionava estilhaços de amores alheios. Machucavam quem o tocasse...

Era uma vez uma pedra que chorou como um coração de menina. Mas a menina já não era uma menina e também chorou. E o coração já não era tão bruto e frio e também chorou. E os estilhaços já não eram muitos e já não machucavam tantos assim. E a moral desta história ainda está para ser escrita por outra pessoa e não por mim.



SONHO DE MENINO

Era uma vez um menino que sonhava em ser poeta. Ele cresceu, esqueceu o seu sonho, arrumou emprego, casou-se, teve filhos, netos, bisnetos. Então um dia, já muito velhinho, ele recordou-se do seu sonho. Pegou papel e lápis e escreveu que não era tarde, que, sim!, logo morreria, mas não se arrependeria de coisa alguma, talvez, apenas, uma saudade senil da infância, de um sonho esquecido, uma tristeza pequenina a latejar no peito, uma única lágrima mal-disfarçada no canto do olho e basta! Basta! gritou ele. Rasgou o papel. Era tarde. Morrera. Arrependera-se. Nada. Nada. Disse a Morte. Acorda, menino! Acorda, poeta menino!

Abraça a Eternidade!

 

 

 

(imagem ©cosmoun)

 

 

 
 
 
 

Na verdade nunca fui mágico. Sabia meia dúzia de truques e uma vez um macaco de circo me ensinou a hipnotizar pedras e tigres.

É verdade que eu trabalhei no circo, já fui mulher barbada sem nunca ter sido mulher, já me vesti de urso, já derrubei touros capados, mas nunca fui mágico.

Acontece que eu estava foragido. Tinha coronel, polícia e Lampião no meu rasto e fui me esconder naquela pobre cidadezinha nos fundos de pra-lá-dos-montes.

Eu usava um chapéu de mágico, roubado, e o povinho me confundiu de sujeito ordinário. Me receberam bem pra danar. Fizeram banquete e tudo. Mataram cabra. E me deram a última donzela virgem daquelas bandas. Juracema.

Eu aproveitei. Lambi os beiços. E como gostei da menina, não contei pro povo que de donzela ela já passava longe.

No dia seguinte, veio a conta. Como fui tolo, pensei. Metido em outra enrascada. Os pra-lá-dos-montinenses estavam cansados de tanta seca naquelas terras. E cansados também estavam da chuvarada que quando vinha não vinha só, mas vinha enchente.

Era tarde pra dizer que eu não era mágico e me lembrei do macaco do circo. Eu já tinha hipnotizado pedra, já tinha hipnotizado tigre, não seria difícil hipnotizar aquela gente.

Acabou seca, acabou enchente. Quer dizer, o povo todo não viu mais seca nem enchente. Alguns morreram comendo terra e outros morreram afogados na última estação. E quando o efeito do transe passou eu me chispei daquele lugar e trouxe comigo a donzela que não era donzela.

Hoje, velho, me alembro daqueles dias, e da fatalidade de ter conhecido Juracema, que fugiu de mim na cidade seguinte com o mágico de um circo que por lá acampava.

 
 
 
(imagem ©cosmoun)
 
 
 
 
 
 
 

I

 

Translucidez azul e silêncio. O corpo de Joaquim Proença de Rara-Sana incrustado no asfalto. O olhar esbugalhado voltado para o infinito.

Levanta homem!

Joaquim Proença de Rara-Sana levantou-se da morte, bateu as mãos no paletó para tirar a sujeira, ignorou o ônibus que o lançara cinqüenta metros no tempo e seguiu caminho. Aos poucos, a dança atômica de ruídos citadinos reencontrou seu compasso.

 

 

II

 

Desde os primeiros dias, sem uma parte do esôfago, cheio de tubos e desacreditado, até, meses mais tarde, após o implante, um gole de coca-cola a inaugurar o naco estranho costurado na garganta, e outras muitas cirurgias, mortes, novas cirurgias e outras muitas mortes, tem sido assim para Joaquim Proença de Rara-Sana. Acostumaram-se a dizer, sábios, que para ser haveria algo de extraordinário naquele homem que só um deus cuidadoso seria capaz de elaborar. O futuro comprometeria o nosso homem. Mas foi Joaquim Proença de Rara-Sana quem trouxe para o futuro uma modesta condição de funcionário público cujo único comprometimento era marcado em pequeninos furos em um cartão retangular padrão.

 

 

III

 

Conhecemo-nos pouco a nós mesmos e Joaquim só veio saber da história do refrigerante aos trinta e poucos anos de vida e mortes.

Toda manhã acorda, bebe um copo de coca e fuma um cigarro. Menos daquela vez que não acordou porque morrera em um ataque fulminante de escaravelhos. Era um sonho estranho que a memória decidiu manter intacto. Naquele dia, não quis ir à rua comprar refrigerantes e cigarros. Bebeu Jack Daniel's e deu uns tragos de um fumo de chocolate alpino no seu cachimbo inglês, presente furtado por um amigo que largara a vida para encontrar o apaziguamento auto-necrófago em um mosteiro beneditino.

 

 

IV

 

Aos nove anos, Joaquim viajou com os pais para um hotel-fazenda no interior. Naquela época ele era apenas Quim, menino miúdo, de olhos redondos e fala contida a ponto de os mais velhos o considerarem problemático, os mais enfáticos sugerindo um período de acompanhamento psicológico, por conta - argumentavam - dos traumas causados depois de tantas cirurgias. Os seus nervos estariam em frangalhos, diziam. Mas era tipo. Desde muito cedo Rara-Sana enxergava o mundo com um viés único, viés de alguém acostumado a morrer todos os dias.

Na fazenda, conheceu cheiro de boi, cheiro de vaca, de galo e de galinha. Tapou o nariz ao visitar o chiqueiro, mas gostou de ver os porquinhos. Só sabia desses bichos através dos livros e da televisão. Também nunca tomara banho de rio, nem bebera leite de cabra morno e fresco, encorpado como uma boa sopa de ervilha. Fez tudo isto e morreu afogado no açude numa tarde que resolvera sair sozinho para passear. Voltou para a casa principal da fazenda com os seus quatrocentos e noventa e nove quartos um pouco tristonho, porque perdera o seu amuleto - uma pequena pedra de rio, bem escura, polida pelos humores das águas - recém-adquirido durante a solitária andança.

- Procurei você por todo canto, menino! Disse a mãe. Ela estava realmente preocupada. Dava para ver a fumaça.

- Deixa a criança em paz, Lurdes! Que ele possa andar livremente. Não quero o nosso filho aprisionado todo tempo num apartamento. Falou o pai.

- Você confia demais, não vê que ele é ainda muito pequeno?

- Tem que se acostumar desde cedo a se virar sozinho. Foi bom o passeio, Quim?

- Perdi meu amuleto. Respondeu o menino.

- Que amuleto? Interrompeu a mãe.

- Uma pedra de rio, muito bonita. Eu perdi.

- Rio? Você foi até o rio sozinho? Está vendo, Tenório! Ele foi até o rio sozinho. Podia ter acontecido algum acidente...

- Quim, você pode andar por aí, brincar, ver os bichos, mas não vá mais ao rio sem a nossa companhia! Disse o pai de forma carinhosa.

- Está bem.

E desculpou-se com a mãe. Joaquim sabia que um simples pedido de perdão amolecia o seu coração. Ela não era má. Não faremos dela vilã desta história. Era apenas o jeito dela. Era zelo. E possuía um coração mole que Joaquim conhecia profundamente.

- Venha cá, Quim! Disse a mãe, pronta para abraçá-lo. Amanhã seu pai e eu vamos passear com você e então encontraremos outra pedra para ser seu amuleto.

Joaquim sorriu e abraçou a mãe. Sentiu o calor do seu ninho e não pensou mais no horror do afogamento daquela tarde.

 

 

V

 

Apaga-se Joaquim nos anos. É a forma sublimada de responder à impossibilidade da morte, de vir-a-ser nada. Assim desde o acidente de carro que matou seus pais quando retornavam de uma viagem a um hotel-fazenda no interior, ele, aos nove anos de idade, diante dos corpos ensangüentados dos pais presos à ferragem, atônito, condenado à existência e órfão.

Depois os anos difíceis no lar de uns tios. Os primos que o consideravam um retardado. A adolescência, as espinhas, os metais nos dentes, as masturbações e culpas, o isolamento e a descoberta dos livros, das histórias, fugas, vidas, muitas vidas nas páginas dos livros, novos mundos para Joaquim, diferentes daquele outro, perverso, que parecia querer sempre caçoar dele.

Até hoje é de tal modo que todos os arcanjos se reuniram para tratar exclusivamente do assunto. O assunto era Joaquim Proença de Rara-Sana. Diziam como o homem não se faz de rogado e comete um crime? A contra-inteligência não relatara nenhuma movimentação dos legionários inimigos rebelados no subsolo? Vanitas vanitatum et omnia vanitas. Vaidade das vaidades, é tudo vaidade, ora bolas! Por onde andavam os bastardos? E o próprio Satã? Ele não seria estúpido de deixar um Rara-Sana solto por aí. No mínimo, colocava a máfia atrás dele.

Decidiram então praticar a cabala nesse caso específico. Terminada a reunião, as portas se fecharam e não se soube de mais nada. Joaquim abriu um sorriso largo. Assistia ao seu programa de televisão preferido. Um grupo de pessoas insignificantes - mais insignificantes do que ele próprio - eram trancafiadas numa casa magnífica e condenados a uma rotina vazia, sem propósito. Joaquim amava assistir aos seus dias ordinários. Não havia morte ali. Os arcanjos no céu que se danassem todos eles, para os diabos todos eles! Rara-Sana convencera-se há muito quem seria. Um modesto funcionário público sem ambição, sem família, sem animal de estimação e sem morte. E não haveria bicho capaz de mastigar sua espessa couraça.

 

 

VI

 

Valete-de-espadas, único verdadeiro amigo de Rara-Sana, era um sujeito particular. Certa vez, definiu da seguinte forma a perfeita harmonia sexual alcançada por ele e um pitéu de tirar o trânsito que ele estava degustando: suculência da sua carne atenuada pela adstringência dos taninos nobres da Nebbiolo, com um pouco de discreta gordura ajustada ao meu órgão maduro, sua maciez de sabor marinado e nossos líquidos e secreções integrados. Um prato enriquecido com o trufado e o alcatroado do meu esperma - a ganhar com a consistência e a textura da sua carne enaltecida no contato com o molho. Acompanha sempre ao coito queijo com veios azuis e incrustações fúngicas aromáticas. É assim durante dias. Ela, eu e o Cordeiro de Deus enriquecido com aromas de frutas vermelhas do Médoc.

Também temos, para ilustrar quem é Valete, aquela história do telefonema. Foi uma ex-namorada quem ligou e disse querer conversar com ele. Só porque arrumara namorado novo, precisava ser a primeira a contar, afinal de contas eles terminaram fazia pouco tempo e ele poderia se chatear se ficasse sabendo por outra boca senão a sua. Valete apenas perguntou se era possível então uma trepada de despedida. Ela não gostou do convite. Ele insistiu, disse que poderiam ser amantes, ele passaria para buscá-la vez ou outra, foderiam sem compromisso. Ela respondeu que pensaria na proposta.

 

 

VII

 

Embora Joaquim e Valete-de-espadas fossem muito amigos, eram bem diferentes. Das histórias de Joaquim com as mulheres, a mais marcante, sem sombra de dúvida, foi com Penélope, e ela era uma beldade.

Um dia, ela levou Joaquim a um terreiro. Lá, duas tias enfiavam pedaços de papel nas narinas de um touro. O touro não estava ali por inteiro, tinha apenas a sua cabeça pregada na parede. Ele perguntou o que eram aqueles papéis. Ela respondeu serem pedidos. Pedidos bons você coloca no buraco da direita. Pedidos maus no buraco da esquerda. Joaquim ficou com certo pavor daquele lugar, daquela gente, daquela cara de touro pregada na parede e, principalmente, daquela Penélope que acabara de conhecer. Preferia a Penélope beldade que remexia o rabo sobre ele quando se perdiam do mundo num quarto de motel. Pensava isto quando uma das tias - ao que parece todas as senhoras ali presentes são chamadas de tias - enfiou demais a mão no buraco e aborreceu o touro, que se despregou da parede e veio encontrar o chão de terra batida. Foi um pandemônio até que dois valentes nativos cercassem a cabeça do touro, que recuava apreensivo e irado, o pegassem e o colocassem de volta na parede. Depois as duas tias colocaram os papéis de volta, que a esta altura já estavam todos misturados. Moral da história: teve gente pagando mal pelo bem, teve gente recebendo bem pelo mal, e teve Joaquim Proença de Rara-Sana fugindo desembestado de Penélope macumbeira, a beldade que remexia o rabo e adorava um touro.

 

 

VIII

 

Esta narrativa não termina aqui. Serão muitas ainda as mortes de Joaquim Proença de Rara-Sana para contar. Podemos, contudo, ir lá para frente, para o futuro, e revelar ao leitor, como faziam os profetas no tempo que os homens tinham alma e Deus era um maldito cabra cheio de fúria, uma possibilidade de fim para o nosso protagonista. Ao ler um anúncio de jornal sobre o metaverso, Joaquim decidirá se livrar definitivamente do ciclo de vida e mortes e se tornará um avatar. Sua mente será enviada para o metaverso e o seu corpo vegetativo será largado cheio de tubos numa cama de hospital público, como no princípio de tudo. E como avatar, Joaquim Proença de Rara-Sana será conhecido pelo nome Valete-de-espadas, seu único verdadeiro amigo.

 
 
 
 
 
 
Rodrigo Novaes de Almeida (Rio de Janeiro-RJ, 1976). Cursou as Faculdades de Filosofia (UFRJ) e Comunicação (FACHA). Além de escritor e poeta, é artista plástico. Autor do livro-blogue Vórtice famigerado. Edita o blogue Gueto Literário.
 
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