Agora, em seu quarto livro, este Impuro silêncio, a mesma microscopia persiste na observação de objetos ou de pulsões afetivas. Com a meticulosa perícia de um artesão caprichoso, tudo foi reduzido à menor imagem possível, porque o poeta continua obcecado por uma "ânsia desmedida de mudez" e "o que queria / dizer / já falou / quieto". Se o mundo inteiro se contém num grão de areia, perscrutar seus detalhes e saboreá-lo em partículas, descrevendo-o de igual forma com economia de meios, é opção das mais sadias e lúcidas. No entanto, apesar desse rigor, desse obstinado e bem-lavrado estoicismo com a fala, na experiência deste livro, como na dos que a ele trouxeram, "há silêncio / que não cabe na boca". Daí então Ricardo Lima, para alegria dos muitos que admiramos seus versos, ser levado a incrustar lá no fim uma auspiciosa divisa, pequena e grande como os mundos de areia:

 

calar e cantar

sempre

 

 

 

Leonardo Fróes, em "Cantar de Amigo", in:

Impuro Silêncio (Poemas 2000-2004), de Ricardo Lima.

Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2006.

 

 

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*

 

a dor violeta

da flor da alcachofra

 

é um sol lilás

na sala

 

quase violência

 

 

os olhos roxos

do menino negro

 

é um crime sem fim

na tela

 

impuro silêncio

 

 

 

 

 

 

*

 

pius, psius, sapato furado

veias velhas e inchadas

 

dor sobe grau a degrau

sem barulho

 

cães e vizinhos não têm espinhos

 

as carteiras das escolas

são alfinetes para sempre

 

 

 

 

 

 

*

 

não faltam pássaros

na solidão

 

canteiros

zunido de abelha

 

criança zanzando com babá

atleta trotando em acrílico

gordo tinindo em pijama

 

e cachorros

cachorros e

velhos

 

debatendo o mesmo osso

 

 

 

 

 

 

*

 

ao pé do morro

binóculo

o cume

o acúmulo

de túmulos

no horizonte

a espinha

da serra

 

sondar sombra

de árvore distante

 

café sob o sol

enegrece

alma amansa

pele esturrica

 

 

 

 

 

 

*

 

lavar prato

com prudência

caiar paredes

com tempero

respirar

no fim do dia

 

não ter sede

mas ágata

palha e pássaros

pra enfeitar

espantalho

 

calar e cantar

sempre

 

novos desertos

e azul claro      

 

 
 
novembro/dezembro, 2006
 
 
 
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Ricardo Lima nasceu em Jardinópolis (SP), em 17 de novembro de 1966. É poeta e jornalista. Sobrevive em Campinas e vive em Morungaba (SP). Publicou Primeiro segundo (São Paulo: Arte Pau-Brasil, 1994),  Chave de ferrugem (São Paulo: Nankin, 1999) e Cinza ensolarada (Rio de Janeiro: Azougue, 2003) e Impuro silêncio (Rio de Janeiro: Azougue, 2006).  Mais em Crítica&Companhia e em Germina:

 

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