......Se o poeta é mesmo um mediador,
como queria Platão, aquele que intercede pelos deuses e faz falar
em sua voz humana as palavras numinosas e divinas, que encarna na língua
dos homens aquela linguagem ancestral de onde não só promana
o verbo, mas que possibilita a própria existência da linguagem,
poucos poetas deram um testemunho tão arrebatador dessa potência
da poesia do que Saint-John Perse. E esse milagre se realiza com tanta
pujança que, no seu caso, falar de poesia como se essa fosse
um correlato do sagrado chega a ser quase um truísmo. Não
só poesia e sagrado são a única e mesma coisa,
como a melhor metáfora para o poema seria a de um altar em chamas,
onde se consuma o fogo dos deuses e onde o homem se imola, sacrifica-se
em sua finitude humana para, assim e somente assim, ingressar no reino
da Totalidade que lhe fundamenta em seu ser e aderir ao devir de um
tempo finalmente redimido.
......Não
é por acaso que, tendo-se em mente tal natureza de criação
poética e de concepção de arte, o próprio
Saint-John Perse comparará o poeta ao sacerdote: é aquele
que no mundo moderno mantém aceso o fogo da superação
de todos os limites e que força o espírito a transcender
toda e qualquer contingência material. É desse impulso
vital que emana a sua poesia e nele é que se funda o ímpeto
de transgressão sobre o qual toda a verdadeira atividade poética
se radica. Transgressão porque faz das balizas que se divisam
no mar os pontos flutuantes de uma peregrinação incessante
rumo ao Absoluto, e funda sobre a imagem mítica deste mesmo mar
um palco onde se desenrola o destino da humanidade rumo ao esplendor
e à transitividade, à impermanência e à grandeza
épica que este mar encerra, em oposição à
derelicção, ao abandono, à amargura e ao espírito
de gravidade que aprisiona os homens no Porto, em terra firme, seres
feitos exclusivamente para a morte e cativos de sua própria miséria.
......Em
um paralelismo curioso, é por meio do trabalho incansável
de outro sacerdote espiritual, que também exerce função
semelhante no mundo das letras, tamanho é o seu empenho e generosidade
intelectuais, que o leitor brasileiro agora tem a oportunidade de ter
acesso direto a essa poesia. Trata-se da tradução de Amers
– Marcas Marinhas, obra fundamental, dir-se-ia uma das grandes
obras da língua francesa, que vem a lume sob a esmerada e impecável
tradução do Frei Bruno Palma, que há 30 anos se
dedica ao estudo e à tradução minuciosa deste que
foi um dos maiores poetas do século XX. Assim, a atividade de
Bruno Palma como tradutor é um caso exemplar em nossa vida intelectual.
Haja vista o seu currículo invejável: sólida formação
humanista e filosófica, conhecimento das línguas clássicas,
longa estadia como pesquisador na França, onde foi aluno de ninguém
menos que Julien Greimas, e, por fim, condecorado com a alta distinção
de Cavaleiro pela Ordem das Artes e Letras do governo francês.
......Por
sua vez, a trajetória de Saint-John Perse, pseudônimo de
Marie-René Aléxis Saint-Leger Leger, é das mais
singulares e vale a pena ser comentada. Nascido em 1887, de família
francesa, em Pointe-à-Pitre, na ilha de Guadalupe, no arquipélago
das Antilhas, logo parte para a França. Cursa a faculdade de
Direito e mais tarde, depois de cumpridos os anos de aprendizagem na
Escola de Altos Estudos Comerciais, ingressa na carreira diplomática.
Viaja pela Espanha, Inglaterra, Alemanha. Cumpre missões na China
e retorna à França, onde é nomeado para o alto
cargo de chefe de gabinete de Aristide Briand, Ministro de Relações
Exteriores. Com a ofensiva alemã e a tomada de Paris, é
demitido de suas funções e tem sua cidadania e seus bens
confiscados pelo governo de Vichy, em 1940. Exila-se nos EUA, de onde
enceta uma série de novas viagens, podendo regressar ao solo
francês apenas no final da década de 50, quando dá
início a um novo período de sua vida, repleta de prêmios,
condecorações, publicações e traduções
de sua obra, vindo falecer em setembro de 1975.
......Esses
dados biográficos não são gratuitos, tampouco têm
função ornamental em relação à sua
obra. Se pensarmos, como o fez o crítico Albert Henry, que a
obra de Perse se funda em uma poética do movimento e do devir,
sua própria situação itinerante pode nos afiançar
essa hipótese, bem como corroborar a permanente insatisfação
e a profunda insubmissão que movia o poeta, presentes ao longo
de seus versos e referidas como sendo a grande virtude da poesia, como
diz a famosa (e poética) carta a Dag Hammarskjöld, consultor
do tradutor sueco de Perse. Se pensarmos que a tônica de sua poesia
é a adoção de uma perspectiva cultural ecumênica,
ou seja, uma poesia que pretende dar uma configuração
universal de toda a humanidade, na qual não raras vezes somos
tomados por uma riqueza vocabular, histórica e geográfica
desconcertante, poesia esta que também trata sempre de celebrar
a viagem, não só em sua dimensão literal, mas também
em seu sentido alegórico, como travessia do homem pela sua existência
na Terra, os dados biográficos e poéticos se complementam,
formando juntos uma só fisionomia do homem que os compôs.
......No
caso de Amers, trata-se de obra complexa, que foi publicada
em partes, em revistas literárias, e depois reunida em volume,
em 1957. Sua estrutura é sinfônica e de difícil
redução didática. Subdivide-se em quatro partes:
Invocação, Estrofe, Coro e Dedicação. Cada
qual conta com uma seqüência de cantos, que vão se
inter-cambiando, de modo que temos, se não um enredo, já
que não lhe subjaz propriamente uma estória, um itinerário,
que se abre às mais variadas interpretações e leituras.
Atravessam essas quatro partes uma série de figurações,
ou seja, de personagens que representam instâncias do real, indivíduos
ou grupos humanos. São elas: Oficiais e Trabalhadores do Porto,
Mestre de Astros e de Navegação, as Trágicas, as
Patrícias, a Poetisa, as Profetisas, as Jovens e os Amantes,
aos quais é dedicado o canto IX, Estreito são
os Barcos, um dos mais belos da literatura erótica ocidental
moderna e um dos poemas mais famosos de Perse. As remissões ao
mundo grego e às tragédias são evidentes e programáticas:
não só Perse estabelece um paralelo entre o seu mundo
poético e a antiguidade, como usa, para a criação
do espaço cênico de Amers, elementos e uma disposição
semelhante às dos grandes teatros gregos, sendo o palco o próprio
mar, onde se desenreda o fio da trama humana tendo o céu como
pano de fundo.
......Por
seu turno, a pluralidade de sentidos da obra já começa
pelo título. Amers, em linguagem técnica da marinha,
são marcas, balizes que se fixam no mar para orientar a navegação.
Porém, ela tem ressonâncias do verbo amar (aimers)
e do vocábulo amares, que quer dizer estar diante
do mar. Além disso há uma outra acepção:
como notou a poeta Dora Ferreira da Silva em estudo sobre o poema e
como ratifica Bruno Palma, amers também se aproxima
de amères, que é amargo, e, ao dar a justa dimensão
alegórica do percurso da humanidade, compara o desenrolar do
nosso destino neste mundo com a amargura das águas que nos presenteiam
com sua eterna novidade assim como nos arrojam na mais profunda solidão,
finitude e instabilidade. O mar como correlato objetivo do puro movimento,
do devir incessante, do ser unívoco e monista dos primeiros filósofos
pré-socráticos, como Unidade imanente que corresponde
ao próprio universo, tal como foi dito pelo poeta em carta a
Roger Caillois, um dos maiores estudiosos de sua obra.
......De
fato, para Saint-John Perse o mar não é apenas uma entidade
mítica, uma metáfora poética de alta carga semântica
ou o ideal de uma vida colhida em pleno curso e em seu frêmito
vital de expansão. O mar é signo da própria existência,
corresponde àquela clareira do ser de que nos fala Martin Heidegger,
e é também o Aberto por onde se acede ao Absoluto e onde
nos reconduzimos àquela nossa pátria natural alienada:
a Totalidade. Se desde o início dos tempos ela nos fôra
privada e por ela o homem erra como um eterno exilado, tal como o solitário
de Babel e Sião vive exilado da pátria
Celeste, como nos diz Camões, e por sua ausência o homem
vive preso à rotina da Cidade e da terra firme, entre as sombras
do Porto, a poesia é um dos meios privilegiados pelos quais ele
pode reconquistá-la e restituí-la. Porque nela se realiza
a síntese suprema entre o instante que pulsa e o eterno, entre
o movimento das imagens que nos vêm aos olhos, as vagas que quebram
e se renovam, o mar que é sempre e sempre outro e sempre recomeçado,
e aquela Imobilidade fulminante que só existe para além
da percepção e dos conceitos, sede de toda a nossa vida
possível e horizonte de toda a nossa liberdade.
......Quando
diante dela, cabe a destruição do poeta pela luz que exorbita
os limites humanos. Aqui entra o mito de Xiva, que tanto atraiu Perse
e que tanto marcou sua infância e seu imaginário. Mito
pelo qual sua ama indiana, desde criança, lhe instilara a admiração,
chegando a compará-lo a ele. E aqui nasce o poeta, como pequeno
deus modelador do real, sob o signo de Xiva. Deus da suprema criação
que é ao mesmo tempo a suprema destruição, destruição
transfiguradora e criação que revolve tudo dentro de si,
ímpeto prometeico rumo às origens e destruição
da realidade tomada como uma das faces do sonho e da ilusão,
véu de Maia, mergulho no sono das criaturas rumo à reorganização
da ordem divina. É o poeta tomado pela hybris, emulando
o Criador, querendo ser também ele um deus que cria o mundo pela
intercessão da palavra poética. Mas também é
o poeta em sua mea culpa, em um dos seus últimos livros, chamando-se
a si mesmo de “macaco de Deus”. Não adianta a atitude
simiesca, a imitação da música, a aspiração
à divindade: tudo no mundo sublunar é causa segunda e
derivação do primeiro sopro de Deus. Não adianta
a atitude megalômana: somos todos ainda mais criados de Deus do
que seus criadores. Poesia como meio e fim, essência e origem,
sacerdócio e cuidado, contra o niilismo e o materialismo do mundo
moderno e contra a vileza de valores de uma sociedade devastada.
......Poesia
como ciência do ser, porque toda a poesia é uma ontologia,
diria Perse em um texto crítico. É um mergulho nas zonas
indevassáveis do real e um parti pris do silêncio
que institui a própria possibilidade da Palavra. Poesia da liberdade,
da liberdade em seu estado puro e de pura latência, liberdade
fundadora e original, não como algo perdido no tempo e em uma
ancestralidade remota, mas como uma força que irrompe e se projeta
no presente, e se oferece como o fundamento mesmo da própria
possibilidade de nossas vidas e de nossos atos. Assim é o mar
de Perse: instância projetiva do real, realidade fulgurante e
ígnea, sempre apontando para a transcendência de si mesmo
e do mundo pobre dos fenômenos visíveis e tangíveis.
Para lembrar o discurso que o poeta pronunciou em Florença, em
1965, no sétimo centenário de nascimento de Dante, a poesia
partilha de um tempo que não é nem histórico nem
eterno: é um constante agora. E nesse sentido, Perse, ao falar
do grande poeta florentino, falava sim de si mesmo. Dele que ergueu
sua voz e fê-la alçar-se à dimensão daquela
era plena da linguagem, de que nos fala o poeta, domínio próprio
da poesia e sua morada, onde a palavra de Saint-John Perse, a sua precária
palavra de homem, transfigurou-se, se susteve e agora permanece e há
de se manter, como a de Dante, incólume e inaugural, sobre a
lâmina do abismo dos séculos que se sucederão indefinidamente.
O livro: SAINT-JOHN PERSE. Amers — Marcas Marinhas.
Tradução, Introdução e Notas de Bruno Palma.
São Paulo, Ateliê, 2004.
Rodrigo
Petronio é escritor. Autor
de História Natural (poemas) e Transversal do Tempo
(ensaios). Prepara novo volume de ensaios, intitulado O Grão
e o Cosmo, e novo livro de poemas, que será lançado pela
editora A Girafa em novembro de 2004. Mais em: www.germinaliteratura.com.br/rpetronio.htm.