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Um romance histórico modelar, estruturado com complexidade

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Tudo começou quando a família de Gentile e Grazia Piemonte chegou ao Brasil na década de 1880: "Trouxeram os filhos pequenos Anna, Angelina, Carmela, Salvatore e Antônio. Vieram da Baixa Lombardia. Uma terra envolta de colinas, planaltos, planícies e riachos que, ao cortarem tal geografia, irrigam oliveiras e vinhas". Mas, se vinham para o Brasil, "que seja perto de um grande rio, maior do que o Adda, ou de um lago mais doce do que o Commo! Ao desembarcarem no porto de Santos, não tiveram dúvidas do destino: as águas do rio Paranapanema" (Marco Aurélio Cremasco. "Santo Reis da Luz Divina". Rio: Record, 2004).

 

É a história de uma família brasileira que se confunde com a História do Brasil, da Guerra do Paraguai aos meados do século XX, nomeadamente a conquista do norte paranaense, passando pelas revoluções de 1930 e 1932, mais a configuração política da Primeira República. Constituído em parte pelas memórias da matriarca Esperança e em parte pelos relatos de um narrador onisciente, trata-se de romance histórico modelar, estruturado com extrema complexidade, perfeito domínio da matéria e estilo ao mesmo tempo espontâneo e de alta qualidade.

 

O autor tornou homogêneas a ficção e a realidade, sem cair no erro de expor os fatos de forma didática e informativa. Eis, por exemplo, um instantâneo da guerra: "Alferes, há quanto tempo na mata? Três meses... ou seriam anos? É difícil contar, senhor Marquês, não sei. Alferes, quantos homens? É difícil contar. Por quê? Esqueceu? Não, não é isso, é que cada vez diminui o número. Os homens, senhor Marquês, estão morrendo tão rápido quão malha dizimada pelo fogo no frio. Creio que passamos toda a Província de Minas Gerais, adentramos no Mato Grosso e, pelo jeito, estamos sendo vencidos pela maleita e por outras artimanhas do Tinhoso".

 

Paralelamente à vida coletiva e nela incrustada, é a história de uma família através de gerações que se desdobram e multiplicam, seqüência de anos tumultuosos, história de violências e enfermidades, nascimentos e mortes, crimes e arbitrariedades, novelas de amor, misérias e grandezas da vida cotidiana, tudo conservado, como é natural, em sua identidade profunda, refletida em nomes próprios inconfundíveis que se transmitem de ano em ano. O quadro genealógico traçado por Esperança Piemonte Reis, guia de leitura e de orientação, dá idéia desse mundo: "Do lado paterno. Meus avós: Gentile Piemonte e Grazia Agnelo. Filhos: Anna, Antônio (meu pai), Angelina, Carmela e Salvatore. Todos falecidos e todos italianos vindos da Baixa Lombardia. Do lado materno (...)". A enumeração continua, até chegarmos à época contemporânea: "Meus pais: Antônio Piemonte e Anna Beatriz Figueira Barros. Meus irmãos: Manoel, Cecília e Paulina, todos nascidos em Piraju e falecidos no Paraná. (...) Eu nasci em 25 de dezembro de 1905 (...)."

 

O território da família é praticamente o sul de São Paulo (e, com a Revolução de 1930, a fronteira de Itararé), com alguns pseudópodes em Curitiba, mas o centro por assim dizer geométrico é o chamado norte pioneiro do Paraná, inclusive com as vicissitudes onomásticas impostas pelos acontecimentos: "Colônia dos Mineiros? De quem? Mineiros, senhor. (...) Esse povo não tem imaginação mesmo. Diga-me o nome de um dos nossos. Távora! Cabo, qual deles: o Joaquim ou o Juarez? Tanto faz. O Juarez está vivo, poderia ser o Joaquim. Não só poderia, como o nome foi usado no lugar do patrimônio Affonso Camargo, o qual era de nome Barra Grande. Que ironia: expulsamos o Presidente do Estado, ainda o humilhamos trocando o seu nome por um dos nossos (...)."

 

Não foi caso único nas sugestões do cabo. Prestes foi sumariamente rejeitado por ser covarde e estar pensando em virar comunista, mas havia Siqueira Campos: "Morreu novinho o Barba de Arame, contudo um bravo (...) Será dele o nome da cidadela. Colônia dos Mineiros daqui para a frente será Siqueira Campos (...)." É com as revoluções e guerras que se aprende geografia. Pertencendo tradicionalmente ao perrepismo paulista, a narradora não poupa alusões desairosas aos getulistas e às tropas invasoras que lhe estavam destruindo o mundo? e os valores: "3 de outubro de 1930. Deve ser cinco da tarde. Que nos reservará o futuro incerto nesse lance de aventureiros? Quem sabe, senhor, se o próprio passado vem sendo construído nas mãos dos aventureiros?". 17 de outubro de 1930: "Ponta Grossa, senhor, acabamos de chegar em Ponta Grossa. Aqui, Guido, vou assumir a coluna revolucionária e fazer do trem meu quartel-general". 21 de outubro de 1930: "Guido! Senhor. Vejo que está bastante silencioso, mais do que de costume. Coisas de família, senhor, coisas do Paraná. Paraná, Paraná, estou decepcionado, pois aqui só há adesistas, aproveitadores: não há partidos, há grupos que se digladiam, querendo o sangue do presidente do Estado". Entre parênteses: "Guido" é Heitor dos Santos Reis, filho de Augusto dos Santos Reis, marido de Esperança.

 

Em 1934, Dione escreve de São Paulo ao irmão Santino: "Por falar em política, entrei em um movimento de libertação do Brasil. (...) Conheci Maria Bergner Vilar, uma mulher formidável e que nos traz pensamentos e atitudes reveladoras do que vêm a ser governo e povo, o povo no poder. (...) Amanhã receberemos a visita do Cavaleiro". Era o momento da revolução imaginária, embora sangrenta: "em julho o Prestes divulgou um manifesto pelo qual fomos postos na ilegalidade, até que em novembro nos articulamos para tomar o poder pelas armas em Natal, Recife e no Rio de Janeiro (...)."

 

No capítulo de encerramento, reservado apropriadamente aos epitáfios, Orestes, filho de Dione, propõe a lição final de ceticismo desiludido: "Depois da morte de mamãe, na União Soviética, resolvi voltar. Você é comunista! Orestes sorri. Diria que sim, mas não se preocupe, pois a outra parte do meu sangue me protege no Brasil". Orestes e Chico "refizeram o caminho dos pais", abrindo trilhas, escarpas, montes, feridas, rios, pescas e prostitutas. Tal como na história do Norte Pioneiro.

 

 

 

 

 

O livro: Marco Aurélio Cremasco. Santo Reis da Luz Divina. Rio de Janeiro: Record, 2004

 

 

 

Variações sobre o mesmo tema

 

Santo Reis da Luz Divina, por Antônio Torres

Santo Reis da Luz Divina, por Italo Moriconi

Um extenso painel, por Maria da Paz

O sentido da vida pela morte, por Paulo Franchetti

 

 

Um trecho de Santo Reis da Luz Divina

 

 

 

 

agosto, 2005 

 

 

 

 

Wilson Martins. Bacharel em Direito (1943) e Doutor em Letras (1952), ambos pela Universidade Federal do Paraná. Bolsista do Governo Francês (Paris, 1947/1948). Catedrático de Literatura Francesa na Universidade Federal do Parana (1952/1962). Professor visitante da Universidade Kansas (1962). Professor associado na Universidade de Wisconsin-Madison (1963/1964). Professor titular de Literatura Brasileira na New York University (1965/1991). Crítico literário dos jornais: Jornal do Brasil (RJ), O Globo (RJ) e Gazeta do Povo (PR). Prêmio José Ermírio de Morais, 1997, Academia Brasileira de Letras.

 

Algumas obras: O Modernismo (São Paulo: Cultrix, 5ª ed, 1977). História da Inteligência Brasileira , 7 volumes (São Paulo: Cultrix/Edusp, 1978).  A Crítica Literária no Brasil, 2 volumes (Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, edição revista, 2002). Um Brasil Diferente (São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1989). Pontos de Vista – Crítica Literária, 15 volumes (São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1991-2004).  A Palavra Escrita (São Paulo: Editora Ática, 2001).

 

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