O Prêmio SESC de Literatura, recentemente criado, materializa uma simpática preocupação: descobrir e publicar talentos literários que ainda não tenham alcançado projeção nacional. O prêmio consiste em abrir para o escritor as portas do mundo editorial. Os originais, depois de submetidos a uma triagem em nível regional, passam finalmente pelo crivo de uma comissão julgadora central. A obra premiada é encaminhada a uma editora de porte (no caso a  Record). Concluída essa maratona, a etapa seguinte favorece o autor com a divulgação do livro na rede de bibliotecas do SESC e em feiras promovidas pela instituição.

 

Para se enquadrar nas cláusulas do regulamento, o candidato não pode ter mais de três livros publicados. Em sua primeira edição, em agosto de 2003, o concurso escolheu a categoria romance. Santo Reis da Luz Divina, de Marco Aurélio Cremasco, de Campinas, foi o escolhido para o primeiro lugar. A leitura desse romance (Editora Record, 2004, 318 págs. R$ 39,90), aguça a curiosidade do leitor acerca do substrato histórico em que se monta a trama (fragmentária) do romance, cujo enredo se desenrola desde o Brasil-colônia e vai até a segunda metade do Século XX. Uma pergunta  pode ocorrer ao longo da leitura desse romance: qual o teor de história (não de História oficial) entranhado nesta ficção?  Não é que haja dois planos justapostos, em que um fosse a história (o Brasil de uma determinada época) e outro fosse uma trama montada com a matéria-prima, o pano de fundo histórico (percebido indiretamente, através de alusões). Até porque não se tem um quadro temporal com suas margens definidas. Há sim indícios, pistas que se detectam através das situações que motivam os diálogos das personagens; exibindo um tecido de múltiplas imbricações familiares entre gerações, em closes de períodos os mais diversos, nos bastidores da história política do Brasil-Império, com seu prolongamento na República: Uma espécie de saga do poder privado familiar imbricada a uma caricatura do que se entende, há séculos, por poder público, em nossa formação cultural. Desde o Brasil  que antecede a proclamação da República, passando pelo Brasil do chamado ciclo do café, pelas entranhas do tecido social que respirava utopias e derrotas; a Coluna Prestes; a Aliança Nacional Libertadora; os sanguinários getulistas e seus opositores. Retalhos da vida política  e social dando suporte às circunstâncias de cada sujeito (em particular ou enquanto membro de uma família).

 

Resulta daí que não há um fio linear de narrativa a partir de um ponto de vista privilegiado. A narrativa confunde-se ora com o fluxo do acontecer, ora com o registro da memória captada de dentro  de um presente que se quer móvel, mas que nem sempre evita a visão cristalizada em passado. São closes, recortes na memória política do Brasil-Império: não a história a partir de uma ótica individual, mas a matéria dessa história, o borbulhar de tudo que ferve no fundo e vem à tona,  depois se metamorfoseia em poder.

 

Estão presentes certas nuances de tempo que não poderiam ser captadas por um olhar que privilegia o estanque, o fotográfico a ser posto na moldura de um quadro em que as margens isolam o que está em ebulição. Daí porque a narrativa de Cremasco quase sempre está, por assim dizer, colada ao imediato do acontecer. É de dentro mesmo  dos diálogos que se vai corporificando a narração: às vezes, de tão imediata não comporta a introdução de um observador, de um intermediário: Nossas terras prosperam, senhor Tabelião. Com a graça de Deus, senhor Grassiano. Acabei de comprar mais uns lotes dos Arruda e vim registrá-los. O bom Imperador agradece, senhor Grassiano. Fico preocupado com o trabalho, senhor Tabelião. Como? Os negros não são acostumados com o que pagamos. Pois pague mais. Não é esse o problema. Qual é? Temo que a maioria deles não sabe  o que é ser livre. E o senhor sabe, senhor Grassiano?

 

Sabe-se, de conversa, o momento em que se vivia esta ou aquela situação histórica. Que águas temporais eram aquelas do instante fisgado na conversa? Respira-se o que está no ar, podendo  ser  a proclamação da  República; a situação dos escravos pós-proclamação da Lei Áurea; o clima policialesco do Estado Novo, com seus "delegados de captura" nomeados arbitrariamente. Não a história "em ata", mas  o acontecer do que vai virar relato em palavra escrita,  como a conversa sobre os escravos alforriados sem saberem como viver em liberdade.

 

No fundo de toda essa des-ordem, a ação ou antes o seu motor era a busca do poder e como ele confunde-se com o cultivo dos interesses pessoais. Tudo isso não foge ao lugar comum. O que é novo é a forma como é posto em narrativa; quase sempre como  se a realidade não passasse através de um observador, mas se narrasse a si mesma; em fragmentos combinando-se num caleidoscópio; ora deslizando em fragmentos de saga  familiar; ora  carregando nas cores fortes de um extenso painel sociopolítico.

 

Trecho:

 

Meu caro deputado Marino Aprígio Manoel, este é o Império do Partido Republicano Paulista, ou melhor, PRP, que, junto com outros PR no Brasil, fará um Corte de primeiros e segundos-tenentes, capitães, majores, tenentes-coronéis, coronéis e, dependendo do poder de voto, da riqueza, uns poucos chegarão ao generalato, assim como no Brasil houve apenas um duque, assim como os reis são os presidentes das Províncias, os príncipes os seus Secretários de Estado e, obviamente, o Presidente da República é o Imperador. Podemos trocar o Presidente do Brasil, mas o Imperador será  sempre o PR, o PRP em segredo. O povo! Ah! Ao povo, resgataremos o princípio romano de pão e circo. À população, daremos o circo, e se quiser o pão terá de trabalhar para ganhá-lo honestamente. Tão honestamente que não terá tempo para pensar besteiras, inclusive votar. Aos vagabundos, por terem tempo de sobra, daremos a graça do voto, e como esses infelizes não têm sustento, vender-nos-ão o tesouro do voto a preço de banana: um par se sapatos ou coisinhas à toa que os deixam felizes por nada. O nada deles, meu caro Deputado, é tudo o que queremos. A propósito, meu caro Deputado, o senhor é, a partir de hoje, Major! Por favor, volte a Piraju e faça com que os nossos assumam cada qual o seu trono, cagando na cabeça de quem discordar do nosso Império particular.

 

 

 

(Publicado, originalmente,  no Correio das Artes)

 

 

 

 

 

 

agosto, 2005

 

 

 

Maria da Paz Ribeiro Dantas é poeta e ensaísta, paraibana, radicada no Recife desde 1963. Escreveu, dentre outros livros, O mito e a ciência na poesia de Joaquim Cardozo (Rio, José Olympio, 1985). Sol de Fresta, poesia (Recife, Edições Pirata, 1979, Menção Honrosa Especial no Prêmio Fernando Chinaglia 1977, da UBE do Rio); Ilusão em pedra, poesia (Recife, Edições Pirata,1981); Luiz Jardim – ficção e vida (Recife, Companhia Editora de Pernambuco, 1989). Tendo dedicado especial atenção à obra do poeta e engenheiro Joaquim Cardozo, publicou Joaquim Cardozo contemporâneo do futuro (Recife: Ensol Editora, 2004), livro que inclui biografia, estudo crítico e antologia. Tem poemas e ensaios publicados em diversos jornais e revistas de cultura. Participou de várias coletâneas de poesia.