Alberto Pucheu: Você editou por muito tempo a Azougue, talvez a principal revista de poesia do Brasil entre os anos 90 e o começo da primeira década do novo século. A revista acabou se metamorfoseando na Azougue Editorial, uma editora em crescimento e marcadamente qualitativa. Ser editor e ser poeta: quais encontros e afastamentos desta dupla tarefa?

 

Sergio Cohn: "Será a poesia a arte da escuta?", pergunta Rodrigo Garcia Lopes num poema que gosto muito, "Polivox".

 

Existe uma característica que constato na grande maioria dos bons poetas contemporâneos, que é dividir o fazer poético com alguma outra atividade relacionada à poesia. Seja edição de revista, crítica ou tradução, há em todos eles esta abertura para expressões diversas. Uma escuta, que informa as suas poesias e possibilita um diálogo mais consistente com a contemporaneidade.

 

Ao mesmo tempo, desde que abri a editora, percebi que existe uma completa ignorância dos poetas em relação ao mercado editorial. Quer dizer, os poetas acabam aceitando uma posição passiva em relação ao mercado ou mantendo seus livros numa situação à margem deste, num sistema certamente restritivo de trocas. Isto é, ao meu ver, uma forma perniciosa de torre de marfim, que ainda atrapalha muito a poesia brasileira.

 

Assim, não acredito que haja afastamentos, esta tarefa dupla só acrescenta ao meu trabalho. A Azougue não apenas permitiu o diálogo com outros autores, tanto de gerações anteriores como meus contemporâneos, como me jogou no mundo, me possibilitando conhecer todas as etapas do fazer poético, da criação à venda. Isto certamente me fez crescer como pessoa e, conseqüentemente, como poeta.

 

 

AP - Nascido em São Paulo, onde fundou a revista mencionada, e vindo para o Rio de Janeiro, onde abriu a sua editora, como vê a relação da poesia do Rio com a de São Paulo? É possível traçar diferenças e aproximações? O rompimento de Ferreira Gullar com os poetas do concretismo teria determinado um futuro diferente de poesia, lá e cá? Ou não dá para falar em tradições diferentes, e tanto o concretismo teria forte influência no Rio quanto, na mesma intensidade, Gullar em São Paulo?

 

SC - É claro que para pensar estas diferenças é preciso trabalhar com generalizações, que são sempre perigosas. Mas vale o exercício. Não acredito que seja o Gullar uma peça central para a compreensão da diferença entre as poesias paulista e carioca. Acredito que esta nasça principalmente do advento no Rio de Janeiro da Nuvem Cigana, o grupo que reuniu poetas como Chacal, Bernardo Vilhena, Charles e Ronaldo Santos em meados da década de 1970. A Nuvem Cigana, através das Artimanhas, como denominavam os seus eventos poéticos, realizou pela primeira vez um trabalho intensivo e consistente com a poesia oral no Brasil.

 

Esta é uma questão central da nossa literatura: ao mesmo tempo em que o nosso país é amplamente analfabeto, ou talvez por isso mesmo, a nossa literatura é prioritariamente criada sobre a palavra escrita. Quase não temos uma tradição moderna de poesia oral, como iremos encontrar na poesia norte-americana, por exemplo. E, como lembra o Paulo Henriques Britto em um excelente artigo, a língua portuguesa escrita é radicalmente diferente da falada, o que não ocorre com a língua inglesa. Assim, se tentarmos ler em voz alta os diálogos de um romance, na maioria das vezes eles soam artificiais, e se tentarmos reproduzir na escrita as estruturas orais dos diálogos, elas parecerão estranhas no papel.

 

A Nuvem Cigana se reproduziu em outros eventos, como o CEP 20.000, e conseguiu em muito romper com esta separação da palavra escrita e falada, criando possibilidades que foram incorporadas na poesia carioca, e que até hoje a informam. A poesia paulista, no entanto, por não criar uma tradição de leituras poéticas, se manteve muito mais baseada na palavra escrita. Isso causou diferenças estruturais nas duas poesias: a paulista se permite elipses e quebras rítmicas, o que dificulta inclusive sua leitura e compreensão em voz alta, enquanto a carioca é mais retórica e se aproximou da fronteira com a prosa.

 

Uma contrapartida interessante disso é que as experiências orais cariocas ficaram exageradamente restritas a uma retórica (mesmo que na maioria das vezes irreverente), utilizando-se pouco de outras possibilidades sonoras da poesia, enquanto as experiências mais radicais de poesia oral se encontram em São Paulo, em poetas como Haroldo e Augusto de Campos.

 

 

AP - Como As Flores do Mal, o título de seu último livro, O Sonhador Insone, é um oximoro. Neste livro, um duplo movimento simultâneo se faz presente: encontramos tanto uma perspectiva afetuosa de tudo, não há como celebrar o raro sem o encontro, uma festa de imprevistos quanto um movimento do irrestrito, um momento sem corpo, a lenta corrosão do invisível. A força do corporal e a potência do incorporal. Ao fim do livro, Marina Weis fala das formas que se diluem. Como você pensa essa dinâmica simultânea?

 

SC - Certamente é uma dinâmica central do meu trabalho. Mas é preciso avisar que estou sempre procurando o encontro. O poeta e amigo Daniel Bueno me disse uma vez que a poesia é a lenta conquista do indizível. Ou seja, que a poesia tenta expressar o que antes não havia expressão. Gosto desta visão do fazer poético. Herdei do meu pai, o sociólogo Gabriel Cohn, o gosto pelos volteios, pelos objetivos inatingíveis. Ele sempre me citou os clássicos versos de Garcia Lorca, "Córdoba./ Distante e só.// Embora saiba os caminhos/ eu nunca chegarei a Córdoba". E criou a deliciosa teoria do intelectual como o arqueiro zen, aquele que mesmo sabendo o alvo inatingível, tensiona o arco até o limite. O que ocorre nesta dinâmica que você citou é exatamente isso: a tentativa, quase sempre impossível, do encontro poético.

 

 

AP - Em O Sonhador Insone, há uma apropriação de fragmentos alheios, que, no corpo do texto, se tornam seus. Rimbaud, os beats (Ferlinghetti, por exemplo), Piva —  você fala em videntes, paranóicos & utopistas — são trazidos para o diálogo exaltador da liberdade. Je suis um révolutionnaire, é um dos berros dados, saqueados. Poetas mais jovens também entram neste âmbito do trabalho. A poesia é um exercício da liberdade? De que modo?

 

SC - "A poesia deve ser feita por todos, não por um". Esta frase de Isadore Ducasse, o Conde de Lautreamónt, sempre foi um lema para mim. Aprendi com ela a importância e a força da autoria aberta. Ela me libertou, inclusive, para o direito de intervenção em textos já existentes, sejam consagrados ou não. Sempre reutilizo, em contextos novos, versos alheios. Algo próximo do sampler musical. Fico feliz que esta "estética do arrastão", como diz o Tom Zé, esteja crescendo no mundo.

 

Agora, se a poesia é um exercício de liberdade? Acredito que sim. Mas não num sentido de "tudo é permitido", de uma liberdade incondicional, mas no sentido de uma relação aberta com o mundo.

 

 

AP - Se sua poesia dialoga com os poetas anteriormente mencionados, nela, se faz presente, de modo diferente dos citados, uma grande contenção. Rimbaud, Piva e os beats de modo geral são poetas do desejo de linguagem volumosa. Talvez, Gary Snyder seja diferente. No seu caso, há um desejo de freagem muito maior, a liberdade ganha uma sintaxe mais econômica. Como você vê essa articulação entre contensão e liberdade?

 

SC - Piva, Rimbaud, se são poetas de fôlego amplo, são ao mesmo tempo grandes artesãos da linguagem. Não há neles o verso excedente, cada palavra é necessária. Piva, por sinal, é extremamente conciso em seus livros — apenas aqueles poucos poemas necessários. O que é o contrário de poetas como Drummond e Bandeira, que possuíam obras extensas e extremamente irregulares. Você encontra no mesmo livro de Drummond alguns poemas excelentes e outros completamente desnecessários. Então, concisão é uma questão mais complexa do que parece. E pode haver mais concisão que o silêncio de Rimbaud?

 

Sou, por natureza, mais contido. Cada verso nasce com dificuldade, e talvez não domine a arte do discurso. Assim, esta concisão, que é considerada uma marca qualitativa da minha poesia, é ao mesmo tempo uma prisão. Vejo a liberdade como a possibilidade de escolha, o direito de "desperdiçar possibilidades", como coloca Adorno. Então, um dos meus exercícios presentes é a ampliação do meu fôlego poético, para conseqüentemente ampliar as possibilidades da minha poesia.

 

 

AP - O zen adentra em sua poesia (bem como todo o elogio do devir e do movimento), parecendo menos pela maneira imediatamente mística do que pela vertente da contracultura poética. A poesia é um modo místico ou é o zen que é um modo poético?

 

SC - Talvez a poesia seja mesmo o meu grande misticismo. Acredito realmente que a palavra pode ser transformadora. Sempre me interessou a poesia que representa uma ruptura nos sentidos, nas nossas concepções cotidianas. Talvez por isso a minha obra seja vista por alguns críticos e leitores como dentro da tradição "visionária". E a poesia, ao contrário das disciplinas místicas, é aberta, possibilita uma amálgama, um mosaico de idéias muitas vezes díspares. Não conseguiria, por índole e formação, aceitar uma atividade de outra natureza.

 

Para tentar entender isto, é preciso voltar para a minha infância. Meu pai é um filho de judeus alemães exilados do nazismo que se tornou ativamente ateu e sempre valorizou a racionalidade como um bem maior. Minha mãe, filha de católicos e assim como meu pai professora universitária com idéias de esquerda, misturou de forma afetuosa e divertida seu ateísmo com superstições cotidianas. E junto com isso houve a Manina, que ajudou a me criar, uma negra do interior da Bahia que chegou na infância a ver Lampião e seus cangaceiros, e que trazia todo um universo mágico popular para dentro da minha casa. Vivi então sempre entre estes dois mundos: o mágico e o racional. A poesia foi a forma que encontrei de conciliá-los.

 

 

AP - Você fala de um fazer coletivo de poemas. Como isso se deu? Conte-me como foram essas experiências.

 

SC - Tive algumas experiências marcantes de criação coletiva. Principalmente na fase ‘heróica’ da revista Azougue, entre 1995 e 1997, quando criávamos os poemas-editoriais juntos. Estes textos não eram a reunião de versos individuais em poemas coletivos, mas cada verso era pensado e concebido por todos. Primeiro, junto com o Maurício Ferreira e o Danilo Monteiro, no apartamento em que o Maurício morava na rua Frei Caneca, no centro de São Paulo, e que servia de sede e open house da Azougue. E depois com o Bruno Zeni e o Alexandre Ferraz. Não só o resultado final dos poemas me agrada até hoje, como foram algumas das experiências mais fortes de amizade e troca intelectual que já tive.

 

 

AP - Ao longo do livro, há parênteses solitários espalhados pelas páginas. Eles parecem cílios caindo como gotas de chuva que ampliam a imensidão. Quem são esses parênteses?

 

SC - Você está falando dos quatro poemas do ciclo 'aproximações, encantamentos': fogo, noite, vento e mar. Vejo estes poemas como piramidais, os parênteses abrindo diferentes níveis até chegar ao vazio, ao silêncio. Cada poema deles tem 6 partes, que são divididas por parênteses, criando a estrutura  ( ( ( ) ) ). Assim, o poema pode ser lido linearmente ou a parte 1 com a 6, a 2 com a 5, e a 3 com a 4. Foi uma tentativa minha de trabalhar com uma leitura múltipla.

 

 

AP - Sergio, seguindo um belo título de um belo poema seu, quem somos nós agora?

 

SC - Nós, eu e você, nossas gerações, somos anfíbios. Nascemos numa época, estamos vivendo em outra. A geração do Leo, meu filho, já é uma outra espécie...

 

As mudanças no mundo são inacreditáveis. O jorro de informações imediatas da Internet, a música eletrônica (Caetano diz num belo parágrafo perdido no meio de sua autobiografia que na civilização ocidental a educação musical sempre foi melódica e harmônica, e agora com a música eletrônica é tonal e rítmica), a montagem cinematográfica pós-vídeo-clipe, com seu alto teor poético e sinestésico, tudo isto está criando uma nova espécie humana. Se melhor ou pior, só o tempo dirá. Mas estamos vivendo num tipo de idade média, num período de transição, que, como diz um amigo, é o período onde surgem os barbarismos. Mas não são barbarismos permanentes, apocalípticos, são pequenos abalos sísmicos que antecedem a criação e o assentamento de uma nova sensibilidade coletiva, de uma nova ética que virá.

 

Agora, como anfíbios e poetas, temos que pensar também no que não se pode perder do nosso mundo, em manter as possibilidades vivas para o futuro. É um trabalho duro e imensamente belo.

 

 

AP - Como você vê a atual poesia brasileira? Quais jovens poetas que apontam para um bom futuro de nossa escrita? Em qual poeta jovem você apostaria suas fichas, quero dizer, sua editora?

 

SC - A poesia brasileira vive um momento paradoxal: nunca houve tantos poetas escrevendo com tamanha consistência e apuro formal, com tamanha qualidade, e ao mesmo tempo a poesia nunca esteve tão distante dos leitores e do mundo. A libertação que ocorreu, na década de 1990, da obrigação de filiação a movimentos ou princípios estéticos, o que permitiu que poetas sejam informados simultaneamente por dicções tão díspares como Roberto Piva, Ferreira Gullar e Augusto de Campos, por exemplo, permitiu a criação de textos poéticos mais ricos, mas ajudou a esvaziar ideologicamente a nossa poesia.

 

Se isto é, a princípio, terrível, ao mesmo tempo abre espaço para uma renovação da poesia, que acredito estar começando a ocorrer. Os poetas que publicaram seus primeiros livros na década passada estão chegando agora à maturidade poética, e há uma nova geração de excelentes autores despontando, já informados e trabalhando no campo aberto pela poesia brasileira contemporânea.

 

Sobre as minhas apostas pessoais, elas estão na mesa. São os autores que editei na Azougue. Há duas gerações distintas: a classe de 66 (você, Caio Meira, Ricardo Lima), que já possuem uma obra mais extensa e fundamentada, e a minha geração, nascida na metade da década de 1970 (para brincar com o título de um belíssimo poema seu) —  especialmente Danilo Monteiro, Pedro Cesarino, Daniel Bueno e Luiza Leite. Estes quatro poetas não apenas tiveram seus livros de estréia publicados pela Azougue, como foram (ou são) co-editores da revista. Não por acaso, ou por relações afetivas extrapoesia. Acredito que haja um encontro real de interesse e vozes entre eles (e eu). São, certamente, os meus grandes companheiros de poesia.

 

Não poderia deixar de citar também Ericson Pires, Alexandre Barbosa de Souza e Bruno Zeni (embora seja mais prosador), Marcello Sorrentino e Maurício Ferreira, que fez o livro mais forte da minha geração, "Malasartes". O livro ainda é inédito, mas sonho em publicá-lo. Há muitos outros autores excelentes escrevendo, mas as minhas fichas pessoais, minhas maiores afinidades, estão nestes que citei.

 

 

AP - O que você acha o mais importante para a poesia hoje?

 

SC - A abertura para o outro. Ou melhor, para os outros. Para os poemas alheios, para as pessoas, para o mundo. É necessário, mais que nunca, a reconciliação da poesia e do mundo. Ela precisa redescobrir que é apenas um meio de expressão, não um fim. E assim se tornar novamente uma voz atuante e política, no sentido original da palavra.

 
 
 
 
 
novembro/dezembro, 2006
 
 
 
 
 
 
 

Sergio Cohn nasceu em São Paulo, em 16 de abril de 1974 e, desde os 25 anos, mora no Rio de Janeiro. Editou, entre 1994 e 2004, a revista literária Azougue e, em 2001, criou a Azougue Editorial. É autor dos seguintes livros de poemas: Lábio dos Afogados (São Paulo: Nankin Editorial, 1999); Horizonte de Eventos (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2002) e O Sonhador Insone (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2006). Atualmente, mora no Horto, com Araci e Leo. Saiba mais em Azougue Editorial e no site do autor.

 

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Alberto Pucheu nasceu no Rio de Janeiro, em 1966. É escritor e professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou os livros Na cidade aberta (Rio de Janeiro: Editora UERJ, 1993); Escritos da freqüentação (Rio de Janeiro: Editora Paignion, 1995); A fronteira desguarnecida (Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1997); Ecometria do silêncio (Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1999); A vida é assim (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001); Escritos da indiscernibilidade (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003). É o autor de Guia conciso de autores brasileiros (Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2002), com Caio Meira. É o organizador de Poesia (e) Filosofia, por poetas-fiósofos  em atuação no Brasil  (Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1998), com a participação de Adélia Prado, Alberto Pucheu, Antonio Cicero, Fernando Santoro, Marco Lucchesi, MD Magno, Orides Fontela e Rubens Rodrigues Torres Filho. Traduziu Tagore, Rabindranath, O coração de Deus (Rio de Janeiro: Ediouro, 2004), poemas místicos. Em 2007 lança A fronteira desguarnecida (Poesia Reunida 1993-2007) e seu livro de ensaios Pelo colorido, para além do cinzento, ambos pela Azougue Editorial. Mais em seu site.
 
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