O sonhador insone

 

ao léu e vário

abrir as portas

de par em par

e sair para as ruas

tudo é nascente

o sol pleno de setembro

traz da mão

do garoto que passa

um cheiro de fruta

e tudo é sorriso

contra qualquer amor

ou aviso

que se levante

(a vida já é um tempo

demasiado interessante)

 

 

 

 

 

 

O sonhador insone (I)

 

ombros, lábios, vapor, pêssego

o favor do esquecimento

um ângulo no espelho

que subtrai do olhar

tudo que é próprio

então mergulho –

a imponderável medusa

restituindo o que pulsa

a um

(o amor como o inferno

não permite medida comum)

 

 

 

 

 

Araci

 

a estrela da manhã não é uma estrela

mas luz roubada

                            Lúcifer

e seu pentagrama

lentamente desenhado no céu

ano após ano

é Vênus, seu beijo

amanhecido, intimidade

além de qualquer intimidade

asas e a sensação

de finalmente pertencer

a algum lugar, ao seu

lado

estrela nenhuma

que me guia

 

 

 

 

 

Passeio

 

esta é uma cidade

inabitada

em suas ruas, pela

madrugada,

todo passeio é possível:

saltar Parque Lage adentro

ou caminhar

à sombra dos

próprios pensamentos

no muro lá fora

um mendigo rabiscou

mandalas:

é possível encontrar

as mesmas em quase

toda cidade

construindo uma geografia

outra, íntima

uma aventura talvez

para o olhar

assim também

seu corpo para

mim:

o que se abre,

o que se reflete

em sorriso

nenhum crime, nenhum castigo

 

 

 

 

(Do livro O sonhador insone – 2006)

 

 

 

 

 

Alice

 

o sonho é uma pedra

arremessada no poço

 

sua turbulência

moldando o dia.

 

 

 

 

 

Da circunstância

 

aqui no meu refúgio

no vigésimo andar

pego o livro do Breton

ainda marcado de vinho

daquela tarde

 

quando entrelençóis

nos esquecemos.

A chuva caía fina

e ao meio-dia

na praça Buenos

 

Aires cavaquinho

e grades conviviam.

Abaixo, o balé ready-

made das calçadas

passa caudaloso

 

como a prosa

invadindo esta poesia.

 

 

 

 

 

Horizonte de eventos

 

Era um ser sem saudade.

O que significa o máximo exílio,

desterro.

Não tinha saudade porque vivia

num mundo de instantâneos

simulacros.

A presença constante

de tudo que desejasse.

Saudade, já em si,

é um simulacro.

Mas um simulacro

ao avesso.

Ausência preenchendo espaço.

Saudade é quando a coisa

pertence ao espaço

e não ao tempo do encontro.

É quando permanece mesmo partida.

Ocupa espaço com sua ausência.

Não sei se era um ser feliz.

Não tinha noção da morte,

a nostalgia de um tempo que não vivemos.

Era um ser sem questões.

O fato é que foi se tornando pedra

uma imensa rocha cravada à beira do mar.

O rosto voltado para cima

eternamente

se deliciando com a mutação das nuvens.

 

 

 

 

 

Mnemo

 

Há um resíduo de futuro

no vento, fotograma ante-

cipado, montagem de fragmentos

induzindo à cena. Como

aquela árvore se curvando com-

placente aos invisíveis pesoas,

como o mormaço

predizendo chuva. Repito,

há um canto anterior

a qualquer canto, uma réstia,

um eco primeiro, como um som

que ressoa por dentro de cada

palavra, como todo gesto se

desenha e apaga, então

novamente. Há o revés,

o diáfano, o termo, beleza

posta e perdida, o desen-

cadeamento, assim

como a sede do vapor

por uma forma, assim

como tudo retorna

à imaginação

por trás da cortina

da memória.

 

 

 

 

 

(Do livro Horizonte de eventos – 2002)

 

 

 

 

 

 

MEMENTO

 

permanece o eu

este simulacro

frágil lacre de refrões

 

e a noite te pede de volta

 

 

 

 

 

(Do livro Lábio dos Afogados – 1999)

 

 

 

 

 

 

*

 

por mim ficaria para sempre ali

                   a sua orla

                            longe das ruínas

                                      que se desconhecem

                                                        ruínas

                   & dançam

                            a amarga melodia

                                      dos motores

 

ali

         à sombra do seu sorriso

                   seus olhos de naufrágio

 

por mim ficaria para sempre onde

                   seu gesto me desvendasse

                            um espaço

                                      um refúgio sempre em fuga

 

por mim

 

         mas você tem a suave permanência

                   de tudo que é volátil

 

                            & novamente

                                      a minha vida

                                               escoa

                                                     & livre

                                                                  flutua

 

 

 

 

 

(Revista Azougue – Equinócio – 1995)

 

Sergio Cohn nasceu em São Paulo, em 16 de abril de 1974, e desde os 25 anos, mora no Rio de Janeiro. Editou, entre 1994 e 2004, a revista literária Azougue e, em 2001, criou a Azougue Editorial. É autor dos seguintes livros de poemas: Lábio dos Afogados (São Paulo: Nankin Editorial, 1999); Horizonte de Eventos (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2002) e O Sonhador Insone (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2006). Atualmente, mora no Horto, com Araci e Leo. Saiba mais, em Azougue Editorial e, em breve, no site do autor,  em construção.

 

 

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