©dominique torquato
 
 
 

 

 

 

 

(...) Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas coisas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

 

 

Os versos acima, de Alberto Caeiro sobre Cesário Verde, bem poderiam se aplicar à figura de Ricardo Lima, o poeta paulista que costuma dizer que sobrevive em Campinas mas vive mesmo em Morungaba, na sua chácara. Ricardo acaba de publicar Impuro Silêncio, pela Azougue Editorial. Antes disso, este natural de Jardinópolis publicou Cinza Ensolarada (Azougue) em 2003, Chave de Ferrugem (Nankin) em 1999, e Primeiro Segundo (Arte Pau-Brasil) em 1994. Desde o começo, anunciava-se um poeta maduro, com a capacidade de concentrar muita sensibilidade em poucas linhas.

 

 

 

 

 

 

Leila Guenther - Como você começou a escrever? Houve alguma obra, algum autor, que despertou o poeta em você?

 

Ricardo Lima - Por volta dos 18 anos. A lembrança mais marcante é a da leitura de Cem Anos de Solidão. Presente do meu professor de História, Wanderley Fontelas, quando fiz 17 anos. Descobri um mundo novo. Eu gostava de ler, mas havia lido Machado e Alencar na hora errada e sem orientação. E já tinha me entupido com leituras infanto-juvenis de péssima qualidade.

 

 

LG - Lendo seu último trabalho, Impuro Silêncio, tem-se a impressão que algumas marcas do seu estilo, como a concisão e a contenção, notadas por Leonardo Fróes e Fábio Weintraub, se intensificaram ainda mais em relação ao seu livro de estréia, Primeiro Segundo. Como se deu essa mudança, se houve?

 

RL - A mudança deve ter acontecido como extensão das mudanças que ocorreram e ocorrem na minha vida. Concordo com as análises, mas o que posso compreender é que escrevo de um jeito que é o único jeito que tenho para escrever. Não tenho condições de analisar marcas do meu estilo, mas posso apontar uma mudança temática. O primeiro, de 1994, trazia poemas escritos entre os 18 e 25 anos de idade. O meu tema era o "incerto amor". Pois era aquilo o que eu vivia. Hoje, aos 40 anos, casado e pai, os poemas falam sobre o passar do tempo, questionam a morte, o sentido do mundo.

 

 

LG - Sua poesia, extremamente enxuta e lapidada, nos remete um pouco a um tipo de poesia voltada para a metalinguagem, para o fazer poético. No entanto, ao contrário disso, seus poemas refletem grande preocupação com o humano, são ligados ao mundo, inspirados, no bom sentido, eu diria. Quanto de inspiração e de transpiração há no seu trabalho? Como você escreve um poema, afinal?

 

RL - Fico meses sem escrever nada. De repente passo dias escrevendo todas as noites. Depois tem o período de bisbilhotar poemas. Reler e rasgar em pedacinhos para não deixar um verso sequer para a funcionária de casa ler no dia seguinte. Escrever outros. Depois gaveta. Passar semanas, meses, sem reler. Sempre reescrevo. Acho que nunca tive um poema que caiu pronto: 100%. Quando vejo que tenho uns 50 poemas e pelo menos 30 passam pelo meu senso crítico, arrisco uns três ou quatro palpites na praça, para ver se presta ou se estou equivocado. Se a resposta for positiva, tento fazer virar um livro. Essa é a parte mais chata, ir atrás de editora, fazer lançamento, etc. Vira evento social. Deixa de ser literatura.

 

 

LG - Você precisa de alguma condição especial para escrever? Tem algum "ritual"?

 

RL - Não. Geralmente escrevo à noite, com a casa dormindo. Durante o dia, com a casa acordada, se estou no computador é com trabalhos jornalísticos e de propaganda.

 

 

LG - O que significa, para você, ser poeta nos dias de hoje? Se não fosse poeta, por qual meio você gostaria de se expressar?

 

RL - Se eu não escrevesse poesia, gostaria de me expressar por meio da pintura. As artes plásticas me fascinam mais que a música. Talvez porque eu não seja cego para um quadro, mas surdo para um acorde. Gosto de música, mas sou analfabeto nessa matéria.

 

Eu não saberia dizer algo interessante ou original sobre "ser poeta nos dias de hoje", porque não penso sobre isso, essa questão nunca me foi colocada. A minha vida profissional nunca foi ligada à literatura (eu queria ser arqueólogo, estudei um pouco de geologia, concluí jornalismo, trabalhei de produtor cultural e há 10 anos trabalho com comunicação ligada ao setor de agronegócio). Minha atividade literária se resume aos livrinhos que publico esporadicamente, e com pouca repercussão. Por isso não posso imaginar o que significa ser poeta nos dias de hoje, embora saiba que poderia ir até a estante, recolher uns Octavio Paz e Ezra Pound para uma resposta muito mais inteligente. Mas não vejo poesia nisso.

 

 

LG - Seu estilo conciso, a presença da natureza e o próprio encadeamento dos poemas em Impuro Silêncio lembram um pouco os princípios do haikai. Você escreveu algum haikai? Tem interesse? E como organizou a disposição dos poemas no livro?

 

RL - Não escrevi e não tenho interesse em escrever, embora goste de ler haikais.

 

Quando tenho uma seleção razoável dou um jeito de reunir os poemas. Alinho por temas, palavras que se repetem, rimas ou estilos. Alguns já nasceram na seqüência que eu gostaria. Como os poemas são curtos e sem título, tento dar uma alinhavada no livro, torná-lo mais coeso. Nesse último deixei de fora dois ou três por sugestão do Sérgio Cohn (editor da Azougue) que achou que não tinham a ver com o conjunto. Eu aceitei a sugestão, pois meus livros são sempre curtinhos e me interessa a estrutura mais orgânica, para se ler numa sentada.

 

 

LG - Observo na sua obra uma recorrência de temas ligados à fixação de um momento que pode se perder, à palavra medida, à observação quase resignada do que há ao redor, à importância do silêncio e de saber calar. Estou enganada? Fale um pouco sobre as temáticas que perpassam seus poemas.

 

RL - Os temas são os que abordam um homem comum numa vida comum numa cidade comum aos quarenta anos de idade. O baque do jornal arremessado no alpendre, os brotos na árvore que cresce, os cabelos que diminuem ano a ano. Agora, no meio do caminho, ainda encaramos filhos que nos ensinam sorrisos e amigos que partem, para aumentar o grito, ecoar o silêncio.

 

 

LG - Vejo que trabalhou em várias áreas, de pesquisas em arqueologia até cinema. Isso influenciou sua escrita de algum modo?

 

RL - Tive — e tenho —  uma trajetória completamente desordenada, já que nunca consegui pôr em prática uma carreira profissional. Por paixão seria arqueólogo, mas não deu. Essa passagem pela arqueologia, geologia, jornalismo, produção cultural e comunicação no agronegócio, num período de 20 anos e em 5 cidades, mais que uma influência na escrita, aponta mudanças nos rumos da minha vida. E, se a própria vida se mostra assim tão permeável, imagino que a poesia e tudo o mais que venha de mim também sintam e absorvam isso.

 

 

LG - Como é sua relação com outros escritores? A convivência é tão enriquecedora quanto a obra?

 

RL - Conheço poucos escritores e não os tenho no meu dia-a-dia, já que me ocupo com outras coisas como expliquei anteriormente. Os poucos que conheço são ótimos, pois se fossem ruins eu já teria me desligado deles. Essa é a grande vantagem de viver fora do mundo literário. Não preciso encontrar ninguém que eu não goste, nem sentar à mesa (da conferência ou do boteco) com chatos de galocha.

 

Sou amigo de alguns escritores, principalmente poetas, que gosto muitíssimo e gostaria de encontrar mais do que encontro.

 

Se a convivência é tão enriquecedora quanto a obra, a meu ver, não permite uma resposta única. Posso dar dois exemplos: com o Caio Fernando Abreu sim, com a Hilda Hilst não. O Caio foi um amigo muito generoso, lia meus poemas, criticava, mandava riscar, mandava ler isso, ler aquilo. Mais ou menos o que a Hilda fez com ele quando morou na casa dela nos anos 70. Mas com a Hilda, que conheci em 1988, foi uma convivência discretíssima, poucos contatos, nenhum entusiasmo. Com vinte e poucos anos já tinha lido toda ficção e poesia dela e adorava. Mas não bateu: nos conhecíamos, mas nunca fomos amigos.

 

 

LG - Há, em Impuro Silêncio, versos formados a partir de termos concretos e simples mas que juntos criam imagens desconcertantes, que surpreendem o leitor pelo imprevisto, pelo alto grau de "poeticidade", como "e cachorros / cachorros e / velhos // debatendo o mesmo osso", "ventos todos / temos", "pavio para ver / quando faltar luz", "tapetes / de voar / desorganizam / a alma", "vaso nu / na lápide / da pálpebra". Como você chega a tal resultado?

 

RL - Não sei. Saberia dizer como o time do São Paulo chega a alguns resultados. Quando joga aberto com o Wilsinho pela direita, o Danilo ligado na partida e o Lenilson batendo de fora da área. Mas não tenho idéia de como chego a determinado grau de poeticidade. Para essa resposta faço uso de uma expressão que ouvi do ótimo Evandro Affonso Ferreira: "sou passarinho, não ornitólogo".

 
 
 
 
novembro/dezembro, 2006
 
 
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Ricardo Lima nasceu em Jardinópolis-SP, em 17 de novembro de 1966. É poeta e jornalista. Sobrevive em Campinas e vive em Morungaba (SP). Publicou Primeiro segundo (São Paulo: Arte Pau-Brasil, 1994),  Chave de ferrugem (São Paulo: Nankin, 1999), Cinza ensolarada (Rio de Janeiro: Azougue, 2003) e Impuro silêncio (Rio de Janeiro: Azougue, 2006).  Mais em Crítica&Companhia e em Germina:

 

> Poemas
> De Poucos E Raros
> Poeta Em Pele De Tigre
> Com Quantas Palavras Se Faz Uma Sibila
> A Fábula da Cebola

 

 

 
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Leila Guenther nasceu em 1976, em Blumenau, Santa Catarina. Formou-se em Letras pela Universidade de São Paulo e atualmente trabalha como revisora de texto em Campinas, São Paulo, onde reside. Publicações: o livro O e Vôo noturno das galinhas (São Paulo: Ateliê Editorial, 2006), além de contos em revistas e jornais de literatura. Com Paulo Franchetti, contribuiu com um texto para o livro Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (São Paulo: Garamond, 2006) e realizou a edição comentada de Iracema, de José de Alencar (São Paulo: Ateliê Editorial, 2006).

 

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> Por um fio