Mandaram-me entrevistar o Mário Bortolotto. Disseram-me que daria certo, porque somos dois porras-loucas. No bom sentido, claro. Via Jornal de Poesia, do Soares Feitosa, sacado num jornal vagabundo há alguns anos nos cafundós, cheguei ao Bortolotto pela Coyote, depois da Cult, numa resenha do Ademir Assunção sobre a poesia do Joca Reiners Terron. Trajetórias. João Filho

 

 

 

 

 

 

João Filho - Mário, você já passou dos 40, vingou por conta própria, filho de caminhoneiro e dona de casa, está de saco cheio de frescura e entrevista, ganhou prêmios importantes, é um sujeito em verdadeira atividade artística, a pegada de sua escrita é corrosiva, e, acima de tudo, você é um dos grandes poetas dramáticos do teatro tupiniquim. Fale um pouco sobre sua infância e adolescência nos subúrbios de Londrina.

 

Mário Bortolotto - Um moleque comum, jogando bola na rua e saindo muito na porrada. De dez brigas na saída da escola, eu tava envolvido em pelo menos oito. Chegava todo quebrado em casa, com o guarda-pó rasgado. Minha mãe enlouquecia.  Sempre fui muito tímido e tinha que me impor de alguma maneira. Quando descobri definitivamente a literatura, acho que descobri também esse jeito diferente de me impor, mas aí eu acho que o estrago todo na minha personalidade já tava feito. Me tornei um sujeito muito agressivo. Acho que direcionei essa agressividade e revolta pra literatura. E eu só acredito em literatura que sai na porrada.

 


JF - Os primeiros rabiscos. Começou com poesia, prosa ou teatro? E o que te fez entrar no universo da leitura?

 

MB - Histórias em quadrinhos. Aprendi a ler com histórias em quadrinhos. Meu tio era surdo e como não podia assistir tevê, ficou viciado em histórias em quadrinhos. Tinha um guarda-roupa cheio. Passava as tardes lá, lendo. O dia que passava sem ler gibi, entrava numa trip muito ruim. Ficava cold Turkey total. Quando entrei na escola, já sabia ler, tanto é que entrei no meio do ano e terminei como o "segundo melhor aluno" da classe. Lembro que ganhei um tecido pra fazer uma camisa, algo assim. Meu irmão desenhava e escrevia histórias em quadrinhos meio que de brincadeira. Então comecei a fazer a mesma coisa. A primeira coisa que escrevi foi histórias em quadrinhos. Desenhava em papel de caderno, escrevia as histórias e depois montava um gibi com numeração e tudo o mais que tivesse direito. Tinha a minha Editora MB.


 

JF - Como foram os primeiros anos em São Paulo?

 

MB - Difíceis, mas educativos. Nos primeiros quatro meses, não tinha lugar pra morar. Ficava andando com uma mochila nas costas, procurando um lugar pra dormir. Dormi em vários hoteizinhos vagabundos de 10 reais. Daqueles que uma puta já te atende com os peitos de fora e as paredes são tão finas, que é impossível dormir sem ouvir trilha sonora de pornochanchada. Às vezes, dormia na casa de amigos, mas não gostava de abusar. Então, quando dormia na casa de um Brother, passava pelo menos quinze dias sem pedir pra dormir de novo. Pra não encher o saco de ninguém. Se tinha 10 reais, já ia direto prum hotelzinho do centro e foda-se. Comia cachorro quente do centro e churrasco grego. Comecei a dar aulas de teatro numa escola de periferia de Utinga e consegui alugar um quarto na Monsenhor Passalacqua. Tudo foi melhorando gradativamente.


 

JF - Fale um pouco dessa vivência, essencialmente urbana, do seu berço natal até onde hoje você se encontra.

 

MB - Costumo dizer que só sei escrever sobre vivência urbana. Não sofro de Síndrome de Mazzaropi e não há nada que me interesse fora dos grandes centros urbanos. É onde me sinto à vontade. Gosto de andar à tarde pelo centro da cidade de São Paulo. Gosto da balbúrdia toda, me sintonizo com a cidade e respiro junto com ela. Quando escrevo, os sons da cidade são a minha trilha sonora predileta.

  


JF - Mais uma vez, pela milonésima, o que é e como funciona na prática o Cemitério de Automóveis?

 

MB - É o grupo que fundei em 1982 com dois amigos de Londrina. Eu continuo com o grupo desde então. Atualmente, há mais quatro pessoas além de mim (Fernanda, Gabriel, Wiltão e Marcelo Montenegro). Há também uma porrada de colaboradores. Fizemos, em 2002, uma mostra com 79 atores. O Cemitério de Automóveis não é apenas um grupo de teatro nos moldes clássicos de "grupo de teatro", mesmo porque não me interesso apenas por teatro. É uma plataforma de lançamento de livros, peças de teatro, shows de música e cinema. Estamos fazendo agora o primeiro filme, que é uma adaptação da minha peça Getsêmani. E deve sair em breve o livro O Bar da frente — trajetória teatral e etílica do grupo Cemitério de Automóveis, contando toda a história do grupo. É o único grupo capaz de fazer uma mostra com 26 peças, 79 atores, em três meses e com duas semanas de ensaio. E o mais louco é que funciona.

 


JF - Bukowski ou Henry Miller? E por quê?

 

MB - Bukowski, sempre. Sou fã de Henry Miller. Li todos os livros dele. Mas Bukowski é o maior de todos. Minha maior influência, desde o dia que li Cartas na rua, na Biblioteca de Londrina. A poesia do Velho Buk é áspera, cortante, e sofisticadíssima, embora não pareça sofisticada à primeira vista e a partir de uma leitura mais superficial. Por baixo de toda a aparente simplicidade dos textos dele, há um lirismo exacerbado e de alta sofisticação. Cuidado com o que parece simples. Muito cuidado.

 


JF - Nos ditos anos de formação (que só terminam quando se morre) leu e viu teatro brasileiro? O quê?

 

MB - Eu vi mais do que li. Minha formação teatral é de Festivais de Teatro. Sempre que pintava um festival que oferecia rango e alojamento durante uma semana, a gente se inscrevia. Podia não ter grana, e quase nunca tinha mesmo, mas só o fato de ter comida e um ginásio de esportes pra dormir durante a semana, já tava valendo. Ficamos mais de quinze anos participando de festivais. Então vi de tudo. Todos os Nelsons, Plínios, Vianinhas e todos Tchecovs e Shakespeares. Poucas montagens eram boas, isso é verdade, mas é sempre melhor assistir teatro do que ler teatro.

 


JF - Já perdeu a conta de quantos inimigos matou em seus escritos? Fale sobre um que você teve o prazer.

 

MB - Cara, nunca tive prazer real em matar ninguém. Já me matei várias vezes. Mas metaforicamente falando, há uma cena na peça À queima-roupa, que eu acho foda. O cara é um psico killer e tá comendo um cachorro quente na rua. Um mendigo loser total, chega pra ele e conta como é um fudido, como perdeu a mulher, a filha, o amigo e até o cachorro. Como tiraram tudo dele. E ao final da história pede um pedaço de cachorro quente pro cara, que então engole o último pedaço de cachorro quente e diz: "Qual é, cara? Este é o meu cachorro quente". Coloca um revólver na mão dele e vai embora. O mendigo então, depois de um momento de hesitação, empunha a arma e aponta pra platéia, decidido. Black-out.

 

E quanto aos inimigos, peguem a senha e entrem na fila. Não esperem que eu vá atrás de vocês. Não tenho vocação pra Frank Castle.

 

 

 

 

 


JF - Quantas peças suas foram encenadas? Alguma no exterior?

 

MB - Mais de 40 peças, pelo menos, já foram encenadas. Houve uma montagem de uma peça minha em Portugal, mas era montagem em faculdade de teatro. Houve leituras públicas na França e em Portugal e deve rolar outra no México ainda esse ano. E vai sair agora a tradução de Nossa vida não vale um Chevrolet, na França. Parece que rolou uma leitura na "Comédia Francesa" em Paris.

 


JF - Você vê muito quadrinho e cinema. O que tem visto e achado interessante?

 

MB - O que eu vi de melhor em cinema esse ano foi Sin City, que é justamente o casamento mais feliz de quadrinhos com cinema. E tô na fissura de assistir Factotum, adaptação cinematográfica do livro do Bukowski. Em quadrinhos tem saído muita coisa bacana. A Conrad tem publicado vários Crumbs. Blues é obra-prima. Acompanho também, religiosamente, o 100 Balas do Brian Azzarello. E leio tudo que traz a assinatura de Garth Ennis, Brian Michael Bendis, Bruce Jones, Greg Rucka, Warren Ellis, Mark Millar e do Grande Giancarlo Berardi.

 


JF - O que vê em televisão?

 

MB - Quase nada. Quando a MTV passava videoclipes, ainda costumava deixar a tevê ligada, de preferência sem som, enquanto estava escrevendo. Mas há muito tempo não ligo a tevê. Até gostaria de assinar uma tevê a cabo pra assistir algo, já que sempre gostei muito de tevê. Mas é que a tevê aberta tá realmente impossível. Tô torcendo pra que a novela Bang Bang estabeleça um diferencial, já que alguns amigos meus estão escrevendo-a (Reinaldo Moraes, Mário Prata e Chico Matoso).


 

JF - Assinou o Manifesto Literatura Urgente? Se sim, tem acompanhado o desenrolar na imprensa e o que acha?

 

MB - Eu não assinei. Acho legal a iniciativa do Pinduca (Ademir Assunção) e da rapaziada que está encabeçando o projeto. São caras da minha mais alta estima, confio cegamente neles, mas tenho como princípio não participar de nenhum movimento organizado ou desorganizado. Mas o cara da "Veja" foi bem mal-intencionado ao criticar o movimento. Achei palhaçada da parte dele.

 


JF - O que é estar vivo e ser para Mário Bortolotto?

 

MB - Sei lá, Brother. Tá no pacote, né?

 


JF - Como encara a velhice e a morte?

 

MB - Cada dia que passa, fica mais próximo. A gente vai se divertindo. Tem um poema meu que tem um verso assim: "Morte nenhuma me redime / viver tem sido meu único crime".

 


JF - Difícil conceber escritores hoje em dia que, de uma forma ou de outra, não lidem com o fantasma da decadência, quando não, com a extinção da espécie. Segundo os teóricos, fala-se até mesmo em atraso biológico. Acredita numa melhora espiritual e socioeconômica do homem? Comente. 

 

MB - Não acredito em grandes revoluções sociais. Só acredito em revolução individual. Um sujeito no interior da Bahia — apesar de todas as adversidades, e de ter nascido com a carta virada do avesso — ainda assim, caçar e devorar literatura da maneira mais primata possível e se tornar um dos escritores mais inventivos e originais da nova literatura brasileira. É claro que eu tô falando de você, Brother. É nisso que eu acredito.

  


JF - Você sempre foi um entusiasta da escrita do Jorge Cardoso que, em 2004, publicou "Mal pela raiz", pela editora Baleia. Fale sobre.

 

MB - Jorge Cardoso é um católico louco, como já era Kerouac. Sua escrita, mística, sanguinária e esquizóide, me influencia e me fascina. Sou católico como ele (e como Kerouac) e consigo sacar de onde vem toda a violência e solidão devastadora. Seus textos têm uma força e uma originalidade difícil de identificar e traduzir. A crítica brasileira é excessivamente míope, por não ter ainda percebido a riqueza da literatura do cara. Quando perceber, a porrada vai ser forte, pode ter certeza. E aproveito aqui para lamentar o fim da Editora Baleia, que publicou além de Jorge Cardoso, o seu livro que é fudidaço e ainda o ótimo Pornografia pessoal de um ilusionista fracassado do Nilo de Oliveira.

 


JF - Volta e meia confundem, principalmente os mais jovens, a vida pessoal do homem com a do escritor Bortolotto. Como você lida com isso? 

 

MB - Não dissocio. A minha vida pessoal se confunde com a do escritor. Eu sou escritor e ponto final. Só não gosto quando pensam que eu sou um porra-louca tempo integral, como alguns personagens meus. Até sou porra-louca, mas não tempo integral. Costumo ser de madrugada, completamente bêbado e fazendo cagada. Mas durante o dia, costumo ser um profissional exemplar.

 


JF - O tipo de vida que você leva, dá pra tirar férias, ou são como férias paulistas, tiradas enquanto trabalha?

 

MB - Férias? Ando planejando há quinze anos. Estive no Festival de Cinema de Fortaleza esse ano, a convite do Festival, porque estava sendo exibido um curta em que eu trabalhava como ator. Quando me dei conta e olhei pela janela do hotel para aquele mar estupidamente bonito, percebi que estava em férias. Eram involuntárias e não premeditadas, mas eram férias.

 


JF - Algum trabalho novo sendo escrito? Qual?

 

MB - Tem o livro do grupo [Cemitério de Automóveis], que eu tô terminando. E também tô escrevendo mais dois livros. Um é a continuação do romance Mamãe não voltou do supermercado, em que eu retomo o personagem do livro. Chama-se Billy, a garota e, assim como no primeiro, persegue a tradição pulp. O outro chama-se Cinco estrelas em Copacabana e é a história de um diretor de teatro pobretão, que ganha uma permuta de um mês num hotel cinco estrelas em Copacabana, mas não tem dinheiro pra tomar um chope sequer na praia. 

 


JF - E sua banda? Fale sobre. 

 

MB - A gente entra em estúdio ainda esse ano. A banda chama-se Tempo Instável. O nome do disco deve ser Desagradável. Tem um clima cool jazz vagabundo. É uma puta banda com músicos geniais e um vocalista picareta (eu), tendo à frente o meu parceiro, o Maestro Marcelo Amalfi.

 


JF - Qual o seu cachorro engarrafado predileto? E como combate a ressaca monstro?

 

MB - É o velho Jack. Não dá pra beber sempre, já que o orçamento não permite, mas tenho sido presenteado com garrafas do gênero. E eu combato a ressaca com muita água e um novo porre na noite seguinte. Alguns poemas do Dylan Thomas também costumam ser mais eficazes que qualquer Engov. Não há nada mais embriagante que boa literatura. Acho que você sabe muito bem disso.

 

 

 

 

outubro, 2005
 
 
 
 
Mário Bortolotto (Londrina-PR, 1961). Escritor, dramaturgo, ator, diretor e músico. Ganhou em 2.000 o Prêmio Shell de "Melhor Autor de Teatro do Ano" e também o Prêmio APCA pelo "Conjunto da Obra". Atualmente, mora em São Paulo. Publicou Mamãe não voltou do supermercado (romance, Atrito Art, 1996); Seis peças de Mário Bortolotto - Vol. 1 (Atrito Art, 1997); Para os inocentes que ficaram em casa (poesia, Atrito Art, 1998); Seis peças de Mário Bortolotto - Vol. 2 (Atrito Art, 1998); Gutemberg Blues (artigos, Atrito Art, 2002); Bagana na chuva (romance, Ciência do Acidente, 2003); Sete peças de Mário Bortolotto – Vol.  3 (Atrito Art, 2003); Doze peças de Mário Bortolotto – Vol. 4 (Atrito Art, 2004). Escreve o Atire No Dramaturgo.
 
 
 
 
João Filho (Bom Jesus da Lapa, sertão, 1975). Poeta, escritor, vive em Salvador da Bahia. Publicou Encarniçado ou anotações dum comedor de cânhamo (São Paulo: Baleia, 2004). Escreve o Hypperghettos. Mais aqui e aqui.