Invocação
Irada
Ficou o nome no tempero da comida,
nas
fibras da carne
na saliva,
no ouro da mina ficou o
nome.
Ó nome desleal que me escavacas
qual
se fosse punhal ou fero abutre,
que te fiz para assim
permaneceres
dentro de meu ser, se fora dele
não existes nem
notícia te preserva?
Foge, foge de mim para tão
longe
quanto alcance a mente humana delirante.
Suplico-te que
deixes
um vácuo sem esperança de lotar,
amplo, soturno espaço
irremediável,
mas deixa-me, larga-me, evapora-te
de toda minha
vida e meu pensar.
Sei que não me escutas,
és indiferente
a meu apelo
nem dependes de teu próprio querer.
Gás
flutuante,
perversa essência eterna torturante,
vai-te embora,
vai
anel satânico de vogais e consoantes
que esta boca repete sem
querer.
carlos drummond de
andrade
Baby-me, rasga-rasga, meu inevitável fantasma. que
matéria-nome é passível de devastação? nada de retornança ao chão
originário para que com os séculos novamente seres. quero a dissolução
sem indícios: termo outro que indique... nada! quero a negança do grafar
disso. agora-manhã e o que fazes, dádiva-desgraça? assola esta perrengue
carcaça com ruas por onde vagara de mãos dadas, lanchonetes onde
maternalmente consolara, AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH. só berro: a
imagem sonora que mais se aproxima dessa intensa, Baby-me, trauma.
só.
— ei-ei, poeta-pirraça,
desista! desistir? renegar? sabes o que é cáustica? sabes o que é
sol-sertão? tudo ensaiado-ineficácia. tudo. corpo lavrado, drogas
injetadas, livro publicado, distância ampliada e... lá está o inevitável
fantasma. cabelo sedoso, anca brancura, púbis ávido, estampa ilícita,
perigosíssima, pois a alma é fraca.
tentei desmaterializá-la. é que
tensos-instantes o perfume de seu ser me dilata. é que milésimo
desmedido o espaço onde gesticulara (no antigo nicho onde a memória
magoa-se de tão translúcida) me ataca; aí digo "vem, vem, meu infindável
fantasma", aí digo "vai-te embora, xô-xô, infausto fantasma".
endoido?
— o cabra macho?!
iiiiii, já comi muito. dizia e risávamos. pois nus no nicho antigo por
trás se acoplara. na coxa, na bunda, na boca, no sexo gozara. percebe
que só o berro é que pode oferecer uma
aproximação?
cansado não me
faço, estou. o que te insinuas me assusta. apavorado estou a correr
páginas, as que de ti não deixam marcas, quais? é possível
(deus-ou-demônio responda) nesta tentativa de relato, esmurrar sua cara?
vontade de inundá-la, não com porra, com esta veemência
escandalosa.
repito, repiso,
como não? meu iniludível fantasma, ao vê-la na forma externa que és vou
nocauteá-la. pularei contra, travarei com dentes-garras, pois a
procurada é a substância-essência, é encontrá-la e esmigalhá-la. —
mas... mas... e o vivido, poeta-pirraça? respondo: aquilo que apagado só
pode ser à bala? — não-nada, a confluência de dois-num, é recordares do
nicho-antigo, da solidão inescrutável dos amantes sobre a face terrena
de que fala Nelson; o universo ali os usando como tubo condutor, casal
pinçado para suportares a desgraça-dádiva. treplico: jeito não há,
então? — não.
um poço de
náusea, transbordo. não dizê-la seria o apuro formal, a constelação que
se acasala num acaso de pormenores. explosão em que se pode ser núcleo e
observar as faíscas que se propagam, enquanto ardemos.
Baby-me, raiva-raiva. sujeito
que bem soubesse evitaria palavra. o silêncio é mudo, não atrapalha.
circulo pela casa, pela clareza do dia não deveria fantasma; mas quê!
está aí a rondá-la.
basta
fósforo para o incêndio-fantasma. dormia? ocultava-se? tripudiava. o que
interno gela a qualquer hora ou data; gela, gela, gela; não é o atiçar
faca, ou a punhalada — Baby-me, esburacassa.
esteve em outros lençóis, estive em outras trepadas
(a forma externa). mas parágrafo atrás disse — é a esfera que no peito
larva. paixão-purgatório que fenece quem arca. — isso é masoquismo sem
causa! rebato: e por que achas que tento a desmaterialização do
nome-insistência? sinais de fumaça através desta carta? é cruel para que
ela-fantasma, ao lê-la, derrame uma ácida-lágrima.
canto-grafo:
porque meu amor
há
sempre uma guerra iminente
então me dou
e me salvo deste mundo
aparato, aparente
não nasci pra ser alvo de dente
radares,
rancores são sempre
sem sua seiva, dolor
não durmo tranqüilo e a
sede
da cama, pavor
vem fazer sua meia-parede
no meu corpo
de
bicho descrente.*
— isto é um blues-bolero amarguíssimo. é. foi numa
noite-terror em que assombravas.
o olhar último subindo escadas, na rodoviária (aqui
peço a ti, iniludível fantasma, que se concentre em toda forma
aguda-cortante), subindo, passos de gata e vira-se para o
choque-desligamento dos olhos-lástima. disseste certa vez — queria tê-lo
cá para apreciar o reverbero dos seus olhões; não, nossos. tanta dor
(apieda-te) e por que não me larga?
dizia "ô poesia, para que não
mergulhe nesse oceano de incertezas que sou", quem é volátil é o corpo,
que apodrece e regressa. este absurdo de ser'estar que, quando desfruta,
ainda assim é pesar. diz, visagem amada, diz que alucino, diz que
idealizo, diz que no espaço-perda não passa de...
fantasma.
outra manhã e o que
me segredas? o branco das nádegas, o impalpável da fala, o... ia grafar
resumo do conjunto, a desesperação de perpetuamente nomeá-la. sabemos
que território, língua se vão no desdobrar da humana saga, mas tu,
irremediável-fantasma, continuarás aí, a latejar apavorante
penada.
deixa-me,
imploro-te, feito o poeta Carlos na sua Invocação Irada. o que mais
queres? ápice agônico, taquicardia sufocante, vísceras escalavradas,
loucura gráfica? já tivestes. extremos nos perseguem desde o dia em que
perguntastes meu nome numa noite etílica depois do teatro. música antes?
respirar sem dor, é o que peço, assombrada.
Baby-me, desencosta! o
texto-ebó, o ritmo-despacho, a oferenda-encruzilhada, o poema-praga, a
missa-missiva, tudo-tudo, já não teves? então, porra! larga... larg...
lar... la...
*Musicado por Francis Guimarães
João Filho,
poeta, escritor, vive em Bom Jesus da Lapa, Bahia, onde nasceu, em
1975. Publicou Encarniçado ou anotações dum comedor de cânhamo
(São Paulo: Baleia, 2004). Escreve o Hypperghettos. Mais aqui.