©edward holub
                                                                
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Invocação Irada
 
Ficou o nome no tempero da comida,
nas fibras da carne
na saliva,
no ouro da mina ficou o nome.
 
Ó nome desleal que me escavacas
qual se fosse punhal ou fero abutre,
que te fiz para assim permaneceres
dentro de meu ser, se fora dele
não existes nem notícia te preserva?
 
Foge, foge de mim para tão longe
quanto alcance a mente humana delirante.
Suplico-te que deixes
um vácuo sem esperança de lotar,
amplo, soturno espaço irremediável,
mas deixa-me, larga-me, evapora-te
de toda minha vida e meu pensar.
 
Sei que não me escutas,
és indiferente a meu apelo
nem dependes de teu próprio querer.
Gás flutuante,
perversa essência eterna torturante,
vai-te embora, vai
anel satânico de vogais e consoantes
que esta boca repete sem querer.
 
carlos drummond de andrade
 

        Baby-me, rasga-rasga, meu inevitável fantasma. que matéria-nome é passível de devastação? nada de retornança ao chão originário para que com os séculos novamente seres. quero a dissolução sem indícios: termo outro que indique... nada! quero a negança do grafar disso. agora-manhã e o que fazes, dádiva-desgraça? assola esta perrengue carcaça com ruas por onde vagara de mãos dadas, lanchonetes onde maternalmente consolara, AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH. só berro: a imagem sonora que mais se aproxima dessa intensa, Baby-me, trauma. só.
        — ei-ei, poeta-pirraça, desista! desistir? renegar? sabes o que é cáustica? sabes o que é sol-sertão? tudo ensaiado-ineficácia. tudo. corpo lavrado, drogas injetadas, livro publicado, distância ampliada e... lá está o inevitável fantasma. cabelo sedoso, anca brancura, púbis ávido, estampa ilícita, perigosíssima, pois a alma é fraca.
tentei desmaterializá-la. é que tensos-instantes o perfume de seu ser me dilata. é que milésimo desmedido o espaço onde gesticulara (no antigo nicho onde a memória magoa-se de tão translúcida) me ataca; aí digo "vem, vem, meu infindável fantasma", aí digo "vai-te embora, xô-xô, infausto fantasma". endoido?
        — o cabra macho?! iiiiii, já comi muito. dizia e risávamos. pois nus no nicho antigo por trás se acoplara. na coxa, na bunda, na boca, no sexo gozara. percebe que só o berro é que pode oferecer uma aproximação?
        cansado não me faço, estou. o que te insinuas me assusta. apavorado estou a correr páginas, as que de ti não deixam marcas, quais? é possível (deus-ou-demônio responda) nesta tentativa de relato, esmurrar sua cara? vontade de inundá-la, não com porra, com esta veemência escandalosa.
        repito, repiso, como não? meu iniludível fantasma, ao vê-la na forma externa que és vou nocauteá-la. pularei contra, travarei com dentes-garras, pois a procurada é a substância-essência, é encontrá-la e esmigalhá-la. — mas... mas... e o vivido, poeta-pirraça? respondo: aquilo que apagado só pode ser à bala? — não-nada, a confluência de dois-num, é recordares do nicho-antigo, da solidão inescrutável dos amantes sobre a face terrena de que fala Nelson; o universo ali os usando como tubo condutor, casal pinçado para suportares a desgraça-dádiva. treplico: jeito não há, então? — não.
        um poço de náusea, transbordo. não dizê-la seria o apuro formal, a constelação que se acasala num acaso de pormenores. explosão em que se pode ser núcleo e observar as faíscas que se propagam, enquanto ardemos.
        Baby-me, raiva-raiva. sujeito que bem soubesse evitaria palavra. o silêncio é mudo, não atrapalha. circulo pela casa, pela clareza do dia não deveria fantasma; mas quê! está aí a rondá-la.
        basta fósforo para o incêndio-fantasma. dormia? ocultava-se? tripudiava. o que interno gela a qualquer hora ou data; gela, gela, gela; não é o atiçar faca, ou a punhalada — Baby-me, esburacassa.
        esteve em outros lençóis, estive em outras trepadas (a forma externa). mas parágrafo atrás disse — é a esfera que no peito larva. paixão-purgatório que fenece quem arca. — isso é masoquismo sem causa! rebato: e por que achas que tento a desmaterialização do nome-insistência? sinais de fumaça através desta carta? é cruel para que ela-fantasma, ao lê-la, derrame uma ácida-lágrima. canto-grafo:
 
  
porque meu amor
há sempre uma guerra iminente
então me dou
e me salvo deste mundo aparato, aparente
não nasci pra ser alvo de dente
radares, rancores são sempre
sem sua seiva, dolor
não durmo tranqüilo e a sede
da cama, pavor
vem fazer sua meia-parede
no meu corpo de
bicho descrente.*
 

        — isto é um blues-bolero amarguíssimo. é. foi numa noite-terror em que assombravas. 
        o olhar último subindo escadas, na rodoviária (aqui peço a ti, iniludível fantasma, que se concentre em toda forma aguda-cortante), subindo, passos de gata e vira-se para o choque-desligamento dos olhos-lástima. disseste certa vez — queria tê-lo cá para apreciar o reverbero dos seus olhões; não, nossos. tanta dor (apieda-te) e por que não me larga?
dizia "ô poesia, para que não mergulhe nesse oceano de incertezas que sou", quem é volátil é o corpo, que apodrece e regressa. este absurdo de ser'estar que, quando desfruta, ainda assim é pesar. diz, visagem amada, diz que alucino, diz que idealizo, diz que no espaço-perda não passa de... fantasma.
        outra manhã e o que me segredas? o branco das nádegas, o impalpável da fala, o... ia grafar resumo do conjunto, a desesperação de perpetuamente nomeá-la. sabemos que território, língua se vão no desdobrar da humana saga, mas tu, irremediável-fantasma, continuarás aí, a latejar apavorante penada. 
        deixa-me, imploro-te, feito o poeta Carlos na sua Invocação Irada. o que mais queres? ápice agônico, taquicardia sufocante, vísceras escalavradas, loucura gráfica? já tivestes. extremos nos perseguem desde o dia em que perguntastes meu nome numa noite etílica depois do teatro. música antes? respirar sem dor, é o que peço, assombrada.   
        Baby-me, desencosta! o texto-ebó, o ritmo-despacho, a oferenda-encruzilhada, o poema-praga, a missa-missiva, tudo-tudo, já não teves? então, porra! larga... larg... lar... la...
 
 
 
*Musicado por Francis Guimarães
 
 
 
João Filho, poeta, escritor, vive em Bom Jesus da Lapa, Bahia, onde nasceu, em 1975. Publicou Encarniçado ou anotações dum comedor de cânhamo (São Paulo: Baleia, 2004). Escreve o Hypperghettos. Mais aqui.