©sisse brimberg
 
 
 
 
 
 
 

Os paraísos artificiais da poesia de Baudelaire1

 

Quando dizemos Paraíso, pensamos, suponho, em duas coisas imediatamente: um Paraíso teológico, religioso, moral, um lugar para onde vão os que o merecem por sua virtude. É o Paradiso de Dante Alighieri, representado  pela luz e espíritos sutis; e um paraíso pessoal, psicológico, amoral, um lugar que se define por ser um não-lugar, uma Cocagne da arte de Brueghel, o Velho. Mas também teríamos de considerar, entre outros, um representante perturbador da idéia de paraíso: Charles Baudelaire. E digo perturbador porque Baudelaire não está simplesmente glosando a tópica — utópica, para ser mais preciso — de um lugar mirífico onde os prazeres não correm com o tempo, então imóvel do gozo eterno; Baudelaire instaura um nível de insatisfação no paraíso do prazer e no da contemplação, ele é uma presa do tédio, não do ennui, mas do spleen byroniano, que se propõe como coisa sofisticada, um tédio existencial refinado.

Diremos portanto que aí está um paraíso insuficiente, minado por um momento de completa descrença em qualquer tipo de redenção humana. Nem teologia, nem sonhos de prazer sem fim compensam. O Paraíso se torna um lugar semelhante ao que era a arte para Baudelaire, artificial, e se multiplica, incapaz de coesão unitária: são paraísos artificiais, que guardam semelhança distante com os dois paraísos anteriores. Também como o teológico, é ideal; também como a utopia do prazer, para o deleite das sensações. Mas o seu fracasso está na eternidade. O que tem a eternidade a oferecer?2 O spleen, o tédio existencial. Baudelaire é profundamente cristão, particularmente satânico. É um homem mundano, mas desejoso de sublime; quando vislumbra instantes desse sublime, reage com falibilidade humana e está criado o impasse. A perfeição eterna é ansiada e repulsada pelos olhos falíveis do homem.

São duas as crises exemplificadas pela poesia de Baudelaire: uma crise da idéia de Natureza (que havia sido estupidificada o suficiente por Rousseau para se tornar um alvo para o homem inteligente) e da idéia de Paraíso, nas quais se insere sua voz apenas para dispersá-las por não poderem conviver. A natureza ou é boa por ser natural e, portanto, divina; ou é impiedosa porque natural e, portanto, divina. A sociedade corrompe os homens, mas a natureza é atroz porque não elaborada, mas instintiva. O que contraria as duas proposições? A arte, que é amoral, tem como finalidade a representação, e se distancia da natureza por ser artificial, por ser uma elaboração destinada a polir os excessos da espontaneidade. Ou seja, partilha a amoralidade da Natureza, mas a supera na elaboração artificial, finalidade exclusiva daquilo que se pode considerar o paraíso.

Baudelaire é o oposto do estoicismo de Lucrécio e o De Rerum Natura. Mesmo lingüisticamente, Baudelaire se distancia do latim clássico de Lucrécio, da época de Cícero;  ele prefere o latim da chamada "decadência", o latim de Tertuliano, de Ausônio. O latim com o qual escreveu "Franciscæ meæ laudes", que já é na verdade goliárdico, tenta se aproximar de uma noção de decadência lingüística, encarada então como a beleza máxima: porque mais próxima de seu fim, atinge seu máximo de beleza. É a tese do grupo que descendeu diretamente de Baudelaire, o grupo dos chamados décadents3 de Verlaine, de Mallarmé, do grande Huysmans de À Rebours ou Là-bas, para os quais o cruzamento de arte e religião resultou num híbrido, que assumia a própria arte como religião.

Poderíamos também pensar que os paraísos são artificiais apenas porque não existem: são sonhados, feitos de haxixe, ou que ganham seu sentido perfectivo (o único aceitável) por meio do engenho artístico. O perigo que Baudelaire representa no seio da sociedade burguesa do século dezenove é precisamente esse: ele se oferece como a antítese de tudo em que se acredita, e foi por isso que Rimbaud o chamou "deus" e por isso As Flores do Mal foram processadas com base no argumento de imoralidade, que já havia sido levantada contra Madame Bovary, de Flaubert. Os burgueses são gente que não teve a educação dos nobres; são comerciantes ou uma classe incipiente e insípida de capitalistas; e, de resto, há os pobres, que sejam espancados até acordarem do pesadelo de suas existências. A religião das classes médias mal alcança o génie du christianisme, que por si já não era grande coisa; a literatura e o teatro respondem pelo epíteto inventado por Corbière para Vigny: são a larme écrite, a "lágrima escrita". O maior escritor francês é uma alma melodramática, tão tola quanto colossal, Hugo (admirado por Baudelaire; aliás, admiração mútua), que teria seus célebres funerais públicos.

Para essas pessoas e circunstâncias é que Baudelaire desfilou como dandy, satanista, boêmio, obsceno, repleto de tédio existencial. Baudelaire não era inocente o bastante para o naturalismo e forjou um núcleo de beleza contaminado de desespero, que era, em parte também, uma pose, destinada a esnobar a pouca imaginação e a imbecilidade em que o fim do século XIX europeu queria submergir as personalidades difíceis de se reduzir ao mínimo comum da convivência.

Enfim, por isso é que é bastante evidente que a chamada "modernidade", cujo primeiro exemplar seria o próprio Baudelaire, não pode ter acabado. Pound escreveria nos Cantos que le paradis n’est pas artificiel, mas Pound já lutava uma insana luta pessoal para vencer a si mesmo. As circunstâncias que viram essa "modernidade"  nascer não desapareceram, mas, ao contrário, se acentuaram a tal ponto que as posições da arte acabaram por se acirrar e se apresentam hoje como um enigma de dificílima solução diante dos esforços dos exegetas. É, portanto, um paraíso perdido, também. 

 

 

Plus fols c’ome del mon: Peire Vidal

 

De motz ricos no tem Peire Vidal

"Não temo Peire Vidal por suas ricas palavras" 

                                                           Uc de Lescura          

 

Talvez o mais vasto anedotário a respeito dos trovadores da Provença recaia sobre um único nome: Peire Vidal. E assim se diz que se fez passar por lobo para cortejar uma dama chamada Loba; que se casou com uma grega, neta do imperador de Constantinopla, e se fez chamar imperador; que teve a língua decepada pelo ciúme de um barão de quem cortejava a esposa; que roubou um beijo a uma outra dama enquanto ela dormia, tendo se inserido secretamente em seu quarto, etc.

Suas extravagâncias nos chegam através das vidas e razós, nas quais se dá notícia do poeta e do poema, respectivamente. Esses textos em prosa foram escritos entre o século XIII e o XIV — isto é, um ou dois séculos depois da morte do poeta — e interessam não só pelo aspecto informativo muitas vezes duvidoso, mas pelo estilo que guarda um sabor de época. Um trovador como Uc de Sant Circ ficou conhecido por também escrever vidas, recolhendo parte da cultura da languedoc sob o nome de Uc Faidit (Hugo, o Exilado, por causa do "desterro" de Sant Circ na Itália4), no Donatz Proensals, tratado de gramática e versificação. Mais tarde os textos biográficos foram reescritos em francês por Jean de Nostredame, menos famoso que, mas tão mentiroso quanto seu irmão, o autor das arcanas Centúrias. Por esses motivos eu incluí a versão da razó da canção De chantar m'era laisatz (O cantar já não me apraz) do poeta plus fols c'ome del mon, ou mais louco homem do mundo, nesta pequena introdução à sua arte.

Documentos escritos em latim nos falam de um tal Petrus Vitalis, que dificilmente reconheceríamos como sendo o trovador, porque se pode concordar com um estudioso tão versado no assunto quanto Martín de Riquer, quando diz que não se trata de um nome lá muito peculiar, o de Peire Vidal5. De qualquer modo, uma das menções diz que Petrus Vitalis seria um mercador de peles, o que excita a imaginação dos provençalistas, uma vez que a vida começa dizendo

 

           Peire Vidals si fo de Tolosa. Fils fo d'un pelicer.

                   (Peire Vidal foi de Tolosa. Foi filho de um peleiro.)

 

Peleiro, ou peleteiro é aquele que prepara ou comercia peles.

A versão que fiz é de sua canção mais famosa, porque nela se encontram quase todos os motivos pelos quais Vidal se tornou um personagem do folclore da Provença: sua presunção a respeito de ser um drutz (amante) irresistível; a loucura e infelicidade com a morte do conde Raimon de Tolosa, um dos seus mais queridos protetores — outro seria Afonso II de Aragão, a quem o poema é dedicado e a quem seria levado por dois de seus barões, Guilem (d'Alcala ou Raimon de Moncada) e Blascol Romeu; a história da dama Loba de Pueinautier, motivo da sua licantropia (do grego lykanthropía, em que o sujeito se julga transformado em lobo), que levou Ezra Pound, Ford Madox Ford e Valle-Inclán, entre outros autores, a glosar o tema6; e os exageros de Vidal, que lhe valeram epítetos de louco, tonto, bizarro, etc.

Vidal não pode ser visto exatamente como um trovador do gênero de Arnaut Daniel, o mais refinado representante do trobar ric, isto é, do engenho insuperável em composições de rima, métrica e estrofação intrincadas; nem pode ser posto ao lado de Bernart de Ventadorn, o mais delicado dos expoentes do trobar leu, ou leve, no qual as palavras cantadas devem ser compreendidas de imediato. Vidal reclama para si uma arte impecável e sua vida atesta que lhe vinham os cantares com grande facilidade, para o que ainda se suspeita de seu caráter ajogralado, seu talento para improvisação, mais ou menos sugerido também por ele vir de classe baixa — e tal era a origem da maioria dos jograis. A ironia contra o trobar ric nos apresenta Vidal como talvez devamos considerá-lo, único

 

    Ajostar    

                e lassar

    sai tan gent motz e so,

    que del car  

                e ric trobar

    no·m ven hom al talo

 

(Ajustar /e laçar/as palavras sei tanto/ que alcançar,/ o rico trovar,/ não me pode no canto)

 

porque suas palavras são ricas, como disse Uc de Lescura, e não inteiramente voltadas para a graça ligeira do trovar leve. A crítica universitária romântica costuma preferir este último trovar para lhe render elogios de valor e chamar Ventadorn de "o melhor trovador", porque na sua voz há mais "sinceridade", seu amor seria mais "verdadeiro", etc. Como é ridículo alegar sinceridade em nome de quem já deitou no leito de terra há sete séculos, e disputar esse palavreado inútil com quem se convenceu dele por um amor particular, talvez seja a hora de ler Vidal7.                                                

 

RAZÓ8

 

            Peire Vidal, pela morte do bom conde Raimon de Tolosa, se amargurou muito e se entregou a grande tristeza. E vestiu-se de negro, e talhou as crinas e as orelhas a todos os seus cavalos, e a si e a todos os seus servidores fez raspar os cabelos da cabeça; mas as barbas e as unhas deixaram de cortar. Durante um longo tempo foi tomado por homem louco e doente. E houve que, naquele tempo em que andava assim doente, o rei Afonso de Aragão veio a Provença. E vieram com ele Blascols Romieus e Garsias Romieus e Martis del Canet e Miquels de Luzia e Sas d'Antilon e Guilems d'Alcala e Albertz de Castelveill e Raimon Gauseran de Pinons e Guilems Raimon de Moncada e Arnautz de Castelbon e Raimons de Cervera. E encontraram Peire Vidal assim triste e doente e assim tomado por homem doente e louco. E o rei começou a lhe pregar, e todos os outros barões seus amigos especiais, que ele devia deixar aquela dor e devia se alegrar e devia cantar, e que ele devia fazer uma canção, para que levassem a Aragão. Tanto lhe pregaram o rei e seus barões que ele disse que se alegraria e deixaria o que a dor lhe obrigava, e que faria uma canção como lhes agradasse. E ele amava a Loba de Pueinautier e madame Estefania, que era da Sardenha. E mais recentemente estava enamorado de madame Raimbauda de Biol, que era mulher de Guilem de Rostanh, que era senhor de Bioill. Bioill fica em Provença, na montanha que divide Lombardia e Provença. A Loba era de Carcases, e Peire Vidal se fez chamar Lobo por ela e portava armas de lobo. E na montanha de Cabaretz se fez caçar pelos pastores com mastins e com lebréus, como se caça um lobo. E vestiu uma pele de lobo para dar a entender aos pastores e aos cães que ele era um lobo. E os pastores o caçaram com seus cães e o espancaram de tal forma que ele foi levado como morto à residência da Loba de Pueinautier.

            Quando ela soube que aquele era Peire Vidal, ela começou a achar bastante engraçada a loucura que ele havia feito e a se rir muito, e seu marido igualmente. E receberam-no com grande alegria; e o marido fez que cuidassem dele e o meteu em lugar recolhido, no melhor que conhecia e de que dispunha. E o mandou ao médico, que o medicou, e tanto o cuidou que foi curado.

            E como eu havia começado a dizer de Peire Vidal que havia prometido ao rei e aos seus barões cantar e fazer canções, quando foi curado, o rei armou e vestiu a si e a Peire Vidal; e foi bem preparado; e fez então esta canção — a qual vós ouvireis — que diz:

                                              

De chantar m'era laisatz

Per ira e per dolor...

 

               

            DE CHANTAR M'ERA LAISSATZ

 

I

De chantar m'era laissatz
per ira e per dolor
qu'ai del comte, mon senhor;
mas pos vei qu'al bon rei platz,
farai tost una chanso,
que porte en Arago
Guilhems e
٠N Blascols Romieus,
si
٠l sos lor par bons e lieus.

 

II
E s'ieu chant cum hom forsatz,
pus Mosenher n’a sabor,
non tengatz per sordeyor
mon chan, que
٠l cor m'es viratz
De lieis on anc non aic pro,
que
٠m gieta de sospeisso;
e
٠l partirs es me tan grieus
que res non o sap mas Dieus.

III
Traitz sui et enganatz
a lei de bon servidor,
qand hom li ten a follor
so don degr'esser honratz;
e n'aten tal gazardo,
cum selh qui ser a fello;
mas se derenan sui sieus,
a meins me tenh que juzieus.

 

IV
A tal domna
٠m sui donatz
aue viu de joi e d'amor
e de pretz e de valor,
on s'afina si beutatz
cum l'aurs en l'arden carbo;
e quar mos precs li sap bo,
be
٠m par que٠l segles es mieus
e que
٠il rei tenon mos fieus.

 

V
De fin joi sui coronatz
sobre tot emperador,
quar de filha de comtor
me sui tant enamoratz,
et ai mais d'un pauc cordo
que Na Raimbauda
٠m do,
que
٠l reis Richartz ab Peitieus
ni ab Tors ni ab Angieus.

 

VI
E sitot lop m'appellatz,
no m'o tenh a deshonor,
ni se
٠m baton li pastor
ni se
٠m sui per lor cassatz;
et am mais bosc e boisso
no fatz palaitz ni maizo,
ni ab joi li er mos trieus
entre vent e gel e nieus.

VII
Bels Sembelis, Saut e So
am per vos et Alio;
mas car la vista
٠m fo brieus,
en sui sai marritz e grieus.

 

VIII
La Loba ditz que seus so
et a
٠n ben drech e razo,
que, per ma fe, mielhs sui sieus
que no sui d'autrui ni mieus.

 

 

O CANTAR JÁ NÃO ME APRAZ

 

            I

            O cantar já não me apraz

            pelo dó e pela dor

            — morto o conde, meu senhor —,

            mas vejo que ao bom rei faz

            bem que faça uma canção:

            que a levem a Aragão

            Guilherme e'N Blascol Romeu,

            se soou leve a quem leu.

 

            II

            Se por força eu canto — aliás,

            meu senhor lhe acha sabor—,

            não penseis que sai pior

            meu canto: amor me desfaz

            pois me encanta o coração,

            mas despreza e só diz não;

            esse partir, dar adeus,

            como dói só sabe Deus.

 

            III

            Me traiu essa falaz,

            me danei, bom servidor,

            que me têm por louco em flor

            onde planto a honra em paz;

            não aguardo um galardão,

            só, talvez, o de um vilão;

            e se eu for agora seu,

            serei menos que um judeu9.

 

            IV

            De tal dama estou atrás,

            que vive de riso e amor,

            muito mérito e valor.

            Sua beleza brilha mais

            que o ouro ardendo em carvão;

            já que chamo sua atenção,

            quase ouço: "o mundo é seu".

            Feudo? nada! o reino é meu.

 

            V

            Coroa de amor me faz

            bem maior que um imperador,

            que esta filha de comtor10

            em tanto amor me compraz:

            Vale mais este cordão

            — Raimbauda o deu com paixão —

            que pra Ricardo valeu

            Tors, Angieus, Peitieu11.

 

            VI

            E se lobo me chamais,

            não me causa um grande horror,

            quer me bata até um pastor,

            quer me cace em matagais;

            amo o bosque, o ribeirão,

            não palácio, nem mansão,

            nem neve me demoveu,

            vento ou gelo me prendeu.

 

            VII

            Bela Cimbelina, então

            amo Saut, So e Alião12

            por vós; mas triste e sandeu

            é quem vos vê pouco, eu.

 

            VIII

            Loba diz: "és meu, sem não,"

            pouco, certo e com razão,

            pois sou mesmo mais seu

            que de outra ou até meu.

 

O provençal é uma língua sintética e elástica, que conheço bem pouco, e fiz o grande esforço pelo poema. Suas formas se ajustavam para além das fronteiras de um país, de modo que temos franceses, aragonoses, galegos, catalãos, etc. que escreviam poemas em provençal, ou na languedoc, o ocitânico, como alguns preferem, explicitando a situação dessa língua sem pátria. As dificuldades em traduzi-la não são poucas, em que pese o fato de ser também neolatina; e essas dificuldades começam pela abundância de termos monossilábicos (como no inglês), que dão aos poemas um ritmo mais sincopado do que se poderia traduzir em português, mesmo contando com a reprodução da artificialidade proposital das canções trovadorescas; outra dificuldade é arranjar uma quantidade de sons terminais que preencham a exigência de uma canção inteira.

Muitas vezes também, a nacionalidade de um poeta acaba por fazê-lo enxertar novos sons na língua, e, em geral, a repercussão que eles têm acaba por espalhá-los por composições alheias. Por vezes, ocorre ainda a complicação adicional de se encontrar vestígios das declinações latinas, que também encurtam o verso e deixam a tarefa ingrata de se economizar palavras para não arrebentar a métrica. Além disso, poucas, muito poucas pessoas no Brasil conhecem provençal antigo e mesmo as bibliotecas universitárias (como a da USP, por exemplo) estão mal aparelhadas para o seu estudo, o que é uma grande infelicidade.

No texto da razó (razão, ou arrazoado, uma pequena introdução que situava a história da canção e complementava a vida), optei por fazer a manutenção das orações paratáticas, reiteradas sempre por e. Alguns tradutores não consideram importante esse ponto, mas acredito que faz parte do espírito do texto, que é medieval e, portanto, eivado desse tipo de construção; é parte do seu sabor o modo pelo qual as seqüências de idéias vão se combinando, e creio que se deve traduzir. Talvez esse seja o principal a respeito da tradução do texto em prosa.

O poema de Vidal merece mais comentários. A canção provençal foi muito importante, mesmo se deixarmos de lado seu mérito intrínseco: ela deu origem à canção stilnovista de Guinizzelli, Cavalcanti, e do próprio Dante Alighieri. Da canção provençal vem também o soneto (se não me engano, em um dos versos de Arnaut Daniel ele chega mesmo a usar a palavra), que nada mais é que uma redução da forma canção, um "pequeno som".

O provençal, como lembra Augusto de Campos em Mais Provençais, é uma língua conservativa em relação ao latim, e portanto se diferencia do modo ditongado de pronunciar do francês, língua a que por vezes se assemelha (mais produtivo é compará-la ao catalão atual, muito parecido com o provençal dos trovadores). Por esse motivo e inclusive para tentar acentuar a peculiaridade dos sons terminais das rimas, tive de arrumar palavras que fizessem a manutenção do sentido a cada linha e da sonoridade mais característica, como em apraz  (para soar como laissatz, com a pequena variação em ais na tradução da última cobla, por exemplo). As demais terminações ficaram or (or), o (ão), ieus (eu). O poema é composto em versos de sete sílabas em seis coblas unissonans e duas tornadas de quatro versos cada, em que os sons terminais se resumem a o (ão) e ieus (eu).

Vale a pena comentar algumas soluções encontradas para fazer o poema em português alcançar alguma equivalência como o provençal. O verso inicial, por exemplo, diz, em provençal, algo como: Havia deixado de cantar. Para imitar o som, a minha proposta foi: O cantar já não me apraz, apenas com a modificação do tempo do verbo, o que é remediado pela afirmação posterior de que Vidal ainda vai cantar para satisfazer a seu senhor, Afonso, o rei de Aragão; e pelo fato de que afirma: E s'ieu chant cum hom forsatz, isto é, ele canta forçado pelo gosto que seu senhor tem nisso.

Uma modificação mais profunda foi feita nos versos: que me têm por louco em flor/ onde planto a honra em paz. O original diz: qand hom li ten a follor/ so don degr'esser honratz, isto é, quando se tem por loucura/ aquilo que deve ser honrado. O sentido metafórico é o mesmo e para a Idade Média não seria estranho figurar um sentimento por meio de uma metáfora, digamos, agrícola. Esse talvez seja o maior desvio de sentido operado pela tradução, que ainda tem ligeiras variações, como em: quase ouço: "o mundo é seu"./ Feudo? Nada! O reino é meu!, que em provençal aparece como: be·m par que·l segles es mieus/ e que·il rei tenon mos fieus, ou seja, bem me parece que o mundo é meu/ e que os reis têm meus feudos, em que se mudou por completo a relação sintática entre os versos, adquirindo também um tom mais esbaforido, que, por outro lado, quadra bem com a fama de louco de Vidal13. Outros versos a se comentar: Coroa de amor me faz/ bem maior que um imperador, que é, em provençal: De fin joi sui coronatz/ sobre tot emperador, que significaria, literalmente: De fiel alegria sou coroado/ acima de todo imperador. Fin joi vem, certamente, de uma expressão-chave da poesia trovadoresca, que é fin'Amors, o amor fiel, leal, belo, o amor que está regido pelos códigos corteses provençais (e é oposto ao amors fols, como podemos ler em Arnaut Daniel); por isso, optei por reduzir a expressão, acredito que com mínimo dano ao sentido, a coroa de amor.

 

 

E um famoso poema de e.e. cummings

 

I(a

 

fo

lh

as

 

ef

 

oi)

so

l

 

amento

                                  

                                 (tradução de Dirceu Villa)

 

 

Insistindo: o fim da épica?

ou, por metonímia (a parte pelo todo), das formas poéticas?

 

Retomando: ouvi certa vez de um professor muito sábio — não procurem em vão por ironia no adjetivo — a seguinte frase: "A épica acabou no século XVI", e costumava dar o exemplo de Os Lusíadas como um dos últimos representantes da classe. É arriscado dizer cabalmente que determinada forma se esgotou, ou desapareceu, sumiu sem deixar traços. Evitei incomodá-lo na ocasião, porque tinha idade, porque tinha coisas mais importantes para dizer, mas o faço agora para vocês, que têm uma paciência infinita: está errado. As formas serão sempre reinventadas quando ninguém mais puder acreditar que naquela árvore ainda despontará algum fruto. Houve a épica muito infeliz de Voltaire, a Henriade, no século XVIII. Houve, para nós ainda, um poema de dimensões próximas da épica e de qualidade poética considerável, o Uraguay. Houve o incomum e incompreendido Guesa Errante, de Sousândrade. Houve o espantoso The Cantos, de Ezra Pound. Houve, e nem faz muito tempo, um belíssimo poema épico caribenho chamado Omeros, de Derek Walcott ― livro que lhe deu a graciosa fortuna de vencer um Nobel em 1992.

Considerar a sabedoria infinita dos primeiros versos das Metamorfoses, de Ovídio: "cantar as formas mudadas em novos corpos". Nada desaparece. O velho sermão: as formas se condensam, ficam mais elásticas, viram formalismos, se diluem, voltam insuspeitas, mas nunca desaparecem.

 

 

 

abril, 2005