©leonel morales
 
 
 
 
 


 

JOÃO CABRAL VISITA O CEMITÉRIO MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA


I.

 

Fala menos de si
do que de quem o fez
tão à mostra (em vitrine
de um não-museu, talvez).

 

Se vitrine, porém,
há muito anda fechada,
pois o pouco que vende
não se compra com nada.

 

Não tem valor na praça,
não se conhece o preço:
é produto que existe
quando visto do avesso.

 

 

 

 

II.

 

Melhor dizendo: quando
há somente embalagem
e o que a ninguém se vende
fica esquecido, à margem.

 

E cada prateleira
esconde o peso bruto,
o valor, a textura,
e até mesmo o produto

 

que (dizem) não terá
prazo de validade.
Desde que, antes de tê-lo,
não se saiba a verdade.

 

 

 

 

III.

 

Diz mais de quem o fez
até sem ser vitrine.
Não se vende um produto
sem que a alguém se destine.

 

Sem que estejam, no rótulo,
as instruções de uso,
para que o comprador
seja o menor intruso

 

na caixa que o terá,
sem bula ou etiqueta.
Para que nova vida
entre ambos se intrometa.

 

 

 

 

IV.

 

Não sendo, então, vitrine,
talvez palanque seja.
Erguido para a fala,
em espiga ou bandeja.

 

Para uma fala cega,
sem corte, quase estanque,
embora bem nutrida
de seu dizer palanque.

 

Embora não perdida
de uma incerta oratória,
com seu luxo que esconde
(sendo ópera) escória.

 

 

 

 

V.

 

Se propenso a comícios,
se palanque, no entanto,
não se ouve o discurso,
o foguetório, o canto.

 

Quando muito, o silêncio
rouba dali seus mantos,
em tardes de cortejo
ou mesmo em dias santos.

 

E, ainda assim, seu porte
contudo não se abala.
Impõe respeito à praça,
com seus trajes de gala.

 

 

 

 

VI.

 

Um respeito de quem
não apenas se cala
diante do excessivo
de seus trajes de gala,

 

mas antes memoriza,
relembra, reconhece
o quanto desse luxo
excede a toda prece.

 

E compreende por que
seu porte não se abala:
sabe ser miserável
mesmo em trajes de gala.

 

 

 

 

VII.

 

Nome mais verdadeiro
isto aqui não teria
se Praça da República
fosse por ironia.

 

Mas não há coisa pública
mais certeira que a morte,
capaz de dar a todos
o travo de seu corte.

 

Capaz de armar em todos
a mesma entrevisão
de antecipar o pó
aos que ao pó voltarão.

 

 

 

 

VIII.

 

A nenhuma oratória
esta praça responde,
posta em frente ao palanque,
mas sem quando nem onde.

 

Não aceita o silêncio
de minério ou de monge.
Essa calma de quando
toda fala está longe

 

(ou de quando o discurso
pode não ter sentido
e o melhor a fazer
é tirá-lo do ouvido).

 

 

 

 

IX.

 

Não sabendo palavra
que de tumbas se arranque,
os que cruzam a praça
evitam o palanque.

 

Escapam do que possa
ser doado de estalo
a quem, sendo um passante,
não tenha onde guardá-lo.

 

Entre a praça e o palanque,
assim, faz-se a barganha:
um comércio de perdas
que com perdas se ganha.

 

 

 

 

PABLITO

 

É bom que se diga: quem não topa
forrar a barriga, ir-se embora
da miséria, em prol da grande Europa?
Foi o que ele pensou, certa hora.

 

Tinha uns dons de ator. Fizera teatro.
Na verdade, coisa de terceira,
sofrível, para não mais que quatro
gatos pingados. Esteve à beira

 

da fama, num rico comercial
dos embutidos "Bela Toscana".
Mas, dali pra frente, nem sinal
de sorte. Nenhum trabalho ou grana.

 

Se mandou então para a Espanha:
Cádiz, pra começo de conversa.
Depois o mundo, que a vida ganha
vale o preço de um tapete persa.

 

Um Almodóvar viria um dia,
com certeza. Todo o seu talento
há muito clamava e merecia,
para que se furtasse ao relento.

 

Mas a promessa não foi cumprida.
Ou foi, em parte: filme (com fatos
bem amargos) era a sua vida
num bar rampeiro lavando pratos.

 

 

 

 

JÓIA DE DIJON

 

Sempre dizia: meu avô materno
aqui chegou em 30, com a França
doendo nos cabelos, com o terno
puído pelo mar e sua dança.

 

De um sangue desses — jóia de Dijon —
é pouco todo o orgulho
, ela dizia.
E mais: sequer seria de bom-tom
não ostentar, com brio, a fidalguia.

 

Era grande demais a sua herança:
uns olhos claros como os do avô,
de um azul que somente o céu alcança.

 

Embarcou feliz, seguindo o tarô.
Venceu, por fim, chegando a ser, na França,
a atriz principal de um filme pornô.

 

 

 

 

ENTRE O VÁRIO E O VAGO

 

Chegar assim tão longe,
entre o vário e o vago,
para o sorver o mundo
de uma só vez, num trago.

 

Ir além, mais além
de seu próprio limite,
até que o risco seja
convívio. Ou convite.

 

 

 

 

ORÁCULO DE EROS

 

Para que não seja o teu corpo
a parte proibida do horto.

 

Mas a volúpia que marcasse,
entre volutas, tua face.

 

Somente a tua: mais nenhuma
com tamanho langor de espuma.

 

Com tamanha extensão de chama,
que até a memória se inflama

 

a cada letra do teu nome
(pois todas as outras consome).

 

Que seja o teu corpo o instrumento
tocado em pêlo contra o vento

 

e por ele, vento, encarnado,
a salvo de teu próprio achado,

 

por fim tão senhor quanto escravo
: corpo de onde eu mesmo me escavo.

 

 

 

 

A LUTA MAIOR

 

Mesmo o minuto que me vence
em si já estava vencido:
contra suas próprias vitórias
vibram velhas contas de vidro.

 

E é de vidro também o incêndio
da mesma falta de sentido
que me torna um lutador
até por seus mortos vencido.

 

Um lutador que desconhece
glória que lhe sirva de abrigo,
que sabe que a luta maior
se dá em seu corpo, consigo.

 

 

 

 

DO OITAVO ANDAR

 

Primeiro mandou pela janela
todas as lembranças da Marcela.

 

Depois o corpete de flanela,
os livros, tudo o que fosse dela.

 

E não tendo mais o que mandar
jogou o que restara do lar.

 

—  "Não apela!"

 

—  "Outra sua eu não engulo".


Dali para a própria Marcela

 

foi um pulo.

 

 

 

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Terra além mar, de Iacyr Anderson Freitas: um livro especial

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Fruto de um longo trabalho, este livro — o segundo da Colecção Pasárgada — possui capas impressas em papel Modigliani Cândido 320g e miolo em papel Modigliani Neve 95g. Ao final do volume, na página destinada à numeração do exemplar, consta o compromisso da editora portuguesa, referendado pelo autor, de não permitir a reedição da obra com as mesmas características técnicas e artísticas da edição princeps. Buscando preservar mais ainda o caráter especial da publicação, a estampagem dos poemas respeitou a ortografia brasileira. A seleção dos textos ficou a cargo do editor Ozias Filho e a apresentação do volume foi realizada pelo escritor português Amadeu Baptista, detentor de diversas premiações literárias em Portugal, além do Premio Pedro Mir, conquistado no México. Voltada especialmente para bibliófilos — a despeito da boa distribuição nas livrarias lusitanas —, a presente antologia tem tiragem de apenas quatrocentos e cinqüenta exemplares, todos espelhando a rubrica do autor, sendo quatrocentos numerados seqüencialmente, em algarismos indo-arábicos. Os cinqüenta exemplares restantes, não numerados, foram destinados à divulgação do lançamento lisboeta, ocorrido em 10 de maio do corrente ano, na Casa da América Latina, em evento que contou também com a apresentação de músicas brasileiras e com a leitura de poemas do livro em causa. Tal lançamento alcançou notável repercussão na imprensa lusitana. O suplemento literário Das Artes das Letras, inclusive, de grande circulação no norte de Portugal, divulgou uma longa entrevista com o poeta brasileiro, estampando sua fotografia na capa da edição. Tendo em vista as características da publicação e as dificuldades cambiais, apenas quarenta exemplares de Terra além mar foram reservados para a realização de somente um lançamento no Brasil, de cunho simbólico, com preços de capa bastante reduzidos, abaixo do custo efetivo de produção. A cidade escolhida pelo poeta não poderia ser outra: Juiz de Fora, seu solo de adoção. Como se encontra expresso na última página do volume, as receitas obtidas com a venda desta antologia serão destinadas ao financiamento dos novos títulos da Colecção Pasárgada.

 

 

 

 

outubro, 2005
 
 
 
 
Iacyr Anderson Freitas é autor de treze livros de poesia e três de ensaio literário, além do volume de contos Trinca dos traídos, publicado em 2003. Formado em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Juiz de Fora, o escritor obteve também, pela mesma instituição, o título de mestre em Letras (área de concentração: Teoria da Literatura).
 
Sua obra já foi traduzida para diversas línguas, tendo sido publicada em livros e periódicos de muitos países: Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Malta e Portugal. Além de colaborar intensamente na imprensa brasileira, já publicou poemas e textos críticos em Arquitrave (Colômbia), Comun Presencia (Colômbia), Fokus (Malta), International Poetry Review (USA), Los rollos del mal muerto (Argentina), O comércio do Porto (Portugal), Private (Itália), Punto di vista (Itália), Ricerca research recherche (Itália), Rimbaud Revue (França), Saudade (Portugal), Semicerchio (Itália) e Serta (Espanha), entre outros.
 
No decorrer de mais de vinte anos de atividade literária, Iacyr obteve também quase uma vintena de premiações nacionais e internacionais. Conquistou, por duas vezes (em 1990 e em 1993), o 1º lugar no Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte, bem como o 1º lugar no Premio Internazionale Il Convivio (obtido na Itália em 2002 e 2003), todos conferidos à sua obra poética. Na qualidade de ensaísta, alcançou o 1º lugar no Prêmio Nacional Centenário de Oscar Mendes (em 2002), além do Prêmio Nacional Eduardo Frieiro (em 2000). Seu livro de contos foi agraciado, em Cuba, com a Menção Especial do Premio Literario Casa de las Américas, outorgada em 2005.
 
De seu vasto percurso bibliográfico, além do livro de contos já citado, podemos destacar também, em poesia, Messe (1995), Oceano coligido (2000) e A soleira e o século (2002); em ensaio literário, Quatro estudos (1998) e As perdas luminosas (2001). Em 2005, em Portugal, foi publicada a nova versão de sua antologia poética, intitulada Terra além mar. Mais aqui.