O leitor que gosta de aprisionar em rótulo a poética de um autor encontrará uma tarefa difícil ao ler Nômada, de Rodrigo Garcia Lopes. Diria que impossível. É que a poesia dele é multifacetada e de uma versatilidade inaudita, o que impede que o autor seja incluído nesta ou noutra escola literária. Talvez o melhor a dizer é que o poeta em questão é pós-moderno: no sentido de que sua escrita se apropria de diversas máscaras para vestir o poema com a melhor roupagem poética possível. Para cada peça que forma um conjunto harmonioso, há um pouco de cada estilo literário. Tudo dentro da modernidade e do verso livre. Do pós-concretismo ao surrealismo.

 

Além disso — como muitos da geração 90 —, o poeta foge do lirismo conservador: "eu me recuso, entre outras coisas, a adotar uma idéia fechada de lirismo. Em muitos poemas eu sou um poeta lírico, mas não de um lirismo careta, 'condoreiro', sentimentalóide, mas um lirismo no sentido musical, de melopéia, bem como de uma visão de vida, como forma de percepção do mundo, um  lirismo de nosso tempo. Um 'delirismo', se quiser. Todos se esquecem de  que Cummings, por exemplo, que nos acostumamos  a  ver como  um  poeta 'concreto', era um poeta que, atrás do arcabouço técnico e da desconstrução da sintaxe, era profundamente lírico, às vezes até piegas. O que é preciso é expandir o terreno lírico e  permitir que este lirismo dialogue com outros discursos,  com outras formas poéticas, com estados que aparentemente podem  não ser a princípio considerados 'líricos'. Até mesmo poetas como Augusto e Haroldo têm momentos de intensidade lírica, não é? Ao mesmo tempo, acho ridículo que alguns poetas jovens hoje continuem com uma idéia velha de poesia, atrelados a pressupostos românticos, parnasianos, como  se  não tivesse nenhuma revolução poética desde Mallarmé, Blake e Rimbaud,  além das energias  liberadas  pela  contracultura. É simplesmente ridículo (...)", nos diz Rodrigo. Vejam um exemplo disso:



amar          você            silen

ciosa         mente,          saber há

quanto       tempo           tento

dizer          ao vento:      entre


 

Realmente, uma postura neo-parnasiana em pleno século XXI é ridículo. Porém há novos poetas que ainda insistem em uma visão débil do fenômeno poético. Mas do que estamos tratando aqui é de um livro que se fixa no panorama atual com uma força ímpar.


Como o poeta se insere na poesia atual? "Não pertenço a nenhuma panela, não acho que a 'pose' é mais importante que a poesia, como muitos por aí. Nunca 'comi na mão' de nenhum crítico e, principalmente, nunca fui puxa-saco de ninguém. O espaço que porventura eu tenha conseguido foi pelo mérito dos meus poemas. Tenho uma visão eclética da poesia que não se confunde com um 'vale-tudo'. Não vejo limites do que pode ser feito em matéria de poesia. Mas acredito que, mesmo escrevendo em vários estilos e dicções, todos os poemas têm minha marca.(...)".


A grife Rodrigo Garcia Lopes é mesmo um produto poético de qualidade — sem querer mercantilizar o que escrevo, mas aproveitar de uma discursiva mais light para falar de uma poesia de impacto. Leiam este poema com atenção:



HÁ ANOS VENDE SEU PEIXE

podre

seu suflê de vísceras

para vegetarianos sem o menor senso de humor.

 

Há tempos leciona

o dialeto do caos

dá conselhos ao sol

vende orquídeas escritas com

seu sangue

para vampiros que têm medo do vermelho.

 

Há séculos ele pratica

a extinta arte da pluviometria

fabrica idéias inúteis

conta os carros da esquina

compondo um poema longo e atroz.

 

Há minutos ele liga

Para uma secretária eletrônica

Que repete, estranho, exatamente

A gravação de sua própria voz.



Bem que esta peça sem título poderia se chamar "Escola do Absurdo". Quem, a não ser o poeta, vive as raias do absurdo? Qual desvario maior que ligar para si mesmo, para ouvir a própria voz? É o ápice da solidão. É neste lugar em que o poeta se encontra, na situação de fabricar idéias inúteis. Está inserida aí a questão da inutilidade da poesia. Para que serve a poesia em dias de tão desmedida corrida em busca do vil metal? Em tempo de celebridades camufladas de alguma coisa com algum recheio, que na verdade é algo oco.


Rodrigo Garcia Lopes dá um tapa e convida o leitor para um duelo. Decifra-me ou te devoro. Ah, é importante ressaltar que o poeta não se preocupa apenas com o lado estético e a desconstrução sintática do poema, trabalhando com vivacidade o conteúdo dos poemas. Deixando claro aos críticos que não concorda com a crítica superficial: "Isso é o oposto de idéias retrógradas como 'fulano não tem voz pessoal'. O que penso é que, se a poesia é mesmo um exercício de liberdade no plano da linguagem, é preciso mobilizar todas as referências e experiências que estão à nossa disposição. Sempre me incomodei com algumas críticas em relação ao meu trabalho, recriminando-me pela 'falta de unidade' nos meus livros. Isso demonstra grande ignorância por parte de quem as faz. Não gosto de poetas que se aferram a um determinado 'estilo' como um cão a seu osso. Há aí o risco da auto-imitação: ficar refém de uma fórmula que deu certo, repetir um 'estilo' que pretensamente dá unidade e coesão aos poemas".


É mesmo da fonte da experimentação de linguagem que bebe o escritor. São notórias as influências angustiadas dos surrealistas beat norte-americanos e toda a turma da contracultura.


Em toda obra experimental é comum o uso de neologismos. Aqui o neologismo começa do título Nômada: uma mistura de mônada e nômade. A primeira tem a ver com a filosofia de Leibiniz, que dividia a sua teoria metafísica em vários estágios ou como chamou mônadas. Nômade é um pouco da condição do autor de Polivox, em sua busca por uma linguagem que seja múltipla e também situação de vida do poeta, que já morou em diversos lugares do globo: "Desde meu primeiro livro (Solarium), eu quis dinamitar essas idéias de coesão e unidade que, ao menos para o meu caso, não. É um traço, acho, da minha personalidade meio nômade. Acho que o poeta deve atirar para todas as direções, deve praticar os mais diversos estilos, estar sempre experimentando. O ser humano é, por natureza, uma sensibilidade em conflito (...)".


Fundamentar o enfrentamento, a conflitante situação humana no planeta, é um dos motivos do trabalho de Garcia Lopes. Este é o magma nas mãos do mago.


O livro está dividido em 5 movimentos: Mônadas, Fragmentos em Movimento, Viagens à Hiper-realidade, Liberdade de Pó — Um Diário, e Nômada. Um dos mais instigantes é a segunda seção, Fragmentos em Movimento. Nela  — em sua maior parte de poemas em prosa — o autor utiliza quase de uma escrita automática à moda surrealista para atingir o seu objetivo: desconstruir o movimento. O poema é todo marcado com as siglas e as imagens que existem em um mostrador de CD player. É como se o poeta usasse o tempo para pausar, retroceder, parar, ir adiante:

 

 

<<
Lento dobra o tempo nestes, dois, azuis, que se

admiram quando mergulham no escurecer & seu

desbotar de sépalas qual folha trêmula na brisa intermitente. (...)


 

Há também espaço para o poeta antena da raça. Rodrigo mostra-nos, em peças de intensa beleza, a realidade de uma guerra inútil como a guerra do Iraque. O escritor enfrenta a possibilidade de ficar datado com versos de tamanho alcance, que só aumentam as potencialidades de eternidade de alguns temas.


O livro se encerra com a seção Nômada, com uma prosa-poética corrosiva em que está instaurada a experimentação de forma e conteúdo: "Concordo com a frase de Charles Olson: 'forma é uma extensão do conteúdo'. Ou seja: cada poema é uma aventura diferente da que a precedeu.  Por isso, cada um pede uma forma adequada para sua investigação que é, ao mesmo tempo, irrepetível".


Aventura. Nômada é uma bela aventura de um poeta nômade, que vive cada verso como se fosse o primeiro. O livro se insere no que há de melhor a ser lido e, sem dúvida, renderá ao seu autor as láureas destinadas ao grande poeta que segue a deslinhagem da poesia de invenção brasileira.

 

 

 

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O livro: Rodrigo Garcia Lopes. Nômada. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

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> Poemas de Rodrigo Garcia Lopes

 

 

 

 

junho, 2007

 

 

 

 

 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.