NA PASSAGEM DOS CÉUS QUE FOGEM DE NÓS
Na imagem das coisas que retornam sem nós,
Na miragem dessa solidão, você aqui:

Na repetição das antigas sensações
Na fala a provocar o pensamento
Parecendo um passado que se dobra
Sobre esta polpa de presente:

Se a linguagem é nossa realidade
E coisas forem apenas palavras
Então nos restará apenas a veracidade —
Esse vácuo que nos acua ao avançar.

 


pensagem

Têmporas do vazio,
acolham o resto
de gravidez dos segundos.

Unha e carne
Céu e árvore
O vento arme.

Cada gesto
de seda decifre
o Hades da ira
onde pesado levita.

Homem em transe
acue o nada
a noite exangue
em cada fala-cadafalso.

Trevas se atiram
da margem oposta
das minhas artérias —
imagem, matéria.

 


rito

Alertas, trapaças, cobranças, compromissos:
Quantas ilhas sem edição, vidas sem viço,
A morte visita sem aviso?
E, afinal, pra que mesmo tudo isso?

O que deu nesse mundo, caduco,
O que ficou do tempo em que viver
Era mais que só mudar de assunto
Era rito, um estado de espírito?

Ou quando olhar era uma reza,
Pensar que revelava a leveza,
Música vindo de dentro
(Precisa de centro?)

Uma revolução do sentir nos fez ateus:
Quisemos então ver a face de Deus.

E você a meu lado, lembra
De quando bastava uma fagulha
Pra explodir uma Bastilha?

 

a lume spento

Colhe com seus olhos a fumaça que insinua
ao penetrar — sendo incenso e silêncio —
sua mente em meio ao tráfego intenso
da manhã, relumbre em suas mãos nuas.

Daqui das margens desse sonho
ideogramas de formas obscuras
reescrevem seus gestos num bazar estranho
sem saber ao certo o que procura:

Se meus olhos, opacos, entre bijuterias
baratas que você arremessou
(como quem dedilha um sol menor ou
a linha acesa de minhas artérias)

Mas sem querer você abre, de leve,
as persianas e invade uma sutil
reminiscência do que nunca existiu
(Ou, como seu rosto, foi tão breve).

 


HÁ ANOS VENDE SEU PEIXE
podre
seu suflê de vísceras
para vegetarianos sem o menor senso de humor.

Há tempos leciona
o dialeto do caos
dá conselhos ao sol
vende orquídeas escritas com
seu sangue
para vampiros que têm medo do vermelho.

Há séculos ele pratica
a extinta arte da pluviometria
fabrica idéias inúteis
conta os carros da esquina
compondo um poema longo e atroz.

Há minutos ele liga
Para uma secretária eletrônica
Que repete, estranho, exatamente
A gravação de sua própria voz.

 

 

a caravana

 

 

* Lua cheia. Lua nova. Os nômades avançam, sobre o mesmo deserto.

 

rizoma

Você deixou os instrumentos sob o sol rachando o som que penetrava rochas de cores escritas com o tato, você delirava considerando asteriscos num céu de areia hostil.

Os halos seguiram com os corpos, quebras de esquinas com o vazio do tempo nas narinas mornas do nômade, rimas talibãs se dublam e enroscam como ramos, e se multiplicam em rajadas de acordes que pastam solitária lucidez.

Durou o espaço de uma brecha o dia com pressa de partir e sede no cérebro luz árida exílio areia hostil.

Inóspita. A palavra habita um lugar que lhe é impossível. Não representa nada a não ser um estalo no           . Devora as margens com a precisão dos grandes rios, mas vomita seu nada e seu devir, vácuo visível.

A razão negra desabrocha numa agulha. O próprio movimento interroga o espaço que cria atrás de si, sim.

Avança. Mais diz quanto mais se distancia.

Foi então que começaram as desaparições.

 


chegando na estação Aqui
                        
De alguma coisa agora quase se lembrava, mas de tocar o que estava mais perto, e modular o pensamento para o mais distante monumento: os sistemas salpicados sobre a mesa negra e circular.

Esta é a estação Aqui, a quinta do ano, a única com estação de esquis que são os esquisitos velozes emblemas na neve e a foto do deserto sobre a mesa neste momento.

"Os nomes não nomeiam mais as coisas, as coisas se afastaram e deixaram para trás só branca paisagem, e te deixaram num quarto escuro, de onde você nunca mais vai voltar".

Não, estar perto é conhecer a distância, e estar longe é só se esquecer. A caminho, sem ainda ter voltado. O ar corta as narinas. Só isso agora parece não se mover, não tanto quanto um impulso sem forças para lutar contra as margens suadas quando se desligam enquanto damos um gole de áraque, e na tela-ilha tropical do cassino.

A natureza nos desconstrói sem que notemos, e a noite restaura a memória das percepções que usaremos, no dia seguinte, para reconstruir a natureza e a nós mesmos.

Registrar isto, e o modo pelo qual eu poderia tocar esta realidade e seu impacto sobre minha consciência com mais intensidade. Eu podia usar as palavras como uma câmera, ou como um passaporte para a dimensão do aqui-e-agora, nossa própria consciência em movimento, seguindo aquele pássaro, de galho seco a galho nevado. Registrar que agora sei do poder de todas as coisas serem, cinema.

Nesta estação, temos um corpo, e é por termos um corpo que isto existe e respira, o que nos iguala a insetos e árvores, ligados em seu presente imediato.

Quanto mais rápido amanhece, mais devagar anoitece.

A relva foi capaz de ativar a relva do meu cérebro para perdurar. Ou seja, ouça seus ossos enquanto escuta os estalos do fogo.

Hálito era o nome para gente, e fala-hálito o nome que se dava quando gente e hálito eram um só.

Nos encontramos tão longe, paisagens somem sob nossos pés, uma viagem que se faz parado, diante da casa antiga, cavando um espaço em você, um copo caindo no espaço, sombra em sua nuca, vitória efêmera sobre o silêncio. Mas a música voltou e se lembrou. Os poemas brancos sobre a mesa negra, os sistemas e galáxias lá em cima. Os outros virão para te pegar.

 


spiritus mundi

A voz toca no ventre da aceleração. No Museu do Dia objetos ecoam na tatuagem da memória de seus habitantes. Abduzido, o olho humanimal é de um metal necrosado e devorador, racimo de genes durante a pressurização. Clareiras. A matriz translúcida como presença de religare, tigre de Lascívia e sua dança filosófica. A estrada do tato. Ilhas femininas. Dentro e fora comercializam artigos baratos e tapetes persas onde me encontro: a escrita de luz nas costas da jovem gueixa dispersa, um continente feito de blocos moventes e piscantes de gelo. Atraquei consoantes, com cimitarras certeiras, e nada. Alguém aumentando o volume da mata. Os nômades olharão para trás: enxergaram a avalanche em sua direção, nada que um leque não possa indicar, um tiro de alguém. A captura se dá a caminho, com nossas presas embrulhadas em tecido de tule, quase transparentes. Na fuga, quase sem saliva, a aranha deixa seus hóspedes de cera para exposição em Lexotan, enquanto contorcionistas regem o vento com um manual de hermenêutica. É preciso reconhecer as trilhas jesuítas, marca d'água revelando ruínas, musgos e brotos em densidade alvoroçada, proliferante, uma imagem de mundo que não reflete nossa mente, mar entrando em surto. O lugar de onde você veio é tão distante que pode muito bem ser aqui.

 

 

Poemas de Nômada (Lamparina, 2004)

 

(imagens©stuart redler)

 

 

Rodrigo Garcia Lopes é autor de Solarium (Iluminuras), Polivox (Azougue), Nômada (Lamparina), visibilia (Travessa dos Editores), do CD Polivox (Independente), e das traduções Sylvia Plath: Poemas (Iluminuras), Iluminuras: Gravuras Coloridas (de Arthur Rimbaud, Iluminuras), Mindscapes: poemas de Laura Riding (Iluminuras) e O Navegante (do anglo-saxão, anônimo, Lamparina Editora). É um dos editores da revista Coyote.