Maria Eugenia Boaventura, que havia chegado tardiamente à comemoração, pois tinha lançado naquele mesmo dia o terceiro volume da série que está organizando, pela Companhia das Letras, dedicada à obra de Mário Faustino, deu logo a sua contribuição à conversa:

— Obviamente não estou de acordo com o esquecimento de Mário Faustino também. Ele morreu há mais tempo, mas a sua primeira compilação, longe de completa, é a da edição de Benedito Nunes, de 1984. Depois disso, simplesmente não houve outras edições das suas coisas.

— Pena — lamentou-se o Eric. — Quando estudava português nos States, a classe toda se empolgava com a página do Faustino, no Jornal do Brasil. Guardávamos aquilo como se fosse relíquia.

— Mário Faustino está recomeçando agora, não há dúvida — concordou o Régis. — Este último volume, contendo o material da página "Poesia-experiência", do JB, é uma mostra extraordinária de seu trabalho de tradutor e de autor, com uma abertura internacional de rara amplitude no Brasil. Comparecem muito mais autores do que os citados no livrinho, além de incluí-los todos. Experimentação gráfica, industrial... Já está tudo ali: categorias e autores depois assimilados pelos concretos. Também as revistas literárias contemporâneas repõem o tipo de militância de Faustino. A Sibila, por exemplo, é decididamente faustiniana.

Luísa, minha filha, veio sentar-se ao meu lado, e aproveitei para lhe perguntar de quem mais tinham falado enquanto estava no banheiro. Lembrou-se de se queixarem, na prosa, da falta de autores como Francisco Dantas, Wilson Bueno e Raduan Nassar. De fato, tinha estranhado a total ausência dos dois primeiros. Raduan era citado, mas estranhamente submetido à esfera do Milton Hatoum. Neste ponto, entretanto, a Lui me disse que tinha dificuldade em relatar exatamente as falas de cada um, pois começaram a travar uma verdadeira batalha entre si, cada um deles lembrando-se de um autor que julgavam inesquecível, mas que fora deixado de lado pelo Literatura Brasileira Hoje. Diante desse relato não pude deixar de pensar que fora ao banheiro na hora certa. Naquele momento, ao menos, a balbúrdia parecia controlada, embora o excelente maître argentino do Arábia não parecesse olhar para a nossa mesa com olhos demasiado amistosos. Tentei sorrir para ele, mas, se chegou a me notar, não me retribuiu o sinal amistoso. Claro que ele devia ter razões muito ponderáveis para essa secura.

Enfim, a Cris decidiu que aquela parte do debate estava encerrada e que não tinham tempo para ouvir todas as cobranças a respeito de autores faltantes do livro. Sugeriu então que passassem a falar dos eventuais problemas nas descrições particulares dos autores efetivamente presentes nele.

— Ah, não! Essa discussão, não: isso não vai acabar nunca! – protestei mais uma vez inutilmente, pois o Celso nem me deixou completar:

— Eu começo — disse prontamente: — Que acham do Frederico Barbosa ser tratado como o nosso Pound? Posso estar por fora, pois francamente conheço mais o pai do que o filho, mas me contem: o que ele traduziu de importante? Também não teorizou nada, ao menos que eu tenha lido. E em matéria de poesia, nem entupido de ácido dá para comparar com o Pound!

— A propósito, ouçam esta passagem do livro — emendou o Luis: — "A poesia de Frederico Barbosa é indissociável de sua concepção de literatura como um ato de recusa de valores estabelecidos e da poesia como instauração do estranhamento e como convocação do novo". Recusa de valores estabelecidos! Instauração do estranhamento! Convocação do novo! Isso parece comício de maio de 68.

— E esta — pingue-pongueou o Celso: — "A frase abrupta, o verso denso, concentrado, sem ornamentação, e o conteúdo metalingüístico e questionador fazem da invenção poética um gesto de resistência que transcende o âmbito intraliterário: é a recusa 'existencial' de se ver pacificado e enquadrado que exige a rejeição dos valores poéticos coagulados". Está falando de quem? De Rimbaud?

— O surpreendente — continuou o Luis — é que o livro ainda sinta necessidade de assegurar que não se trata de um "mero continuador", como ele faz em seguida: "Mas ele não é mero continuador do concretismo". Por que alguém imaginaria sequer algo assim, se ele é mesmo aquilo tudo que ficou dito?

Contra a minha vontade, eu me peguei rindo com essas críticas ao estilo descritivo um tanto aleatório do livro. Se não me policio, ia acabar querendo fazer alguma piada a respeito de processos de denegação, mas resisti a tempo. Pressenti, entretanto, que, a seguir por essa via, aquilo ia tomar um tom francamente desrespeitoso. Olhei cuidadosamente para a vasta mesa e, com algum pesar, notei que tudo o que nela fora servido já fora devorado. Ao contrário do que pensara ao início, os meus amigos não trocaram a comida pelas palavras: excediam-se em ambas. Na falta de mais quitutes, resolvi arriscar uma pequena provocação:

— E do que o livro diz do Régis, o que têm a comentar? Vão fingir que não leram? Sobre o Luis nem vamos falar nada, pois só apareceu ali como epígono de um dos folhaspianos, o Nelson Ascher.

— O que é dito do Régis mesmo? Ah, aqui está, a primeira frase parece ótima. Diz que ele vai "do diálogo com o concretismo ao diálogo consigo mesmo". — Era a Cris, que me ajudava na provocação. — Quer dizer, talvez, que ele foi se tornando um solipsista? Um autista?

— Injustiça! — gritei eu — Injustiça cabal!

— Absurdo! — amplificou o Moacir: — O Régis tem programaticamente dialogado com as referências contemporâneas, especialmente as norte-americanas. A Sibila, aliás, é o desdobramento natural disso. Não acha, Régis? — perguntou ele diretamente ao objeto do capítulo, mas este não quis se pronunciar. Sobre ele mesmo estava impedido de falar, disse, com razão, já que elogio em boca própria sempre foi vitupério.

— E o que vocês acharam do que o livro diz do Caetano Veloso? — propôs destemidamente a Maria Eugenia, antiga amiga do baiano.

— Ih, — disse o Régis — essa página é uma confusão só entre poesia, letra e poesia prosaica.

— É verdade — concordou o Luis. — Depois de afirmar que a suposição de que letra não é poesia trai uma questão de valor preconceituosa, o livro pretende que ler uma letra como "Língua" torna possível até esquecer as harmonias e a voz — o que, entretanto, diz não ser certo, pois revela a pobreza de espírito de trocar o mais pelo menos... Em suma, mais uma rigorosa contradição, aqui baseada no clichê de que a música popular brasileira é especialmente "grande'. Daí a afirmação, na página 39: "a canção popular [brasileira] se tornou um gênero maior". Tão maior que tem vigor de sobra, podendo então exsudar verdadeiros poemas no que deveriam ser meras letras. — Mais uma vez estava me deixando envolver pela discussão, sem perceber. Caetano Veloso, poeta, era lugar-comum que usualmente me enjoava. Anexado ao lugar-comum da "mpb genial" criava-se um risco mortal para a minha digestão do memorável jantar. Tentei pensar em alguma coisa bem longe de Caetano e mpb. Miseravelmente fui me lembrar de Johnny Ramone, em algum hospital, sofrendo com um câncer terminal na próstata. A lembrança me entristeceu imediatamente; num segundo pensei também no André, meu filho, ainda mais ramonemaníaco do que eu. Joey já fora; Dee Dee, idem; e agora o Johnny, moribundo: eram muitas mortes para chorar ainda aos 25 anos. Olhei para o Eric, contemporâneo de escola de Johnny em Forrest Hills, ambos com 55 anos. Ainda bem que ele estava em forma, graças à malhação diária. Quando voltei a prestar atenção ao que diziam à mesa, o Luis ainda arrazoava sobre o mesmo tema enjoativo:

— A letra da canção brasileira depois da bossa-nova, em contraponto ao bolerismo anterior, se apóia na conquista coloquialista de 22: "Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça...". O tom sintático seria impossível, por exemplo, sem os modernistas proclamarem o direito de escrever como os brasileiros falam, não como os portugueses escrevem. Ou sem um poema como Pronominal de Oswald. E aí é que está: as letras bebem eventualmente na poesia, a poesia não bebe nas letras. É, em parte, aliás, esta relação de dependência das letras em relação à poesia, somada à crença pós-moderna do suposto "fim-dos-gêneros", que leva a concluir que as letras "também são poesia". Afinal, beberam sua poeticidade da própria poesia... Caetano bebeu no concretismo, Chico em Cabral. No entanto, o que tirou o concretismo de Caetano? E Cabral de Chico? A dependência unilateral dessa relação é fácil de entender: a linguagem verbal é tudo na poesia; na canção, é apenas uma parte, e nem sequer a mais importante.

Mentalmente concordei com o Luis, e pensei comigo que esse procedimento cada vez mais habitual de pretender nobilitar a letra de música chamando-a de poesia, não podia ter efeito mais contrário: acabava apenas produzindo autores com a triste cara de primos pobres, pois a comparação com os poetas era simplesmente devastadora para eles. Num outro sentido, me senti feliz por não precisar entender as bobagens que, em geral, estão sendo cantadas, para poder gostar da música. Acho que isso explica parte do meu gosto em ouvir música em outra língua, especialmente o rock'n'roll, que não se entende em nenhuma. Afinal, não são apenas palavras, mas palavras e voz e interpretação e música. Um composto de coisas muito distintas, como, por exemplo, o belo jantar na mesa agora vazia. E quando o fundamental está nesse composto de palavra, voz, interpretação e música, e não nas palavras sozinhas, contando apenas consigo próprias para obter todo o efeito poético possível, então está claro que isso define uma diferença irredutível em relação à poesia. Esquecer essa diferença é perder a possibilidade de que uma letra encontre o lugar próprio de sua grandeza, no interior de sua tradição particular. E essa tradição tem de encontrar a sua própria narrativa, não fingir que é a mesma que se construiu para a poesia... — Estava absorto nessas digressões escapistas, quando Paulo, que acabara de desligar o celular, mostrou que alguma atenção prestara no que estava sendo discutido ali, ao dizer:

— Eu mesmo escrevi, com o Alcir, um livro, vamos dizer, "de juventude", que analisa as letras de Caetano. Mas não me venham com maldades: isto não é um mea culpa! Analisamos as letras como letras, e não como poesia. Isto é muito diferente de pôr o autor no contexto de um panorama da literatura brasileira hoje. — A palavra "denegação" voltou à minha cabeça, menos aplicada em relação ao Paulo do que a mim mesmo. Seguia o seu raciocínio com especial interesse, quando o seu celular tocou, e ele se afastou novamente.

Luis retomou a palavra e generosamente nos livrou a pele: — No espírito dos anos 70, a falta de rigor de discernimento do gênero ao menos tinha pertinência política senso lato. Hoje não tem desculpa: é apenas "pós-modernismo" vulgar. Claro que a poesia lírica original, a grega, era acompanhada da lira, e que os provençais cantavam seus "poemas". Mas ao menos desde o século XIII, em que a forma soneto se cristaliza...

— Luis, caro — interrompi-o, temeroso de que ele engatasse ali mesmo uma história da poesia ocidental, em dezenas de volumes: — ainda bem que você falou de um século remoto e de pessoas felizmente mortas. Tenho de aproveitar a referência para me livrar do assunto da "literatura brasileira hoje". É incrível: vocês são monomaníacos! Vamos ficar um instante apenas neste oásis que é o soneto. Que delícia poder falar dele, especialmente em relação ao seu período heróico. Concordo com você que seja a forma que mais evidencia uma tradição autônoma da poesia, sobretudo depois de Petrarca, isto é, no XIV, não no XIII. Isto fica especialmente nítido com as nove diferentes versões e acréscimos do Canzonière, que se estenderam por mais de 30 anos: desde o início dos anos 1340 até 1374, ano de sua morte. Se não morresse, seria surpreendente que não continuasse suas emendas e anotações às margens dos sonetos. Notem que esse método de anotação e revisão dos poemas dependia em larga medida da disposição do verso no papel. Disposição espacial articulada à disposição lógica fornecida pela sua estrutura de silogismo. — Ao dizer "silogismo", entretanto, quase me perdi, pois me lembrei sem querer novamente do livro, que havia encaixado o Luis como satélite do Ascher por conta de ser também um fazedor de silogismos inteligentes! "Injustiça!" — bradei veementemente em pensamento, mas como não dei sequer um pio fora de minha cabeça, Luis voltou à carga:

— Acho que se pode dizer que o soneto apresenta mesmo uma estrutura visualmente equilibrada, com os dois quartetos e os tercetos... — interrompi-o, entretanto: — Apenas mais uma observação: a autonomização da poesia face à música não impediu que as cortes mais importantes do período, até o século XVI ou XVII permanecessem contratando músicos excelentes capazes de musicar os sonetos petrarquistas. A questão é que a poesia de Petrarca já estava resolvida nela própria, assim como a de Marino, no XVII, com ou sem a música da Strozzi, por exemplo. A poesia de Petrarca já não mostrava nenhuma dependência da música para a qual eventualmente servia de letra a ser cantada, se a questão era produzir plenamente os seus efeitos poéticos. Ainda que a música fosse boa, tratava-se de outra coisa, de encontrar novas formas de civilidade e de convívio, não de descobrir ou acrescentar poesia aos sonetos de Petrarca. Aí é que está o ponto: nunca mais a música precisaria trazer a poesia para o poema. A poesia repousava nele, e dependia apenas dele.

Never more! A prova definitiva disso é que até os Dum Dum Boys musicaram poemas de Pessoa! Este pobre diabo nunca mereceu o menor respeito por parte de, digamos, "músicos" — zombou o Celso, acentuando a expressão de dúvida ao pronunciar o último termo, e me provocando ostensivamente com a menção à minha antiga punk band, desconhecida e horrível, comme il faut.

— Mas é justamente o que estou tentando dizer — insistiu o Luis: — as palavras, na canção, têm de ser musicais, podendo ou não ser literárias ou poéticas. Num poema, voilá, têm de ser poesia.

Toda a poesia — sublinhou o Celso.

— Por outro lado, a poesia como escrita, com um passado multissecular autônomo, possui possibilidades infinitamente maiores de articulação de sentido do que uma letra de canção — continuou o Luis, que jamais se escusava de hierarquizar as artes.

— Não estou certo quanto a "possibilidades infinitamente maiores" — disse o Celso, que chegara a ser um bom músico, e que certamente se incomodara com a frase peremptória: — As possibilidades são outras, quando o gênero é outro: acho que é tudo o que se pode dizer. A questão relevante não é hierarquizar gêneros, mas admitir que existem, admitir tradições e suportes distintos.

Luis, como era de se esperar, não se deu por satisfeito: — Por maiores, quero dizer mais complexas. Numa canção, há injunções extraliterárias determinadas pela integração à melodia, assim como há os limites de tamanho e de uma tradição outra, popular, aliás, em geral, antiliterária. Caetano Veloso faz canções, logo é um cancionista. Por que falar em literatura?

— Está legal, Caetano é cancionista. Isto difere gêneros. Quanto a coroar a poesia como rainha de todas as artes, isso é programa seu, mas não meu — insistiu o Celso. — Nem meu — disseram alguns; enquanto outros, ao contrário, aplaudiam ruidosamente a coroação. Nova balbúrdia ameaçava a mesa. Tratei de propor alguma coisa para amenizar a admirável curvatura da sobrancelha do maître argentino: — Muito bem, amici miei, agora chega de conversa! Vamos à sobremesa.

— Você não desiste? — protestou a Cristiane: — ainda temos vários poetas a discutir... 

— É isso aí. Vamos discutir tudo! — animaram-se. Diante dessa manifestação, não tive escolha senão pedir eu mesmo para olhar o maravilhoso carrinho dos doces e torcer para que ele atraísse a atenção dos demais. Nestas alturas, porém, a torcida era inútil: a batalha dos meus 50 anos só tinha um vencedor: o Literatura Brasileira Hoje.

— Tudo bem, mas então ao menos passem para outro autor, porque esse papo de Caetano Veloso é um saco — reclamou a minha filha Luísa. — A fala valeu estranhamente como uma acusação de muita idade. O resultado foi que todos concordaram de imediato que Caetano estava acabado, como poeta e como assunto decente naquela noite.

— Vamos então ao Waly Salomão? — propôs o Régis, que se desligara um pouco da conversa. Na hora imaginei que estivesse desinteressado do debate a respeito da troca Leminski/Caetano no livro do Manuel. Alguns dias depois soube que não, quando publicou na Folha um poema intitulado Letra, dedicado a mim. Naturalmente fiquei muito orgulhoso, sem entender entretanto a razão da homenagem.

— Fiquei também muito impressionado com o que está escrito a respeito do Waly — disse o Celso. Antes que tivesse tempo de expor o porquê, Luis aparteou-o: — Deixem-me ler um trecho para vocês: "Ícone da contracultura e mais filosófico dos poetas brasileiros". É estapafúrdio do começo ao fim! Nem vou falar da vulgaridade do uso da palavra "ícone", mas se Waly foi o "mais filosófico", onde fica Murilo Mendes? E Vinicius da fase não-MPB?

— E Drummond? — propôs Maria Eugenia.

— E Hilda Hilst? — fulminou o Celso em direção ao livro, como se fosse mordê-lo em seguida.

— E essa história de que a linguagem do Waly Salomão compõe uma espécie de alegoria barroca com "um elemento dionisíaco extraído do filósofo alemão F. Nietzsche"? Que coisa: basta alguém vozear Nietzsche e lá vem com a banalidade do "elemento dionisíaco" — protestou ainda a Maria Eugenia.

— O Nietzsche de algibeira é apenas mais um exemplo do "falar sem dizer" adotado pelo livro como método. Abram o livro ao léu. É difícil achar página sem bullshit — emendou o Eric. — Quero fazer um concurso: quem aí conhece uma boa tradução para o inglês "bullshit" nesse tipo de emprego? Não, não é "bosta", não. Não estou xingando ninguém!

— Acho que a melhor tradução seria "besteira" —, propôs a Maria Eugenia.

— "Enrolação"! — "encheção de lingüiça"! — "papo furado"! — disseram vários ao mesmo tempo.

— Está ficando quente! É por aí. — aprovou o Eric. — Funciona como uma estratégia de preenchimento, do tipo daquela que os alunos encontram para ocupar espaço de uma redação, sem ter nada a dizer a respeito do assunto. Ouçam isso: "Simbioses sonambúlicas com os cenários cambiantes"; e isso: "cios com os caos e os cosmos invertidos". Não sei o que são "cosmos invertidos", mas talvez seja o meu português ruim, alguém sabe? Ou isto, ouçam: "Seu elogio do êxtase desfaz identidades estáveis, normalizadoras, em benefício de um perpétuo devir filosófico que atende às exigências desse seguidor do pensamento antimetafísico, em busca de ‘um porto onde a gaia ciência jogue suas âncoras’". Socorro! Isto faz algum sentido? Meus 23 anos de Brasil ainda não bastam para descobri-lo nessa confusão.

Antes que alguém se aventurasse a responder-lhe, o pródigo Paulo, de volta ao convívio, mudou o foco da conversa:

— Um caso curioso é o do Antonio Cícero, há um aspecto engraçado a ressaltar. O livro nota o homossexualismo... não sei se dele, se da poesia dele, e coloca então, na mesma esfera do Cícero, o Waldo Motta. Justamente como alguém que "problematiza a sexualidade". E junto relaciona também o Ítalo Moriconi. Caramba, mas as poesias deles são muito diversas entre si! Qual o traço comum? Serem os autores homossexuais? Mas o que temos nós a ver com isso, se as poesias que eles produzem, operam segundo matrizes tão diversas? Se é gay, tem de estar no mesmo saco, não importa se a poesia não tem nada a ver uma com a outra? É como colocar o Luis junto com o Ascher só porque ambos são judeus.

— Eu estou fora, — disse o Eric, talvez temendo que ele fosse o próximo judeu a ser relacionado pelo Paulo. — Não me venham pôr nesse saco, não. Eu sou discípulo de Thomas Merton! Prefiro ser católico! Aliás, quero ser santo!

— Eric, acalme-se — disse o Paulo, num tom suficientemente incisivo para controlar o ataque a tempo: — eu não o estou ameaçando de nada. Nem o livro, aliás. Você não é nem mesmo poeta brasileiro, esqueceu?

— Tem razão! Que alívio! — Enquanto o Eric dava um grande suspiro, a oswaldiana Maria Eugenia diagnosticou abruptamente: — isto aqui está ficando com jeito de sub-banquete antropofágico — Com o quê concordei imediatamente: — Canibalistas de butique, Maria Eugenia, não se incomode, não.

— Queria então botar na mesa o caso do Glauco Mattoso — disse o Luis: — O livro apresenta o Jornal Dobrabil se limitando, basicamente, a referir seu título. Ora, o Dobrabil é o maior tour de force gráfico da história da poesia brasileira. Glauco fabrica ad hoc tipos variados, manchas e, enfim, pagina um "jornal" inteiro valendo-se apenas dos recursos de uma máquina de escrever... O livro diz: "A contribuição de Glauco Mattoso [à geração 'mimeógrafo'] seria o Jornal Dobrabil, panfleto que era distribuído pelo correio...” Não acho que O Jornal Dobrabil possa ser incluído na "geração mimeógrafo". — Algum murmúrio deixava notar que parte da mesa não concordava com a observação, mas o Luis sustentou enfaticamente a sua posição: — Tem mesmo algo de antagônico entre eles: a "geração mimeógrafo" produzia uma poesia pouco elaborada, de expressão de "estados de alma" misturados a arrufos políticos, sendo o próprio mimeógrafo uma técnica de reprodução rápida, barata e meio suja, que é a perfeita tradução gráfica dessa poética. O Jornal Dobrabil é, ao contrário, de elaboração quase maníaca. E enquanto o "poesia mimeógrafo" era feita para ser distribuída de mão em mão em corredores de faculdade, bares, praias, festas e passeatas, o Jornal Dobrabil era distribuído de maneira moderna e impessoal, pelo correio.

— Tudo bem, Luis, já percebi que você quer valorizar o Glauco Matoso, em detrimento da "geração mimeógrafo". Tudo bem. Mas, Alcir — interpelou-me diretamente o Régis: — aqui há uma citação na sua área. O livro afirma que o Glauco está na tradição da cantiga de escárnio e maldizer e na do soneto satírico. Isto faz sentido? — Os meus sentidos naquele instante estavam todos estupidamente entretidos com um estupendo bekleua afogado em mel, e não conseguia nenhum intervalo na mastigação para lhe responder o que quer que fosse. Cristiane  então ponderou que a tradição medieval do escárnio era muito distinta da sátira, de extração greco-latina. O soneto, por exemplo, retomava a última, mas não parecia ter nada a ver com a primeira.

— E o que acham de referir a Josely Vianna Baptista apenas como secundária? — retomou a palavra o Régis, aparentemente desinteressado de aprofundar a questão que ele mesmo apresentara: — Meu Deus! Avalone que me acuda. A Josely traduziu tudo o que dizia respeito ao neobarroco, além de ser muito mais poeta do que muitos dos que ganharam capítulos com o seu nome. — Ao emprego da palavra "neobarroco", senti certo enjôo rápido. Pensei que era uma sorte dos diabos que a Josely conseguisse ser uma grande poeta, a despeito de traduzir "tudo o que dizia respeito ao neobarroco". Para dissipar a tontura, pus-me a imaginar se a questão do diálogo latino-americano tinha ao menos a utilidade de incrementar o negócio do turismo.

— Divertido mesmo é perceber o quanto o autor do Literatura Brasileira Hoje gosta de falar da Adélia Prado. — disse o Paulo: — Quando chega a vez dela, faz crítica literária, interpreta, explica... enfim, arrasa.

— Ué, que tem isso? — Meti-me na história, ainda lambendo nos dedos os vestígios do bekleua definitivamente liquidado: — Um talento à altura do outro. Vai implicar? Mas Paulo, caro, aproveita e dê-me-lo!

— Dê-me-lo, o quê? O prato? O garfo? Já não há nada vivo acima ou ao redor da mesa.

— Engraçadinho. O vinho, por favor. Está bem aí, escondido atrás de seu notebook.

— Em todo caso, isso merece um pequeno comentário — tornou o Luis, dispondo-se logo a fazê-lo: — O livro se refere assim a Com licença poética: "O poema é uma inversão da primeira estrofe do Poema de sete faces de Drummond". Mas qual "inversão"? Os três primeiros versos da Adélia são uma paráfrase da primeira estrofe de Drummond. "Quando nasci um anjo esbelto / desses que tocam trombeta, anunciou: / vai carregar bandeira". A expressão dos anos 70, "carregar bandeira", como todos aqui sabem muito bem, a não ser a Cris e a Lui — restringiu prudentemente, ao notar o olhar recriminatório da primeira —, significava subsumir tudo a uma causa, ou seja, estar sempre "portando um estandarte". O que o "tocar trombeta" do segundo verso só enfatiza. "Carregar bandeira" que é, escreve Adélia no quarto verso, "cargo muito pesado pra mulher / essa espécie ainda envergonhada". Envergonhada, claro, para... "carregar bandeira". No fim, vem a explicitação: "Vai ser coxo na vida é maldição para homem. / Mulher é desdobrável". Ou seja, um homem pode se dar ao luxo de ser gauche, hipercrítico, out-sider, mas a mulher não, porque tem de se desdobrar entre o emprego e a maternidade, etc. Em suma, trata-se uma paráfrase meio piegas de "Sete Faces". Que, por sinal, não tem nada a ver com a maneira como o livro lê o terceiro verso: "[Adélia Prado] prefere a sina de 'carregar bandeira' — numa referência ao Manuel Bandeira das coisas miúdas"! Mas onde ele foi desencavar o Bandeira?

— Está na cara: da palavra "bandeira"! — disse o Eric. Alguns riram, mas eu comecei a temer pela língua comprida daquela gente, ainda mais do que pelo comprido da conversa. Se eu tivesse imaginado que o jantar de meu meio século seria assim, uma enorme homenagem ao Literatura Brasileira Hoje, não hesitaria em comparecer pessoalmente ao debate na Folha. Pelo menos saberia que estava a trabalho. Régis então lançou mais uma de suas questões: — E o que acharam do que o livro diz do Armando Freitas Filho?

Paulo foi o primeiro a responder: — O primeiro absurdo aí é colocar o Chamie dentro do espaço reservado ao Armando Freitas Filho. Se fosse para ligar os dois, deveria ser o contrário, já que a relação entre eles só pode ser feita através dos tempos da Poesia-Práxis. Mas se havia ali um líder era o Chamie e não o Armando. E depois o Armando é posto junto com o Sérgio Alcides?... Simplesmente não vejo relação entre eles.

— Talvez a Maria Rita Khel? — arrisquei eu, ingenuamente.

— Talvez. — E prosseguiu com o seu raciocínio: — Notem que, numa penada só, o livro também menciona aí a "grande amiga" do Armando, a Ana Cristina Cesar. A amizade juntou os dois no mesmo tipo de poesia? Mas não há junção entre as poesias deles! E finalmente, essa é para você, Alcir: ele diz que o Armando tem uma atitude de anti-retórica...

— Azar o dele: eu não só sou a favor da retórica, como totalmente a favor de saber o que ela significa fora desse emprego banal com o sentido da "bullshit" de que falava o Eric.

— Ih, — disse o próprio — agora se queimou! Resolveu, enfim, debater? Agora, sinto muito, já estou cansado.

— Não, resolvi apenas parar de comer antes que seja tarde demais. — E fiz cara de quem estava na iminência de devolver o jantar inteiro na mesma mesa na qual o havia tomado.

— Que horror, pai! — protestou a Lui. — um pouco de compostura!

Paulo propôs então que comentássemos o que estava escrito no livro sobre Afonso Henriques Neto: — O livro acha digno de nota que o sujeito seja neto de Alphonsus; em seguida parte logo para fazer a projeção do avô sobre o neto. Mas o espantoso é que o toma como cabeça de um capítulo, e depois agrupa embaixo dele o Willer, o Piva... — No momento em que disse "o Piva", podia-se ler ao menos cinco exclamações em seu rosto estupefato — além do Floriano Martins e tantos outros. Sob o nome de um autor totalmente secundário, que descreve como simbolista, vai enfiando todos os de extração surrealista.

— Aproveito a ocasião e protesto contra não haver um capítulo dedicado ao Piva! — levantou seu copo de água mineral o Celso, com a veemência de quem brandisse uma foice.

— Mas Paulo, esse é um procedimento habitual no livro — observou o Régis, ignorando o protesto queiroziano: — Tributários evidentes de Leminski aparecem no capítulo Afonso Henriques Neto, tais como Ademir Assumpção e Rodrigo Garcia Lopes. Por que será? E o próprio Leminski, a matriz deles todos, nem aparece. Esquisitíssimo.

— Esquisito, pois é — continuou o Paulo: — e na mesma chave, no capítulo do Manoel de Barros, ele lista como secundários Nejar, Carpinejar e Donizete Galvão. Mas o que há em comum entre esses 3 autores, tão distintos entre si? Só se for por causa de um critério "regionalista", que o próprio livro dizia redutor. E o que ele diz do Afonso Ávila? Diz que tem "preocupações cívicas"! — Paulo acumulava exclamações na cara: — Eu não ouvia isso desde o tempo da graduação nas matérias de EPB! Se bem que, nestes tempos neopatrióticos, que não desistem de ser brasileiros, não sei, não: estou suspeitando do retorno da EPB!

Régis então propôs: — Acho que seria legal falar do que o livro diz do Haroldo de Campos. — Eu ia observar que já haviam falado até demais dele, quando o Paulo, que parecia finalmente ter-se animado, tomou a minha frente: — Banalidades, nada mais. Passa o livro aqui, quero ler um trechinho. Aqui. Por exemplo: "novas possibilidades de representação da realidade pela palavra poética". Um lugar comum claríssimo, não é? Pois não é apenas isso. Sabe onde ele termina o parágrafo? Justamente onde ele nunca poderia terminar: no Mallarmé! Alguém que já não pensava em representação...

— E que tal esse trecho? — adianta-se o Luis: — "O resultado foi uma produção que valoriza a dimensão material da palavra, por meio da decomposição fonética e da montagem visual dos signos". Isto pretende descrever o projeto concreto. "Valoriza a dimensão material da palavra" — mas que poema não faz isto? O projeto estabelece o que chamam de "primado do significante". Primado não é mera valorização, e significante não é "dimensão material" da palavra. O mais estranho é que as obras do Haroldo que o livro afirma que melhor "expressam" esse "projeto" são Xadrez de estrelas e Signância. Só que uma é, em grande parte, pré, e a outra, pós-concreta.

— Tem razão — disse o Régis: — o subtítulo de Xadrez, impresso na capa, é: percurso textual  1949-1974. Não havia nem sombra de concretismo em 1949. Há ali, sim, muita poesia à moda 45. Além de um monte de poesia concreta ruim. Xadrez de Estrelas traz uns dez poemas concretistas. Lembro, por exemplo, de "âmago do ômega", "fala prata / cala ouro", "branco", "mais mais", "cristal", "nasce / morre", "vem navios", "topogramas", "anamorfoses" e "servidão de passagem", todos datados entre 1955 e 1962. Estes poemas ocupam 20 páginas de um livro de 250! E mesmo nesses poemas concretos, não se perde algum eco parnasiano. Me lembro de cabeça de algumas passagens: "um corpo / cristalino a corpo / fechado em seu alvor", por exemplo, de "âmago do ômega". Para mim, Haroldo era um amigo...

Muy amigo — disse algum gaiato, que não consegui identificar na hora, nem quis se revelar depois, quando perguntei quem fôra o engraçadinho.

— ... muito mais do que o Décio ou o Augusto, mas, como poeta, não tinha a visão plástica do Augusto, nem a gráfica do Décio. E é verdade que Signância já não tem nada de poesia concreta. Desse livro, francamente, não me lembro de nenhuma passagem, mas, Paulo, por favor, veja se consegue puxar algum trechinho dele da internet, com esse seu notebook superequipado. — Paulo evidentemente adorou o encargo e, usando a conexão sem fio do seu formidável Toshiba, em poucos minutos pôs na tela alguns trechos do Signantia Quase Coelum. O Régis postou-se logo à sua frente e ia começar a lê-los, quando Luis, de seu canto, entoou de repente com seriedade afetada:

— "Glande de cristal / desoculta/ ramagem de signos..." — marcando longamente e profundamente os "eles". Régis, contrariado pela usurpação, o fez calar-se com o olhar e, voltando-se novamente para a tela, retomou o poema, aumentando a voz a cada vez que encontrava algum verso que, como dizia, "ecoava a parnaso": — Ouçam isto: "...Glande de cristal / desoculta / ramagem de signos / soa / o acorde do uni / verso / campana estimulada / rútilo / último / coere / cúplula radiosa / sim um sino". "Glande de cristal?" — Meu Deus! E notem bem essa passagem: o rompimento com o concretismo está nítido na palavra UNIverso, cindida, apontando para uma retomada do verso. Outro trecho: ".... HÚBRIS / folguedos de tigre / afastam do fosso / os sem-narinas / sanha diamantina....". O que há de concretismo nisso, a não ser um espacejamento frouxo e decorativo das palavras, quase sempre? É quase anti-concretismo, dado como exemplo de concretismo.

— Está fundado, pois, o anti-concretismo, e é também da lavra do Haroldo! Assim você o enaltece ainda mais, Régis. Grande amigo, indeed! — decretou o Celso, mais debochado do que prudente, como sempre.

— Para mim — disse o Régis, sem morder a isca provocativa — Galáxias também não é um livro que funde concretismo e neobarroco, como está escrito. É mais roseano, joyceano, poundiano de Cantos. Tem muito pouco de concretista, minimalista, a não ser na paronomásia como recurso de narração, na linha "palavra puxa palavra". "Neobarroco" é coisa que aparece bem mais tarde na teorização do Haroldo, que então a projeta para trás. — De minha parte, achei que "neobarroco" merecia um "meu deus" avaloneano, mas Régis, desta vez, poupou-se de invocá-lo.

— Parece mesmo que "retroprojeção" é uma boa categoria para analisar as coisas do Haroldo — disse o Eric: — cada novidade que aparece, logo reaparece nele reaplicada ao passado da sua poesia, que assim está sempre pré, sempre avant, always up-to-date. Aquela enumeração do Eric, na minha cabeça, terminou com a lembrança da voz de Dylan cantando "Forever young, Forever young". Senti-me surpreendentemente enternecido: devia ser o fim do aniversário que se aproximava.

— É certo que o Haroldo deve ser criticado na medida mesma em que merece ser levado a sério. Mas a verdade é que a sua obra tem uma outra dimensão comparada a da maior parte dos poetas dos anos 50-60, e ainda mais se comparada aos contemporâneos. Ela é como pontos luminosos em meio ao epigonismo generalizado de hoje, como o fora em relação ao anterior fechamento nacionalista — declarou gravemente o Paulo. — Enquanto ele o dizia, e eu concordava com esse ajuste de perspectiva, crescia em mim a idéia cada vez mais nítida de que a batalha da minha festa estava definitivamente perdida para o Literatura Brasileira Hoje! Viver é desenganar-se. Como eu, leitor de Vieira, poderia duvidar? Todo aquele blablablá sobre contemporâneos não podia deixar isso mais evidente. Foi quando percebi que deveria ganhar o concurso de tradução:

— Eric, caro: passe-me o prêmio "bullshit": "blablablá" é a sua tradução universal! — Olharam-me, contudo, com cara de espanto: — Ei, tem alguém aí dentro? Esse assunto já está morto e enterrado, meu caro — disse a Cris, batendo ao mesmo tempo com os nós dos dedos na minha cabeça aturdida. E tratou de voltar imediatamente à discussão que permanecia viva: 

— Vocês estão muito preocupados com o que é dito do Haroldo. E sobre o que se escreve do Augusto, não têm nada a dizer?

— O livro diz que a sua poesia foi influenciada pela fragmentação de Pound. Estranho: Galáxias foi evidentemente muito mais influenciada pelo Pound do que qualquer coisa do Augusto, e, no entanto, isso não é dito. O que será que quer dizer? — reparou o Régis, retomando disfarçadamente o tópico "Haroldo".

— Há uma outra passagem muito curiosa: Manuel diz, em relação ao Augusto, que a "despersonalização radical" levou-o à tradução e à crítica. O que tem a ver a despersonalização com a tradução? Ainda mais com a concepção de transcriação, altamente personalizada? Augusto, aliás, não é crítico — já não me lembro quem disse isso. Distraí-me conversando com a Luísa, que, com razão, já estava exausta e me pedia para irmos embora. O Paulo, entretanto, quis comentar ainda o que o livro dizia do Ferreira Gullar, que lhe parecia impróprio: — Que história é essa de que Gullar corresponde ao Herberto Helder? Não entendo. É incrível: as relações que ele traça são quase sempre as mais descabidas. Fico em dúvida se ele está falando dos mesmos poetas que eu leio.

— Não se espante, Paulo. Tive a mesma sensação ao ler o livro. Deve ser por conta da diferença de idade entre nós e o autor. — explicou benignamente o Eric.

— Qual o quê — replicou o Régis: — o cara tem quase quarenta anos!

— Eric, caro, valeu a tentativa misericordiosa, mas seja qual for a diferença de idade, não dá: ninguém consegue entender as relações que o livro estabelece entre os poetas. Elas me parecem sempre completamente arbitrárias — opinou o Paulo.

— E quanto àquela passagem, Eric — interpelou o Luis, assumindo-o como advogado do livro: — "Os longos intervalos de tempo entre seus livros indicam o caráter visceral dessa poesia...". Pense bem: poetas espontaneístas, ou "viscerais", por definição escrevem muito. Ora, longos intervalos de tempo são indicadores de artesanato, de maturação...

— Sim, o labor limae et mora horaciano —, palpitei, sempre disposto a fugir para longe do Brasil e do presente, já que não podia mais simplesmente entregar-me à comilança.

— ... o contrário do poeta "visceral" — concluiu afinal o Luis, como se escrevesse q.e.d. ao final da equação.

— No fundo — concluiu por sua vez o Eric, feliz com o seu papel de defensor — o livro é uma prótese, o equivalente literário de uma dentadura ou uma perna de pau, aparelhos para pessoas banguelas ou coxas.

— Eric, não exagere — protestou o Paulo: — Não há nada tão útil assim no livro!

— E o que acham do que é dito do Arnaldo Antunes? — disse imediatamente o Régis, atalhando uma eventual resposta do defensor Eric: — "... Antunes desenvolve essa percepção da concretude da linguagem em pelo menos três vertentes; (1) uma poesia de rigor formalista, que explora a paronomásia e na qual as permutações fonéticas entre os signos ditam os caminhos do significado (2) poemas tributários ao concretismo dos anos 50...". Disse bem: "poemas tributários...". E então, qual a novidade? E isso da paronomásia como recurso preferencial? Mas não foi esse sempre o recurso por excelência do concretismo, vide o já citado "beba coca cola / babe cola". Repito: qual a novidade?

— Talvez a paronomásia pop sem medo de ser feliz? — arrisquei bestamente: — Sem a hesitação do Leminski, por exemplo? — Ia evoluir o raciocínio do Leminski resolvido para as massas até chegar ao slogan lulista da esperança vencendo o medo, quando o Luis me interrompeu:

— E o caso do Tolentino? O seu verbete já abre com um chavão e um erro crasso ao dizer: "Poeta controvertido, polemista ácido e violento, Bruno Tolentino é o mais ardoroso crítico do coloquialismo modernista e da dissolução concretista do verso". Tolentino, ao contrário, é adepto evidente do coloquialismo de 22. Um exemplo que me vem à cabeça de Os deuses de hoje: "É, a vida é assim / como aqui vai dito, / mas, queira ou não queira / quem teme o infinito, / vale a pena sim". Parece Bilac? "Caiu, caiu / fora da história / o meu país: / foi por um triz / mas foi... E agora? / Bye-bye Brazil / [...] / Vais cair mais / e mais ainda, / vais para a puta / que te pariu: / primeiro abril ,/ depois o Nada". Isto é de Feliz aniversário, datado de primeiro de abril de 65. Tolentino apenas parece não gostar da vertente do poema-piada... — O que, aliás, não impede que seja às vezes totalmente hilário, pensei comigo. Mas era agora ou nunca:

— Bom, Luis, já que você falou em mim, quero dizer-lhes que acaba de dar meia-noite: acabou-se o meu aniversário. Hora de partir. Antes disso, quero apenas fazer uma declaração, já que vocês falaram como matracas o tempo todo. Queria anotar ao menos um aspecto positivo do livro, que saiu muito engrandecido de todo esse debate. E é justo que seja assim, pois, paradoxalmente, livros muito ruins podem ser muito esclarecedores. No caso, ele acaba revelando o que está sempre por trás de toda questão literária: a escolha, com mais ou menos razão, dos autores que se considera relevantes, por um motivo ou outro. A escolha, eu digo, e nunca simplesmente qualquer "natureza" supostamente necessária. Se quisermos ser contemporâneos deste estranho "hoje", do qual não podemos nos livrar, a primeira coisa a fazer é entender que estamos na contingência de uma história sem redenções celestes, científicas, literárias ou ideológicas. Logo, o que é arbitrário e ruim no livro é também sinal evidente de que há uma escolha a ser debatida e eventualmente refutada, mas não uma transcendência — católica, moderna, ou pós-pós, não importa — a ser venerada. E é verdade que, se a escolha é a questão, é ela que fracassa miseravelmente no livro. Nele, como vimos nas várias falas, a arbitrariedade, o corporativismo e a política literária aparecem mal disfarçados de critério crítico. Não há argumentos convincentes, nem pressupostos teóricos claros ou coerentes a ordenar as escolhas. A frouxidão dos critérios e a impertinência das descrições põem a nu a arbitrariedade da eleição ou, para falar em termos de retórica antiga: a ausência de decoro. Uma pequena precisão: a arbitrariedade é especialmente ruim, aqui, porque sequer há um gosto idiossincrático que mova a escolha dos autores ou que provoque a adesão afetiva aos objetos, o que seria sofrível, isto é, ruim, mas tolerável. A sua adesão aos objetos é prévia, pré-definida em função de objetivos que não aparecem formulados. É isto sobretudo o que se evidencia na falta de cuidado nas descrições, na confusão das referências, na glosa dos conceitos que cada autor faz de si mesmo. O móvel e a racionalidade do livro, se houver, devem ser procurados em outro lugar. Pois este é o ponto-chave e o segredo do livro: não ser senão um eco, como referiu o Paulo em algum momento. Comecei falando em ressonância, não admira que terminemos em eco. Meus votos finais, muito agradecidos a todos vocês que compareceram a esta festa que não foi apenas minha, e me alegraram e instruíram neste dia alarmante em que completo meio século, são solenemente os seguintes: que um tal livro, que ostensivamente desiste da crítica, seja a reiteração de um convite a ela. Cheers!

 

 

 

[Publicado, originalmente em Sibila — Revista de Poesia e Cultura, ano 4, nº 7, dezembro/2004.]
 
 
 
janeiro/2005
 
 
 
Alcir Pécora. Professor de literatura na Unicamp. Autor de estudos a propósito de literatura colonial brasileira, e, em particular, do sermonário do Padre Vieira. É crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos. Organizador da edição das obras completas de Hilda Hilst e Roberto Piva pela Editora Globo. Co-editor da Sibila — Revista de Poesia e Cultura.
 
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