ÁRIA PIÙ SOAVE

 

As minhas mãos são pentagramas

acordando sons no teu corpo.

Ponta de dedos ímã o tato se vai

percutindo notas descobrindo poros

um toque de cheiro no silêncio úmido.

 

Nos teus cabelos teço a fina partitura

feita de duas claves:

A mão direita

sola um sol agudíssimo

na tua verbena escondida;

a esquerda se faz em fá

o grave fado

o gesto do teu tesão

fala no meu pulsar.

 

(Um sopro morno fala baixo

no bafo abafado em tua boca)

 

O suor dos nossos corpos

enquanto garoa no lençol —

lava por um instante

o tempo de um ritmo sem metrônomo

um cheiro concreto de amêndoas.

 

 

 

 

 

 

POEMASOCH

 

Mesmo que me negues

a umedecida boca

ainda sim te amo

 

Mesmo que me traias

na espiral do fumo

ainda sim te amo

 

Mesmo que me subjugues

às pálpebras da noite

ainda sim te amo

 

Mesmo que me açoites

com teu carinho de relva

ainda sim te amo

 

Mesmo que me silencies

com tua saliva rubra

ainda sim te amo

 

Mesmo que me afastes

e mansamente me rejeites

ainda sim te amo

 

Amo-te assim e ainda

desconcertado fico e te amo

Entre a palavra e o gesto

(no previsível canto da solidão)

resta o ato em que me completo:

porto oportuno do gozo

ferrão de vespa na pele da paixão

 

 

 

 

 

 

PRIMÍCIAS

 

Começo pelo começo

bem calmo nesse arremesso,

 

e a boa velocidade

vem nos dedos sem alarde.

 

A pressa que traz desastres

está fora desse catre

 

e a cama dos seus desejos

é dela e dos meus arpejos.

 

Música de descoberta

é a que vem tão aberta

 

que sabe a chave da cela

inventando-se janela.

 

Sabe soltar essa fera

presa na teia da espera:

 

breve sopro no pescoço

toque macio no dorso.

 

As mãos em concha nos seios

colinas do meu passeio

 

sou cuidadoso alpinista

sei do mamilo a conquista.

 

A língua meu artefato

se atiça com muito tato

 

vai do ouvido ao seu regaço

e lúbrica banha o espaço.

 

O tempo se perde inteiro

num relógio sem ponteiros.

 

Já o disse certa vez

nas curvas da sensatez.

 

Os sons que saltam do corpo

úmidos de tanto rogo

 

se abafam num bafo quente

vapor de tesão fremente.

 

Há mistérios nas palavras

que nem a memória grava

 

são do instante a liberdade

que o vulgar vem sem as grades.

 

É quando desço ao regato

revelando no meu trato

 

o retrato e seu reflexo

toda a magia do sexo.

 

E o beijo mais escolhido

pousa nos pêlos tecidos

 

crespa canção guardiã

do milagre da manhã.

 

E ligeira se aligeira

a serpente mais rasteira

 

de língua manemolente

amaciando o presente.










DIONYSIO

 

Ungido para o fado e a nova festa

meu carnaval profano já celebra

as quarentenas dívidas da carne

na cela de costelas das mulheres.

 

Como devasso réu, confesso fauno,

no vinho das delícias me declaro

sem culpa e sem pecado original

pois nessa pena sou igual a tantos.

 

Já disse certa vez em cantoria:

de nada me arrependo e reconfirmo

agora que o meu tempo é só de gozo.

 

A vida que me dou não dá guarida

nem guarda desalentos de tristeza

somente na alegria é que me morro.

 

 

 

 

 

 

CHUVA DE FOGO

 

Meus olhos vão seguindo incendiados

a chama da leveza nesta dança,

que mostra velho sonho acalentado

de ver a bailarina que me alcança

 

os sentidos em febre, inebriados,

cativos do delírio e dessa trança.

É sonho, eu sei. E chega enevoado

na mantilha macia da lembrança:

 

o palco antigo, as luzes da ribalta,

renascença da graça do seu corpo,

balé de sedução, mar que me falta

 

para o mergulho calmo de um amante,

que se sabe maduro de esperar

essa viva paixão e seu levante.

 

 

 

 

 

 

CURTA PAVANA

 

O dorso que se curva arco elegante

desenha na memória a leve dança

da bailarina grácil, celebrante

de rito sedutor, que me balança

 

toda vez que me vejo tão distante,

torcendo meus desejos na lembrança

dos momentos vividos, no constante

aprendizado vasto da mudança.

 

Posto que a vida corre em curtas curvas,

transitória paisagem, vário atalho

que vai modificando linhas turvas.

 

Mutante claridade me agasalha:

No casulo do gozo de sussurros

sei-me bicho saído dessa malha.










BOLERO DAS ÁGUAS

 

O passo no compasso dois por quatro

acode meu suplício de afogado

afastando de mim sedento cálice

em submerso bolero de águas tantas.

 

A sede dança seca na garganta

curtindo signos, fala ressequida

para a língua de couro, lixa tântala,

alisando palavras rebuça

Quanto alfenim no alfanje que se enfeita

para montar as ancas de égua moura.

Lábia flamenca lambe leve as oiças,

 

é rito muezim ditando a dança:

no dois pra cá me levo em dois pra lá,

nas águas do regaço vou-me e lavo-me.

 

 

 

 

 

 

(H)ARAS E SARA(H)

 

 Nas areias do Saara sei-me potro

 corcel bebendo o fogo do deserto.

 Nas almofadas dunas tão macias

 me deito ao sono sonho cavalgando.

 

 Arrebatado sigo sem miragens

 teu trote gracioso nesse oásis

 de ver nas anchas ancas tantas águas

 e sei que a minha sede tem abrigo.

 

 Sedento garanhão de antiga Arábia

 no solo de Israel lua de alfanje

 brilha na tenda a estrela de David.

 

 Iluminada alcova ardendo em sândalo

 a sarça da paixão demove intrigas

 e rega no seu vinho nossos corpos.

 

 

 

 

 

 

CANTIGA DE SÁBADO

 

Quero escrever um poema

leve no dorso dourado

que fique em versos perenes

meu veneno tatuado

 

Um veneno de paixão

de olor forte mas sereno

e que se espalhe até na alma

tomando todo o terreno

 

Começo pelos teus lábios

pastores dos teus mistérios

sopro suave na brasa

do beijo que tanto quero

 

Do meio destas colinas

ao regaço mais molhado

me afogo e te bebo toda

na concha do teu relvado

 

Sentir o sal do banquete

o mormaço do teu ventre

teu cheiro que me alucina

assanha a senha serpente

 

Este sábado é de bênçãos

bacante regando a cor

de vinho tinto rascante

das uvas do nosso amor

 

Foram 7 os meus desejos

7 vezes consagrados

que a vida só vale a pena

levada nos seus pecados

 

 

 

 

 

 

LITANIA

 

Cultivo um pedaço de mim

guardado por sombras antigas

para a visita

predestinada

da mulher de sede serena.

 

Os goles aos poucos servidos

levarão a  calma colhida

no cântaro das horas fluidas

samaritanas

à boca enxuta

da mulher de serena sede.

 

Um fio de afiado filete

se afinará foz fescenina

rio de sal salivado do corpo

decantado encontro das águas

lépida língua

sorvendo o suor

da mulher de sede serena.

 

Saciar sedentos anseios

à beira desse corpo ansiado

fez-se  do rumor de lençóis

nesse aprendizado rugindo

desesperos de horas letivas

prece com pressa

sem a cartilha

da mulher de serena sede.

 

Minhas mãos desenharam mapas

da geografia enfurecida

de planícies incendiadas

pelas lavas de vulcões jovens

que sabem só desses instantes

cuspindo o fogo de momentos

surto veloz

sem essa calma

da mulher de sede serena.

 

Agora que rezo tranqüilo

o salmo das vinhas maduras

acendo  a cultivada chama

não ao impulso de erupções

mas no pavio da candeia

lamparina de fogo brando

ardendo azeite renovado

iluminando

grãos dessa espera

da mulher de serena  sede.

 

 

 

 

 

 

MULHER DE SEDE SEDENTA

 

Finge a mulher que não se quer vulcão

num eufemismo frágil de inverdade.

Onde existiu fogueira, abrasação,

basta um sopro na lenha da saudade.

 

A sede que se faz sede serena

chega filtrada em gotas bem dosadas

regando tantos tântalos na cena

roubando-a como amante acalorada.

 

O verde que queimaste já não conta

pela falta madura dessas montas

na pressa sem primícias do alunado.

 

Hoje não. Os chamados escolhidos

são bem poucos, didáticos bandidos

que não querem morrer sem ser matados.

 

 

 

 

 

 

OLHAR A DOIS

 

As grades que me prendem são teus olhos

aquática prisão, cela telúrica

liana que me enrosca e me desfolha

no tronco tosco dessa árvore lúbrica.

 

No sol de Gláucia apenas me recolho

e sendo assim o sido se faz público

num pelourinho aberto com seus folhos

zurzindo seu chicote em gestos lúdicos.

 

Perau de feras, circo de centelha

regendo as águas tépidas de escamas

no fogo da (a)ventura da parelha.

 

Tudo em suor e sal o amor proclama:

teu mar do olhar em ondas se assemelha

à chama que me acende e que te inflama.








(imagens ©lee jones)

 

 

 

 

Anibal Beça Poeta, tradutor, compositor, teatrólogo e jornalista, nasceu em Manaus, na Amazônia brasileira, em 1946. Publicou Convite Frugal (1966), Filhos da várzea (Manaus: Ed. Madrugada, 1984 — abrigando o livro Hora nua); Marupiara — antologia de novos poetas do Amazonas (Organizador. Manaus: Ed. Governo do Estado do Amazonas, 1985); Quem foi ao vento, perdeu o assento (Teatro. Manaus: Ed. SEMEC, 1986); Itinerário poético da noite desmedida à mínima fratura (Manaus: Ed. Madrugada, 1987); Banda da asa (poesia reunida. Rio de Janeiro, Ed. 7Letras, 1998 — contendo o livro inédito Ter/na colheita); Filhos da várzea (2ª edição. Manaus: Editora Valer, 2002); Folhas da selva (Manaus: Editora Valer, 2006); Noite desmedida e Ter/na colheita, 2ª edição (Manaus: Editora Valer, 2006). Site oficial: http://www.portalamazonia.com/anibal

 

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