©antónio melo

       

quando me comeste

quando me comeste
de uma forma como nunca em mim fizeste
ouvi no imperativo os verbos mais sagrados
     vem  sobe  encaixa  mete  fode
despossuí-me das rédeas que trazia
no máximo fazia
o mínimo necessário
      em ti me dissolvia
      em ti me misturava
e tu senhora e ama
da cama e do momento
nos volteios que me impunha o teu desejo
deste-me à língua a tua pele
toda ela  toda líquida  toda nua
levaste as minhas mãos à cabeceira
e no transe hipnótico provocado
juro que senti as mãos atadas
pedias — ou mandavas — que eu gritasse
e eu de olhos fechados sussurrava
       meu amor
à peça última que inútil te vestia
— um meia-taça já nos ombros derreado —
levaste à minha boca
e tal como crisálida
dele tu saíste
deixando-o em mim como mordaça
      me abraça meu amor, disse, me abraça
subias e descias no compasso certo
sabias e dizias os verbos sagrados
       vem  sobe  encaixa  mete  fode
e naquela vez  per la prima volta
chorei de gozo
quando me comeste

 


pêlos

Macia selva que o teu corpo tapeteia.
Fina ramagem onde o toque se aveluda.
Vaivém de vento que penteia e despenteia.
Sensível manta que te cobre e te desnuda.
 
Pouso de face — a tua face — em minha face,
passando, aos poucos, a carinhos circulares.
Corta o silêncio abafadiço roçar: dá-se
a sinfonia dos murmúrios capilares.
 
Miro a penugem que recobre a tua orelha,
e os meus ouvidos, feito dedos, passam leves.
Cílio teus cílios, sobrancelho a sobrancelha,
e um humm e um ai e um ai e um humm sussurram breves.
 
Plumagens raras — tua nuca envolta em rama.
O meu pescoço quer o teu e tu mo encostas.
Tu te declinas à maneira de quem chama.
Nas mãos reversas sei da relva em tuas costas.
 
O que me é tátil à minha boca ora transfiro,
visto que assim, se sei do toque, sei do gosto.
E mais eu sei se pela boca te respiro,
pois menos sei qual do teu pêlo me é posto.
 
Pêlos que eu gosto: os que cercam teus mamilos,
onde em percursos labiais circunavego.
Tal o prazer tê-los assim, assim senti-los,
que a minha boca no teu seio às vezes nego.
 
Pêlos que eu amo: os da barriga, feito seta,
que a boca assanha indo e vindo ao teu umbigo.
Como uma onda, o teu quadril se me projeta,
surfo teu ventre e nos teus pêlos eu prossigo.
 
Pêlos que eu quero: os teus pêlos inguinais,
onde, bem sei, se me demoro, tu te adias.
Desses eu passo a outros pêlos, capitais,
e em tais arranho a minha barba de dois dias.

 


shampoo

bastaria o movimento dos quadris
face à minha face
os teus joelhos abertos
tuas mãos em meus cabelos

bastaria sentir o teu sabor mais íntimo
o ir e vir e o vir e ir
da perfeita sincronia desencontrada
dos meus lábios
                nos teus lábios

bastaria o postergar do ápice

o ver o transformar do teu sorriso
em outros risos que adoro, amo e quero

mas não

tinhas que vir com teus cabelos ainda úmidos
saídos da banheira a pétalas preparada
e tinhas que fazer dos fios — pura maldade —
o carrossel a girar em todo o rosto meu

: cheiro esse em que ainda permaneço.

 


missa

Vapor de incenso rente aos góticos das naves.
Uma mulher se abeira ao genuflexório.
Ao latinório o órgão junta os sons mais graves
e em contraponto ela inicia um responsório.

Em meio a preces a cerviz cede e se encurva,
e a fronte deita na rudez da mão constrita.
De vez em quando o seu pescoço se recurva,
mostrando a face lagrimada e mais contrita.

A impressão é de quem traz todo o pecado,
e de quem é a filha amada da desdita.
O choro e a reza em contubérnio consumado:
ao mesmo tempo que é perdão, lembra a vindita...

Mesmo de costas, no retábulo percebo
aquela imagem que em trejeitos se revolve
(um gosto amargo vem no vinho quando eu bebo,
e em minha mão o pão sagrado se dissolve...).

Do Altar-Mor desço os granitos da escada,
num sentimento que de culpa mais parece.
Chego ao transepto e o meu verbo não diz nada,
ela, surpresa, quer falar, mas se emudece.

Cessa do choro, cala a prece e se levanta,
e vindo a mim, ato contínuo, se ajoelha,
(olhos azuis, a pele branca, a tez de santa...)
e a minha mão ousa tocar sua guedelha.

Com o polegar enxugo as lágrimas do rosto,
e um arrepio me tomava e eu tinha medo...
Só pelo tato e pelo olhar senti seu gosto,
ao ver seus lábios à procura do meu dedo...

Me valho à prece enquanto toco a sua boca,
e nela eu faço a marcação da Cruz Sagrada,
quanto mais rezo, mais a fé de mim se apouca
(meu corpo em pé e a minha alma ajoelhada...).

A minha mão decai da boca ao seu pescoço,
quero parar, mas o pecado me prossegue.
Cedo ao instinto e da razão nada mais ouço,
o olhar cerrado, quer abrir, mas não consegue...

Um forte impulso ao seu encontro me impele.
Eu me ajoelho e fico à altura dos seus olhos.
Minha vontade é me queimar na sua pele.
Unto seus ombros derramando os Santos Óleos...

Eu desamarro o seu justilho, incontinente,
e as minhas vestes de ofício eu rasgo ao meio.
O óleo segue a deslizar, suavemente,
nas ogivais lactescentes dos seus seios...

Lembro da hóstia e uma força me sustém.
Não sei de mim, tanto desejo me treslouca...
em seus cabelos os meus dedos se detêm
(sagrado é o trigo que eu ponho em sua boca...).

As suas mãos eu levo à pia batismal,
sem esperar que alguma prece me concentre.
Me dessedento em meu pecado gutural,
bebendo o vinho do Sacrário do seu ventre...

Qual Pentecostes, misturei minh'alma à sua,
eu sussurrando as Ladainhas mais insanas,
e ela em responsos de suor da carne nua,
gemendo em gozo cada "Oh, Glória..." das Hosanas...

 

 
©pedro marques pereira
      

 

esse verbete de referência

(ou: porque fratura não se expõe impunemente)

não era Donne em versos indo para o leito,
tampouco Caetano ali cantava,
mas Ela, misturando os dois, dizendo:
"quando ele sobre mim e dentro dança lento",
e eu, que já nem sei se lento ou não nela dançava,
sei que mais dentro (sob ou sobre?) me deixava.

ao lado a lingerie recém-comprada
e ainda não usada (olha a surpresa:
trazia entre os dentes e mais nada,
assim, só pele e poros, nua em pêlo),
ao lado, eu dizia, aquele mimo,
que a mão, à meia-luz, fiz que enxergasse,
lacei sua cintura e obediente
deixou (fez que deixou) que eu comandasse.
as ancas alternando ora espirais,
ora fluxos de um percurso sul e norte
— e ora tudo isso quando em 8.

sim, és linda e única e máxima e sem decência.
és meu verbete de referência,
disse.

e ela, de presente, a linda, fez
seu cabelo, todo ele em desalinho,
por campana em meu rosto:
a vida era ali dentro: cheiro e gosto.
o mundo era lá fora: burburinho.

poemas me acorriam, delirava.
sonetos nascituros declamava:

"amemo-nos do amor que mata e vive,
sem meias concessões, de tudo ou nada.
do amor do mais amado e mais amada,
que nunca, sei, tiveste e nem eu tive".

mas, não.
ali era o poema em carne viva.
ali qualquer palavra soçobrava.
teus peitos, minha boca, teus cabelos,
meu corpo inteiro entregue, tuas coxas.

amei quando disseste erguendo o queixo:
pu...
(verbete meu e referência minha,
fratura não se expõe impunemente.)
...taquepariu.

então te chamo, abraço e beijo
e em mim tu dormes.

 


parede

o tempo é o momento. o instante é cada.
seria aquele agora o que viesse.
camisa sem botão no chão jogada
(rasgada a lingerie, sozinha desce).
decerto seguiria a caminhada,
se perto uma parede não houvesse.
desceu-me da cintura e já virada,
pediu que em suas costas me fizesse.
saía-lhe, a voz, rouca, abafada,
dizendo pra fazer o que eu quisesse.
a ordem não restou-me ignorada,
nem outra esperei que me dissesse.
com os pés, uma da outra separada,
um ângulo em suas pernas quis tivesse.
e cada uma das mãos quis espalmada,
e o rosto na parede se pusesse.
num beijo fiz-lhe a nuca devassada
(tingida de um rubor, logo azulece).
mexendo teu quadril, fêmea e suada,
teu peito na parede se intumesce.
e toda as tuas costas quis beijada,
na forma de beijar que me apetece:
pensar — embalde a boca em beijo dada —
que o beijo já de haver beijado esquece.
e a tua voz — se havia — foi calada
: teu uivo na parede se emudece.
banhou-te meu suor — tu já molhada
: de nós toda a parede se umedece.
as ancas quis de mim aproximada,
do jeito que o teu corpo bem conhece.
desci-me e, genuflexo, à mirada,
a língua quis que se sobrepusesse.
e o que se me mostrava resguardada,
aos poucos no lamber mais se elastece.
roçares... vaivéns... língua sugada...
sorvendo e sem que a sede detivesse.
a boca de contrastes consumada:
se o teu suor esfria, o mel aquece.
serias dessa forma vergastada,
se noutra, bem melhor, não conviesse:
subindo, vou sentindo na escalada,
que o gosto que eu trazia remanesce.
sussurro em teu ouvido: tu. mais nada.
sussurras à parede: não se apresse...
(ouvi, mas como fosse não falada,
tal foi a tua voz em quase prece.)
meu corpo colo ao teu — forma acoplada.
e o corpo, inda que dois, um só parece.
meu corpo invade o teu — breve estocada.
e em breves indo-e-vindo permanece.
queria-te de mim toda tomada,
e invadiria mais, se mais coubesse.
gemias de uma fala recortada,
da qual somente o corpo reconhece.
e em pleno evolver da cavalgada,
meu corpo, junto ao teu, treme e estremece.
(...)
se a hora se passou, não foi contada
(se se, talvez em si se desfizesse).
(...)
te volto para mim, quero-a abraçada,
e em canto, tal uma ária compusesse,
sussurro em tua boca: tu. mais nada.
deitemos, amor meu... já se amanhece.

 


*

entre, fora, sobre, embaixo
nas laterais e no centro
bico do peito no peito
beijo de boca epicentro
garapa tecido leito
coxas e pêlos riacho

cheiro de fêmea e de macho
gangorras no baricentro
ora largo e ora estreito
ora de longe, ora dentro
e o branco no novo efeito
do cobre ruivo do cacho

o teu senhor e capacho
o teu raio e circuncentro
o teu esquerdo e direito
manteiga, queijo e coentro
todo sabor, todo jeito
inteiro, de cima a baixo

 

 
 
©antónio sta.clara

    

the língua


                                         pelo dedo
                                       primeiro
                                     do teu pé,
                                    em curva
                                   senoidal
                                  de sobe e desce,
                                  tocando
                                   um a um
                                     que se umedece,
                                       falanges,
                                        cinco unhas,
                                         vante e ré,
                                          solado,
                                          metatarso,
                                        calcanhar,
                                       telúrico sabor,
                                      salivo o pêlo
                                     do contorno
                                    de todo o
                                   tornozelo
                                   alternando
                                    entre o
                                     beijo e o
                                      respirar...
                                       lambuzo a
                                        panturrilha
                                         ondulada,
                                         e encosto a
                                        pele áspera
                                       do rosto,
                                      misturo
                                     assim o
                                    meu com o
                                   teu gosto,
                                   de boca e
                                    de pele
                                     já suada...
                                      avanço
                                       no joelho,
                                        alcanço a
                                           coxa,
                                           mordidas
                                          de mentira
                                         em toda
                                        parte,
                                       o beijo a
                                      pintar
                                     obra-de-arte:
                                     às vezes
                                      nuvem
                                       rubra,
                                        às vezes
                                         roxa...
                                          (e as mãos e os
                                            pés dos dois
                                            rasgando a
                                           colcha...)
                                          subindo
                                         pelo "S"
                                        do quadril,
                                       no rastro
                                      salivar
                                      chego ao
                                       umbigo,
                                        (de tão
                                         pesados os
                                          olhos,
                                           só lobrigo...)
                                            te ouço
                                            sussurrar
                                           um "não"
                                          sem til...
                                         na reta que
                                       inicia-se
                                      no ventre,
                                     deslizo à
                                     divisa
                                      dos teus
                                       seios,
                                        no ritmo
                                         pendular,
                                          paro no
                                           meio, e o
                                           terno beijo
                                          alterno
                                         calmamente...
                                        em todo o
                                       teu pescoço
                                      faço um giro,
                                     molhando a
                                     superfície
                                      perfumada,
                                       e após uma
                                        descida
                                         demorada,
                                           eu cravo a
                                            jugular,
                                            feito vampiro...
                                           adentro
                                          umedecendo o
                                         teu ouvido,
                                        volteio,
                                       vou e volto,
                                      saio e entro,
                                      penetro,
                                       molho tudo,
                                        fora e dentro,
                                         (teus olhos,
                                          como os meus,
                                           calam franzidos...)
                                            em torno
                                            dos teus olhos
                                           faço um 8
                                          nariz,
                                         maçã do rosto,
                                        tudo beijo,
                                       de tão extasiado,
                                      não mais vejo,
                                      e suga
                                       minha boca
                                        um beijo afoito...
                                         encontram-se,
                                          duelam-se,
                                           se enroscam...
                                            procuram-se,
                                            encontram-se,
                                           se tocam...
                                          descansam,
                                         brigam,
                                        chupam-se,
                                       se trocam...
                                      de súbito
                                      desço ao
                                       vértice do "V"
                                        que formam
                                         tuas coxas
                                          levantadas
                                           e sorvo
                                            e absorvo
                                            em golfadas
                                           o néctar que
                                          me inunda
                                         de você...

 

 

 

 

Antoniel Campos (1967, Pau dos Ferros, RN). Poeta, engenheiro civil, vive em Natal. Publicou Crepes e cendais (Ed. do autor, 1998), De cada poro um poema (Editora Sebo Vermelho, 2003) e A esfera (Plena Editora, 2005). Escreve o blogue Poros e Cendais. Mais aqui.