ACORDADO

que seja o teu querer
a exata medida do meu:
somente amanhecer
por saber que o gosto de nós
ainda nos cobre por lençol
e que todas as palavras
com todas as suas curvas
jamais descreveriam
as minhas nas tuas

 


O FADO, A SORTE, A SINA.

que seja o teu querer
a exata medida do meu:
somente amanhecer
por saber que o gosto de nós
ainda nos cobre por lençol
e que todas as palavras
com todas as suas curvas
jamais descreveriam
as minhas nas tuas
O instante é tudo. O tempo é nada.
Mais perto é, se volto um passo.
É tudo curva. É tudo escada.
Tudo o que sei é erro crasso.

Na minha cara deslavada,
Toda a verdade é a que disfarço.
Não posso a hora já passada.
O instante segue e já não passo.

Reluto em mim esse arremedo,
ora revolto e ora a medo,
e o meio-termo me domina.

Tudo, a princípio, já traçado:
Em toda parte e em todo lado,
é esse o fado, a sorte, a sina.

 

 

MAS VENS

como se todo o tempo já tivesse transcorrido
— porque tudo passa, se tocamos,
vens com o teu bafio, o teu hálito, tua aura e teu roçar,
nessa tua onipresença, ora dentro, ora fora, tanto e toda em mim.

(a medida do tempo é bem mais clara na ausência.)

à margem de ti, me vejo rude. tosco. incompleto.
êxul de mim, naquilo em que mais me vejo.
e tão poucas são as coisas em que me percebo.

mas vens.
como a dizer de um capricho urdido adredemente,
um experimento, uma cilada,
aferindo-me com o teu esperômetro,
a medir meu quantum de permanência.

(tola... como se coubesse a mim traçar novos rumos, trair-te, abandonar-te.)

adentrar nos teus domínios — a mesma sensação sempre renovada,
é como se chegar em país estrangeiro e lá encontrar pedaço de seu.
tudo compreender, nas múltiplas linguagens que me trazes à mesa.

mágico momento, singular instante o desse encontro,
em ti, eterna estrangeira e eterna cúmplice, conheço-te cada rua,
                                     [cada rincão, qualquer espaço, à vista
primeira, como se antigos fossem os nossos abraços.

(e tão antigos são os nossos abraços.)

de verdade, não sei se sou eu que te esqueço, ou se és tu que me abandonas.
                                                               [mas sei que todo esquecimento
e abandono são efêmeros.
sei também que deve ser assim
porque, às vezes, me sufocas, não dás trégua, e eu, bem o sei, por vezes faço igual.

(o que seria dos encontros sem a saudade?)

mas vens.
e sabes como chegar.
em vão disfarças, porque é do teu querer que todo disfarce seja em vão.
pões uma venda na face, à guisa de ocultar-se.
e ris.
e ris porque sabes que a mesma venda te serve por bandana, inútil cendal,
                                                       [máscara fugaz em que estampas:
sou eu.
na linearidade em que te mostras, percebo-te em ondas.
nas ondulações, o teu linheiro percurso.
e caminho no teu seguro caminho.

e os antigos abraços se renovam.

e vens.

e ficas.

 

 
 

 

TODO POEMA É UM POEMA APENAS

todo poema é um poema apenas,
quer nasça a risos, quer a duras penas.
todo poema, ao fim, é passadiço.
(às vezes, nem isso.)
todo poema pensa vir da avena,
embora o verso chore cantilena.
todo poema, sempre, quer mais viço.
(raro passa disso.)
todo poema quer roubar a cena,
pensa ser grande, se mais se apequena.
todo poema, em si, quer ser castiço.
(nada mais postiço.)
    o meu poema é toda essa gangrena.
    (nisso, morro disso.)

 


POÉTICA

Se o poema não se diz,
cada verso se desfaz.
A idéia é a matriz
e todo o resto é fugaz.
Mais o conciso é loquaz
se falta ao verbo raiz.
O prolixo se desdiz
se tanto verbo é falaz.
Ao poeta, a diretriz;
ao poema, tanto faz.

 


QUE EM OUTRA LÍNGUA A MINHA
                          LÍNGUA CALE

Bendita a língua que legou Pessoa,
sagrado templo que guardou Augusto.
Palimpsesto que, por mim, ressoa
tudo o que eu tento ocultar a custo.
A minha voz, ainda que em silêncio.
O meu silêncio, mesmo quando voz.
Se habito em um, o outro invade, vence-o.
Inútil o intento de querer-me a sós.
Parte de mim sem que se saiba a parte
onde um termina e o outro se inicia.
Um todo feito de invisível aparte,
sou eu a língua que me cumplicia.

Filiu brasilis, mater portucale,
que em outra língua a minha língua cale.

 


CADA VERSO QUE ESCREVO É SEM  RAZÃO

Se a esquiva é o desvão do fingimento,
o silêncio sugere o sim e o não.
Se a lembrança prepara o esquecimento,
cada verso que escrevo é sem razão.
Muito mal representa este momento;
o passado e o futuro, pouco então.
A distância do verbo ao pensamento
é-me acima a do claro à escuridão.
Já não sei o porquê do movimento
que se dá entre a pauta e a minha mão.
Se há gozo, confundo com o tormento
— duas faces da mesma sensação —.

Um poema não diz meu sentimento,
cada verso que escrevo é sem razão.

 

 

(imagens ©karen moskowitz)

 

 

Antoniel Campos (1967, Pau dos Ferros, RN). Poeta, engenheiro civil, vive em Natal com a esposa Almira e as filhas Amália e Laura, gosta de MPB e bolero, poesia e do Vasco da Gama. Publicou Crepes e cendais (Ed. do autor, 1998), De cada poro um poema (Editora Sebo Vermelho, 2003) e A esfera (Plena Editora, 2005). Escreve o blogue Poros e Cendais.