COSMOS

 

 

I

 

 

adio a escritura como o Juízo Final

para além das vocações necessárias

a poesia este enclave de fronteiras

maldosas num pêndulo não tributário

de nada

 

 

mas vez por outra como por mágica

uma palavra encantatória

não diz nada mas sugere muita coisa

antes de se tornar os destroços

que reúno a conta-gotas

 

                  ~

 

muito desconcertado descubro

esta dissonância de verdades:

 

Órion, o caçador,

vai explodir antes de passados

os sete infinitos que o afastam

das Plêiades fugitivas

também o Sol se muito cresce

de bola enorme de fogo revive

— fatalidade cósmica —

como esquálida

anã branca.

 

 

 

 

II

 

 

o tempo-insídia do poema é:

um físico congelado na cadeira de rodas.

 

alegre, pensa na quintessência de nada:

o universo numa casca de noz.

 

contudo

não tão duro o tempo que não se possa

numa galáxia distante ver perplexo

a extinção meteórica dos dinossauros

nem tão alegre que não se cante

a volúpia derramada dos vermes

 

 

 

 

III

 

 

envelheço:

as hulhas na cara

a ida

esta dilatação

cósmica queima

quente, mácula

 

esta volta no espaço

esta dor constelada

ruge e domina

vaporosa

 

esta noite faço

o poema-navalha

 

 

 

 

IV

 

 

a exibição de um filme se perde/ uma nota se perde/ um uísque com gelo/ minha mulher se perde/ meu desejo de trepar se perde/ minhas mãos hirtas se perdem/ numa causa insondável/ mas guardo e teço/ elogios sérios/ao tempo de deus.

 

pai nosso que estais no céu/ livrai-nos da angústia/ não disse quando podia/ porque o poeta estava nu/ estavam nus os dois corpos do rei/ mas no jogo de búzios me afogo mimético/fico lúcido mas não fico morto: Babalaô

me-nos livrai da

 

 

vulgaridade.

 

 

 

 

V

 

 

gênesis:

 

 

espanquem as mães: a última contravenção política: espanquem a sete chaves no calabouço abrindo fendas forjando enormes fissuras necessárias: essa alegoria não subsistirá daqui a 30 anos: não será uma alegoria: é a verdade rarefeita: espanquem com gigantescos tubos de cobre pra que toda vitalidade em suspensão finalmente determine o apuro de nossas almas: a volta por cima a vingança: o fim da Culpa original o mal que estava aí: — cósmico e pré-adâmico

 

a  substância do mal de um polo a outro

antes da Queda

 

 

esta fusão:

primeiro aborto da linguagem

 

 

no horto

as primeiras correspondências

 

 

 

 

VI

 

 

prolegômeno:

nos píncaros de areia movediça

vibra o corpo, minha filha

de mãos dadas com o tédio

este milagreiro ceifador

e diz

 

" tudo isso posto

bom mesmo é estourar os miolos

com a dignidade de um deus"

 

 

 

 

VII

 

 

Que será feito de Verlaine
Neste claustro de músicas ruins?
Onde os fatalismos afins
E o vivo tonel de la haine?

Onde reinam fluidas correspondências,
Ausentes os filtros, as litanias sonoras,
Congelados os espectros nas horas
Das inauditas transcendências?

Verás tu entre sinfonias malfazejas
No lodo escuro onde adejas
Agonizar rude e afastado de tudo

Um lugar de incensórios e sacrários,
Alheio aos cotidianos funerários,
Moderno e agourento Mundo?

 

 

 

 

RUA DO OUVIDOR (para Cruz e Sousa)

 

 

fantasma: fino espectro mãos e testas largas a boca negra e triste masca nesgas de sardinha enlatadas meio agora meio resto na janta — vivo contraste

o da fome com a

indumentária de dândi

vivos forma e conteúdo

acaso teu relógio de bolso pressente boiarem nos cafés os ígneos medalhões do Parnaso? castos e barbados, despem-te de teus broquéis, sonham-te morto em antigo Paço.

 

 

 

 

~

 

 

hoje o Paço Imperial

agoniza na Rua do Ouvidor

 

morreram já

as quinquilharias francesas

 

e ainda

— nem tão republicanos —

 

vivem:

os idos medalhões do Parnaso

 

fumam nos cafés

matam mulheres

 

 

 

 

 

 

DO QUE APRENDI COM SAFO

 

 

lésbia nervosa — não convoquei minha ancestralidade pra lascívia de Eva nem brotei das costelas de alteridade alguma vendo nisso só uma aporia de mau gosto. os meus erros me fizeram amputar meus membros mais caros e colhê-los numa autofagia inaudita. não provoquei nunca nada em ninguém exceto uma náusea duradoura e finissecular. dei de oferta e presente mil cartas de suicídio mas a dureza do real dilui esta imaginária fusão cósmica: desisti. ao fim e ao cabo meus gostos não eram gostos mas obsessões.

 

mas uma foto é uma foto:

um eco de gelo se

me

mostram esquartejada

a

Dália Negra

percebo rápido

esse tiro-ruído

no

 

vácuo

 

 

 

 

 

 

WERTHER

 

I

 

decerto você não poderia esperar que depois de tudo isso eu tivesse poemas sobre mulheres:

 

 

em tempos como esses:

criaturas híbridas monstros

teus solipsismos teus amores

tuas listas de predileção:

nada disso é interessante

nada importa

 

no mundo de Odradek

de criaturas sem arestas

de estrelas-não-estrelas

com agulhas nas pontas?

 

leilões-bichos-coisa

poéticas da animalidade

quando eu tocava você — como poderia saber —

no escuro do cinema

poderia ser uma vulva poderia ser uma

biomáquina

 

 

 

 

II

 

 

códigos binários ou não

agulhas nos dedos ou não

estrelas com sem pontas

narro do alto esta micro-

tragédia:

 

 

conheço com convicção todo o meu tempo, a modernidade nas artes esculturas museus realidades 4D tremeliques toda a pétrea dignidade dos sentidos no que há de contemporâneo, mas não posso morrer e isto eu maldigo.

 

tenho tentado de todas as maneiras morrer e ser substituível

 

atrasou-se o barco que me leva pra baixo, permaneço-ruína

caçador invisível sobre o que pode haver de memória-involuntária

 

 

[do que resta de ti, mulher-aranha]

 

 

 

 

III

 

 

sigo desconfiado dos maus leitores:

"se um poeta se apaixonar por você, você nunca morrerá"

 

 

— mentem:

 

 

bye

bye

beautiful.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Alice Vieira é graduada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e, atualmente, mestranda do programa de pós-graduação em estudos literários da mesma universidade. É obcecada pelo autor Charles Baudelaire e por poesia decadente desde os 12 anos de idade. Atualmente, desenvolve o projeto de pesquisa "Carnal e místico: simbolismo religioso e erotismo na poesia de Cruz e Sousa", procurando pontos de tangência entre religião e erotismo na poética do autor. Em seus poemas, a autora busca ressignificar e atualizar os problemas que a poesia simbolista trouxe para a linguagem e, seguindo esse princípio, às vezes, compõe poemas com metáforas cosmológicas e o desejo de encontrar as correspondências baudelairianas.