©ralph
 

 

 

 
 

 

 

 

OU



Ou a vida se consome num instante

ou a vida não vale a pena.

(A vida não vale a pena

porque dura muitos anos.)

Ou a vida se consome

em fogo insensato —

ou é só um teatro.

(A vida é só um teatro

porque não se consome em fogo insensato.)

A vida não vale a pena.



[Visita do fantasma na noite, 2002]







A GIRAFA



Longos pescoços não as tornam

menos elegantes.

Antes


fazem-nas mais

íntimas

do ar.


(Passeiam em campo aberto

como torres em equilíbrio –

senhoras de si mesmas.)


Teriam

exigido de Noé

tetos mais altos.



[Outros bichos, 2007]







A CORUJA



O olho da coruja

pregado

no vasto mistério


que envolve tudo.

E, no entanto,

há um caminho que vai


do bico pontiagudo

às carnes macias

de alguma presa


que perambule

por ali,

a percorrer os desvãos.


(Quando ela chega,

alguma coisa

explode


em meio à calma.)



[Outros bichos, 2007]







A NOITE NÃO É



A noite não é nenhum objeto

que você possa manipular

ao sabor de um capricho:


não é nenhum troféu

que você possa levar para casa,

nenhuma coroa que você possa ter.


A noite é negra,

seca e difícil,

e em seus caminhos desertos


não há nenhum oásis à espera

onde você possa depor

o fardo das antecipações.


A noite é deserta sob o luar —

e não há nela país algum

que você possa chamar de pátria.



[Fim do verão, 2009]







POR UMA FRESTA DA NOITE



Há o impossível.

Há o que não podemos atingir,

as margens que não podemos atingir,

por mais que nos debatamos à superfície,

por mais hábeis que sejamos em nadar.


Há o opaco, o duro, o difícil,

o inapreensível,

a corda que não se pode romper,

o peso que não se pode transportar.


Há o inalcançável,

o que só se reflete no olho —

o pássaro nas alturas,

flecha,

distância,

cadeia de montanhas

que não se pode transpor.



[Qualquer um, 2010]







O LOUCO



O louco que me sonho talvez seja,

na sucessão de imagens em que o sono

se desenrola, em seu turvo abandono,

aquele que me espreita e me deseja


e não tem corpo ou voz entre o que eu veja

no dia claro, todo maio e outono,

todo a luz dominante e o seu entono,

mas que, no escuro, à noite o olvido enseja.


O louco vem à noite e me repõe,

fora da pretensão de eu ser somente

o fantasma desperto que o supõe:


me inventa inusitado de repente,

de costas para o engano em que pensei

estar sujeito ao dia e à sua lei.



[Qualquer um, 2010]







PUXADO PARA FORA



Pegam meu fantasma

e o denunciam

ao antropólogo


Não deixam pedra sobre pedra.

Estilhaçam meus vidros.

Pegam minhas mãos

e vão mostrá-las

ao quiromante.


Quando estou em repouso

me arrancam de meus lençóis,

me arrastam

para fora de minha toca

(arruínam minha cegueira e meu caos)

e vão distribuir-me

entre os leopardos.


Onde existo

não admitem que eu fique:

não admitem que eu pare. —

Aos pedaços,

retiram-me de minha tumba

e com meu ouro esquartejado

vão alimentar

os seus pardais eruditos.


Nem dia, nem noite —

nada, absolutamente: nenhuma paz.

Pegam minha silhueta e a subvertem.

E, com minha fisionomia destroçada,

vão exibir-me

na Babilônia.



[Conversa de espantalhos, 2012]







SE ME PERGUNTAREM



Se me perguntarem o que são os deuses,

responderei:

— Esses são os vertiginosos,

os que torceram o sangue das coisas

a seu bel-prazer.


Se me perguntarem o que são os ventos,

responderei:

— Esses são os que despertam

numa algazarra de tormentos e giros

o sossego das folhas.


Se me perguntarem o que são os dias,

responderei:

— Uma água apressada, uma flecha

que tem pressa de alcançar o que escapa

à competência do arco.


Se me perguntarem

quem sou eu,

direi:

— Uma boca ao relento,

depois do vento e das vertigens.



[Conversa de espantalhos, 2012]







OS CORVOS DE ALUMÍNIO



A Francisco Carvalho



Sobre os ombros da tarde ―

joias num doido escrínio

de nuvem e safira,

de fracasso e domínio,

de surpresa que gira

sobre o azul rodopio

do vento que ali passa ―,

com seu grasnar escuro,

os corvos de alumínio.


Sobre a aresta das telhas,

entre a náusea e o fascínio,

entre a brisa e a ferida,

como astros em declínio

(tendendo cada qual

para o negro da noite,

para o escuro do medo,

para a angústia do frio) ―

os corvos de alumínio.


Sobre os galhos do inverno,

sem qualquer predomínio,

propensos ao desprezo

ou ao cego assassínio

(que sabemos das suas

vozes acres e agudas,

velhas de muitas luas?)

na tarde cinza e manca ―

os corvos de alumínio.



[Bichos imaginários, 2013]







IMAGEM 7



A peste do desejo

infesta o teu país:

dizima o teu povoado

e te convence do erro.


Eu, cego, mas atento,

através da janela,

perscruto, desolado,

os sinais de dezembro.


(E me lembro, coitado,

quase mendigo já,

de uma era em que dormir

era um jogo perfeito.)


E rabisco, furioso,

o mapa do teu corpo:

senhor de tempestades

e outras coisas que finjo.


(Mas tu já vais tão longe

e a tal velocidade,

que o meu apelo cai

muito aquém do oceano.)



[Rapinário, 2015]







IMAGEM 13



Que tolice esta tarde,

com os cajados e os corvos,

com as surpresas da pedra

e o azul das distrações.


Que estúpida esta voz

que escutamos, devotos,

já quase acreditando

que há de chegar a carta.


(E são só engrenagens ―

pássaros-engrenagens ―

esses pássaros cegos

que vigiam o caos.)


Ai! Avanço e me lembro,

ergo os braços e apanho

uma fruta de vento

que sequer me ofereces ―


eu, o irmão deserdado,

o filho de janeiro,

o fingido, o pirata

que as máquinas destroçam.



[Rapinário, 2015]







QUANDO ME ABRIRAM PORTAS



Quando me abriram portas, não passei.

Quando, ao longe, acenando, me chamaram

e a direção da entrada me mostraram,

foi com orgulho e calma que os tratei.


Quando, sem compreender por que hesitei

frente aos tesouros que me presentearam,

finalmente, a sorrir, me deserdaram,

seguindo o rito de uma antiga lei,


foi com uma indiferença de mendigo

que a sagração troquei pelo perigo,

preferindo os desertos do extravio:


sem entender eu mesmo ― assim ninguém ―

o motivo, a razão do meu desdém,

nem o (se o houve) sentido do desvio.



[Quando me abriram portas, 2016]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Renato Suttana nasceu em 1966 na cidade de Barbacena e se criou em Barroso (Brasil). Foi professor da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), em Guarapuava/PR, e trabalha atualmente como professor adjunto na Faculdade de Comunicação, Artes e Letras e no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFGD, em Dourados/MS, onde reside. Como escritor, publicou livros de poesia e ensaios, entre os quais Bichos (2005), Outros bichos (2011), Bichos imaginários (2013), Rapinário (2015), Quando me abriram portas (2016), Indigestos e purgativos (2016), Lição de economia (2018), Opinionautas (2012, 2019) e Música de pianola (2018), Fora de alcance (2019) e O esquecimento necessário (2020), e tem traduções de Leopardi, Petrarca, H. P. Lovecraft e outros autores publicadas em livros e em seu site na internet. Seu livro Dura lição (inédito) recebeu em 2020 o Prêmio Leia MS, da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, com patrocínio da Lei Aldir Blanc, devendo ser publicado em breve. Tem poemas incluídos em coletâneas e revistas literárias do Brasil e de Portugal. Mantém na internet o site O Arquivo de Renato Suttana.


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