BORBOLETA POUSADA
(Inspirado num poema de Adélia Prado)
Ai, borboleta pousada!
Nem és Deus,
nem és nada.
É preciso encontrar para ti
um ponto onde possas pousar
entre Deus e o nada:
um corrimão de escada,
uma margem de estrada,
uma flor desbotada
(mesmo que seca e desbotada),
uma porta fechada
onde possas descansar
de tanto ir,
de tanto esvoaçar e tremer
entre Deus e o nada.
Ai, borboleta pousada!
[Altiplano, 2017]
TROCO
Perdulário das horas, dos minutos,
do enigma que eu não soube decifrar
(eram cinco de março num lugar),
troco por apreensão colheita e frutos:
troco por incerteza ar e momento
e por momento o todo do futuro,
com seu sabor insípido e perjuro
que se gasta num voo do pensamento.
Troco ânimo e agudeza por preguiça
e pelo gosto (ou raiva) de entender
que a alma não cabe nisto, movediça:
e que o olho nada diz ao sol que nasce,
que o esforço adula o horror de não poder
e que todo progresso é visgo e impasse.
[Fora de alcance, 2019]
AO SABOR DA CORRENTE
Ansioso porque me falta.
Disperso porque não tenho.
Vou ao sabor da corrente,
falho de bússola e lenho.
Quero dar coisas à vida,
quero juntar um tesouro;
mas tudo me contradita:
tudo é curva e mau agouro.
Para aportar só preciso,
para chegar só me basta;
mas a corrente me expulsa,
da costa aos poucos me afasta.
Trago notícias do rei,
tenho na mala uma carta:
porém chegar me aborrece,
e apenas vir já me farta.
Ansioso porque careço,
surpreso porque não tenho.
Vou ao sabor da corrente,
disperso de mapa e lenho.
[Fora de alcance, 2019]
VIA
A conjunção
entre o teu sonho
e o meu desejo
entre o teu gesto
e a minha boca
entre o teu nome
e o meu ouvido
entre o teu beijo
e a minha esperança
forma um terceiro rio.
[Fora de alcance, 2019]
SUBIDA, SALTO
Entre parênteses coloco
as distrações da claridade.
Para uma ponta me desloco
no jogo incrível da verdade.
Respeitoso das evidências,
dou mais um passo para diante.
Aborrecem-me as estridências —
e o sol é prolixo e distante.
(Aborrece-me a nitidez
que se impõe ao meu pensamento,
pois sei que é feita de talvez
e tem parte com a poeira e o vento.)
Sem nada que me justifique
e sem nenhuma explicação
que me destranque ou descomplique
para os acordos da razão,
subo sozinho uma montanha
de incerteza, que se repete:
e a tarefa, que mal me assanha,
somente a mim mesmo compete.
.............................................
Depois salto — malabarista —
no mar de ter perdido a pista:
vou descendo, vou mergulhando,
vou até o fundo duvidando.
[O esquecimento necessário, 2020]
POR DELICADEZA (I)
"... par délicatesse
j’ai perdu ma vie".
(Rimbaud)
Ouvi: por delicadeza,
pelo fusco da beleza,
é que perdi minha vida.
Por uma estranha bondade,
somada à incapacidade
de não ir na contramão,
é que a perdi, entre os hunos,
entre os pássaros noturnos,
entre os terraços e os muros.
Foi por pura obstinação
de obedecer ao condão
(de onde vinha esse bruxedo?)
de uma insóbria feiticeira,
que perdi a vida inteira —
que me arranhei contra as quinas.
(De onde vinha esse feitiço
e o laço do compromisso
que ao erro assim me prendia?)
Foi só por delicadeza,
por ouvir com gentileza,
sem réplica e objurgação,
uma voz que eu não sabia,
que de urgência me nutria,
que à exorbitância me instava,
entre as pedras, entre as horas,
entre as setas e as demoras,
que perdi — distraído — a vida.
[O esquecimento necessário, 2020]
AS CEGONHAS ENTREGADORAS
As cegonhas entregadoras
vão entregar as surpresas
nas casas dos amantes.
Trazem de longe o espanto
e conduzem em seu bico o Esperado:
são como pombos-correios,
mas às suas mensagens
falta sempre o endereço da volta.
As cegonhas entregadoras
ocupam grandes espaços na tarde
e permanecem imóveis sob o sol,
como se calculassem a somatória das horas
ou o tempo que falta.
Pousadas sobre telhados e distâncias,
pensam nos longes de onde vêm
e de onde trazem as mensagens
que vão levar aos amantes.
[Inédito, excluído da versão impressa de Bichos imaginários]
SE DEDUTIVA
"Se dedutiva e líquida, a Vida é plena".
(Hilda Hilst)
Se dedutiva e líquida — se fora
do seu agro circuito e do seu jogo,
do círculo que traça, entre aço e fogo,
em torno ao nosso ardor, que não implora;
se expurgada de tudo o que descora
nossa infantil coragem — cujo afogo
se lança, indiferente a aviso e rogo,
por cima da lembrança, a cada agora;
se imersa num pasmado esquecimento
ou no álcool da distância, insonte e ileso,
que migra em sonho para onde o erro acena;
se deduzida de seu próprio peso
e leve dos caminhos que o momento
multiplica e confunde — a vida é plena.
[Inédito]
À BEIRA DAS HORAS
Navios para a tua voz —
é o que devias pedir
ao chegares a esse porto,
onde o movimento e o trabalho das gentes
ainda não começaram na manhã de outubro.
Velas para os teus pensamentos —
é o que devias pedir aos deuses silenciosos
na manhã de outubro sem rotas,
com a sua brisa e o seu mar
que os marinheiros e os sonhos logo singrarão.
Quilhas para a tua voz
e mastros para os teus pensamentos
carregados de tempo e premonições —
é o que devias pedir aos deuses marinhos,
de pé sobre uma plataforma à beira de todos os oceanos.
É o que devias pedir ao chegares ao porto
ainda deserto na manhã silenciosa
e intocada pelo movimento das gentes
em outubro, à beira da espera, à beira das horas,
que logo perderão os teus pensamentos na distância.
[Inédito]
PEDIDO
Toma à noite — ao perder-se, despossuído,
por labirintos que já não recorda —
minha mão fatigada de sentido,
tangendo em mim uma inefável corda.
Chama-me desde um longe silencioso
e alto, que aceno ou grito não alcança,
para um falar solícito e atencioso,
com voz que sobre o abismo se balança.
Quando dele me acerco humanamente —
eu, que venho de um ermo diferente —,
curvo do meu cansaço extraordinário,
traça um qualquer hieróglifo no ar cego
e me pede palavras de sossego
para o seu, para o meu vocabulário.
[Inédito]
PÁVIDO E ATENTO
Caminhos do meu desejo
(fogo no dorso das horas) —
percorro-os, cego, a despeito
da chuva que à tarde se arma,
da nuvem que ao longe avisto,
do granizo que já vem
assolando a plantação.
Caminhos do meu desejo.
(Vou sozinho para a noite.)
Percorro-os até o final,
sem respeito à tempestade,
e entanto cheio de medo,
e entanto pávido e atento
aos avisos do trovão.
[Inédito]
ATÉ O LIMITE DO OLVIDO
Dizem-me: "Isto é o que importa.
Isto é o mais importante:
é o que nos cumpre saber."
E eu apenas durmo.
Dizem-me: "Cabe avançar, é imperioso.
Cumpre dar o salto por cima da borda
e realizar a mais bela pirueta
na curva da vertigem."
Mas eu apenas durmo.
Dizem-me assim: "É preciso trazer
para fora os penates
e expô-los à luz do sol em dezembro.
É preciso tratá-los como se fossem troféus,
como se fossem os tesouros de um rei
ou grandes prendas
de que devemos nos orgulhar."
E eu apenas durmo.
Dizem-me, sobretudo: "É preciso.
Não importa, é urgente, é necessário,
pois se impõe como uma aflição
a que se deve dar resposta.
E toda aflição (é o que dizem) impulsiona,
mesmo quando não se têm asas,
mesmo quando se morre de sede à beira de um poço."
E eu apenas durmo.
Durmo longamente,
durmo excessivamente
até o limite do olvido.
[Inédito]
março, 2021
Renato Suttana nasceu em 1966 na cidade de Barbacena e se criou em Barroso (Brasil). Foi professor da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), em Guarapuava/PR, e trabalha atualmente como professor adjunto na Faculdade de Comunicação, Artes e Letras e no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFGD, em Dourados/MS, onde reside. Como escritor, publicou livros de poesia e ensaios, entre os quais Bichos (2005), Outros bichos (2011), Bichos imaginários (2013), Rapinário (2015), Quando me abriram portas (2016), Indigestos e purgativos (2016), Lição de economia (2018), Opinionautas (2012, 2019) e Música de pianola (2018), Fora de alcance (2019) e O esquecimento necessário (2020), e tem traduções de Leopardi, Petrarca, H. P. Lovecraft e outros autores publicadas em livros e em seu site na internet. Seu livro Dura lição (inédito) recebeu em 2020 o Prêmio Leia MS, da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, com patrocínio da Lei Aldir Blanc, devendo ser publicado em breve. Tem poemas incluídos em coletâneas e revistas literárias do Brasil e de Portugal. Mantém na internet o site O Arquivo de Renato Suttana.
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