©nathan copley
 

 

 

 
 

 

 

 

NINGUÉM DISFARÇA O AZULEJO QUEBRADO



Alex Cabeça de Gato

bebeu pingos de chuva

nas calçadas do Rio de Janeiro.


Perdeu o cobertor,

mudou de endereço.


Olha para o céu

de papelão em punho.


A água ainda corre

e afunda

o piso que baixou.







O CORAÇÃO NÃO PODE CEGAR



É só um desenho

esquecido na gaveta

da escrivaninha, tem poeira,

restos de lápis de cor,

um contrato de locação

e um livro de Octávio Paz

cochilando sobre ele.


É só um desenho;

os limites foram sacrificados

pela inflação,

balança comercial,

dólar

(a tesoura fez só o pelo sinal).


Não carrega a placa 

do Profeta Gentileza.


É só um desenho:


não é um colírio,

a Fortaleza de San Carlos de La Cabaña,

o Memorial da Balaiada,

tão pouco a Praia dos Carneiros,

em Pernambuco.


É só um desenho.

(só isso).







MARIA DA PENHA OU ISABELLE ADJANIR



Quando eu disser não,

é não.


Não acelere o carro,

não mande flores,

não desenhe coração

nas paredes.


Não é não.

Não insista, não provoque Sísifo,

com subidas intermináveis.


O amor não quer aeróbica.

Deita no chão

e se esfrega.


Quando eu disser não

é não.


O motel secou,

as unhas têm freios,

a carroça atravessa o boi.


Se insistir 

acabou o sereno, é verão.


levo uma faca,

na cintura.







ROLIÚDE



Sentava-se na esquina,

de costas pra rua.


A mesma camisa,

a mesma calça,

os mesmos sapatos.


Era um homem

invisível.


Catava feijão.


Nunca ouviu falar

em mais-valia.


Sonhou com um barranco,

na Serra Pelada.


Curou-se da doença.


Não do feijão.







MONUMENTO DA CINELÂNDIA



Jaime Oliveira é artista plástico,

faz colagens com discos,

que encontra nas ruas do Rio de Janeiro.


Oferece 

o Cartola tomando café

e cantando para mim.


Eu puxo a cadeira,

eles sentam ao meu lado.


Fazia vinte anos que ninguém

conversava com o Jaime.


Uma lágrima

(como polpa de maracujá)

escorreu na gola da camisa.


Nos abraçamos

como se entregássemos o morto,

na porta do cemitério.







AS MANHÃS NÃO TÊM OFERTAS, NEM PROMOÇÃO



os filhos olham para a escada

há uma lesão na luz,

de todos eles.


o mais velho desce primeiro

e pergunta:

apago as velas

ou quebro o oratório do quarto?


os outros ajoelharam;

amarraram as camisas,

seguram o terço da mãe.







CAFÉ PRETO



as mulheres juntavam

cuidados e saudades,

nas fotos antigas.


dois meninos brincavam

no meio fio, pintado de cal;

escoltados pelos olhos

das formigas.


os vingadores desceram

do carro atirando nos

inimigos, que estavam

na rua.


os meninos tiveram as camisas

atravessadas pelas balas.


a ambição escorrega

nas lágrimas, de uma das mães.


a outra ficou no chão

olhando para o sangue

(na asa da xícara).








MISTÉRIOS



a Travessa do Tamarineiro

me invade

como o sol invade

o broto, antes da flor.


como invade a explosão

antes do cheiro do caju;

a nódoa aberta

na fotografia da sala.


a Travessa do Tamarineiro

exala o cheiro forte

da vida.


eu sou o círculo

no lado avesso,

do abismo.







ENTENDA-ME OUTRORA



entre o almoço

e o café da tarde

perco a esperança

e duas unhas,

mas piso firme

nas pedras.


devagar, passo a mão

nos móveis da sala.


o intolerável também é poeira.







DIA DE ENSAIO



Odylo Costa Filho,

Rampa do Comércio, nº 200.


Suspendeu o azul

estendido nas manhãs

da Praia Grande.


Cresceu em minha direção

como crescem as favelas

na região do Itaqui-Bacanga:

sem água, sem remédio.


Cresceu com medo

das pedras.


Esqueceu-se da fome

e do verão.







HOLOCAUSTO DO LÍRIO



eu nasci do buriti,

debulhando nas tuas palavras

a virada do vento.


eu cresci nas águas,

e nas sementes verbais

alimento os peixes.


queimei a lavoura

no resguardo das tuas mãos,

percorrendo incertezas

no cavalo de São Jorge.


não sei mais chorar

(não permito mais o holocausto).


sou um mongol

esperando o sol de Monet.







NÃO HAVIA AUSÊNCIA EM MEU PAI



naquela tarde, não havia falta

nas palavras de meu pai.


mas, era estranho ouvir

aquela voz compressa,


as sobrancelhas,

a obsessão do arco-íris

a Travessa do Tamarineiro


e meus olhos nos olhos de Lacan.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Paulo Rodrigues (Caxias, 1978), é graduado em Letras e Filosofia. Especialista em Língua Portuguesa, professor de literatura, poeta, jornalista. É autor de vários livros, dentre eles, O abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de ninguém (Editora Penalux, 2018). Ganhou o prêmio Álvares de Azevedo da UBE/RJ em 2019, com o livro Uma interpretação para São Gregório. Venceu o prêmio Literatura e Fechadura de São Paulo em 2020, com o livro Cinelândia. É membro da Academia Poética Brasileira.


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