©jerzy górecki

 
 
 
 
 
 
 

EXTERMÍNIO



despeno

o céu,

arrancando

as andorinhas.







ENGASGO



um nó

no passado


uma cruz

no vício


o arbítrio

é o beco


sem saída.







DE QUE VALE UM CÉU SEM ASAS?



meus irmãos da Guiné

de frases subnutridas, nos olham

como um baobá iluminado pela paz.


habitado por uma única palavra.

eu me faço infinitas perguntas.


onde está António Trabulo?

por que foi morar num mito Shaka Zulu?

onde esconderam a liberdade?


a liberdade mora na laje

de todas as favelas

e toda tarde ela empina um arco-íris.







A IMENSIDÃO DO ALCANCE



tratei do jardim,

onde morava

um girassol

que tocava Bach

por diversão.


minhas mãos repetiam

a primavera

a florada

os cachos.


vibrei nas asas

de Ícaro,

conquistei os astros.


eu sou o chão

acaricio os astros;

toco suas partes mais íntimas

para congelar minhas mãos

na imensidão da palavra.







DOSE



na praça Duque de Caxias

embriago

o sonho

nos olhos nômades

do meu ressentimento.


saio pisando

a cinza dos cigarros

sem interesse

no desespero do óbito.


encontro outros bêbados.

seguro na mão

do homem

que teima

em caminhar.


com as mãos ainda casadas

esmagamos uma aranha.


agora,

choramos juntos,


mas não morrerei de lucidez.







PELO OLHO MÁGICO



a filha era muito amada.


as luzes ficavam acesas,

esperando por ela.


os gritos acordaram o pai,

que já era viúvo há

cinco anos.


ele colocou o olho,

na cena.


o marginal tomou o lugar do cão.


a noite não suporta

convenções,

nem lirismo.







BOPE



corto o pelo dos pés

no batente;

a porta de dentro

parece fechada.


uma lagartixa cai

do muro.


tento juntá-la.

ela me encara.


o rabo do bicho 

sai correndo atrás do corpo.


desejei

aquela resistência.







ANTÁRTIDA



eram cinco moças

tão bem cuidadas;

exalavam luz

e bordavam nuvens.


eram um objeto visível,

disponível para surpresas.


não enganavam o desprezo!


todas foram abusadas:

duas denunciaram.

duas castigam o céu

e uma não toca no assunto.


é verdade, o Saara não é

o maior deserto

do mundo.







MAPAS NA CARNE



os territórios do meu deserto

são antigos.


neles, nenhum romano

foi torturado.


o espanto acompanha

a paisagem que secou.


os bárbaros fazem longa viagem

nos meus olhos, sem fronteiras,

nem porto.


sou afetado pelos raios

e por uma cartografia

indecifrável.


os mapas transbordam flores,

mas ainda me torturam.







DESAPARECIDO



os velhos continuam

arrastando as sandálias

no quarto.


às quatro da manhã,

o cheiro do café

reacende a infância.


meu bisavô está lá,

toca fogo no chiqueiro

dos porcos.


todos estão lá!


a ausência é só minha

e só em mim

está colado um cartaz.







CABO DAS TORMENTAS



olho nos olhos de minha irmã

e vejo os navios perdidos

no mar que é só nosso,


que herdamos de meu pai

como um vínculo invisível

das águas.


ela não chora,

apesar da tempestade.


é uma paisagem perdida,

um coral, um alga

uma garrafa vazia.


olho nos olhos de minha irmã

e desconfio do sorriso

de Bartolomeu Dias.







PERDIDO



teus cabelos

estão espalhados

pela casa.


entre as laranjas,

na fruteira,

encontro teus cabelos.


no chão do quarto

me enfrentam.


afirmam que eu sou solúvel

e serei chorume

sem desespero,

nem amor.


é certo que vou desaparecer;

não farei mais juramentos.


o universo é insolúvel,

preciso de cartas náuticas.







O TOMBO



há muito tempo

eu não ousava ser criança.


saio na área

ao lado da casa

lá estão os brinquedos

esperando

o gás da vida.


um patinete 

enche meus pulmões

de coragem.

suspendo as rugas

do tirano.


consigo sorrir novamente.


um pregador de roupas

me derruba.

 



dezembro, 2021



Paulo Rodrigues (Caxias, 1978), é graduado em Letras e Filosofia. Especialista em Língua Portuguesa, professor de literatura, poeta, jornalista. É autor de vários livros, dentre eles, O abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de ninguém (Editora Penalux, 2018). Ganhou o prêmio Álvares de Azevedo da UBE/RJ em 2019, com o livro Uma interpretação para São Gregório. Venceu o prêmio Literatura e Fechadura de São Paulo em 2020, com o livro Cinelândia. É membro da Academia Poética Brasileira.


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