©jon rendell

 
 
 
 
 
 
 

INFLUENCER



I.


segue-me narciso

com teu sorriso polido

teu espírito plástico

tua alma de acrílico

e teu corpo perfeito

a vida postiça

exige uma disciplina

que só um coração transplantado

e este ar rarefeito



II.



enfeitiça meu tato

e atiça meu clique

a morte é isso

que aos poucos me enguiça

bem lá no fundo do vale

o silício me avisa

estejamos atentos

ao tempo das sombras

grafenos intocáveis

do por vir







DAS MARCAS DA LINHA DO TEMPO



se o trecho é bom 

mas nem tanto o desfecho


se a palavra é vintage

mas a rede não reage


se o silêncio é comovente

mas o verso não vende


se o post não é glamoroso

tanto quanto o nosso gozo


se é bom o trocadilho

mas não se vence o desafio


deleta meu filho


o que a vida quer da gente

é imagem







CINZAS DE BELCHIOR NO MURAL DE TIAGO IORC



viver é melhor que postar

eu sei que a rede social é uma coisa boa

mas também sei que um abraço real

é melhor do que o like de qualquer pessoa







POEMA ATRIBUÍDO A FERNANDO PESSOA



o poema é uma verdade

que se quer sentir despida

traz consigo a vontade

de fingir a dor sofrida


mas que retrato é essa realidade

que o poeta faz da vida?

o verso que inventa a saudade

dói o adeus da despedida







BLACK MIRROR



cérebros congelados

alimentados com

inteligência artificial


nossas vidas serão pra sempre

como nas projeções dos últimos

hologramas de Deus







WORKFLOW



a terra é redonda

a tela é plana

a menina explana

o post lacra


o hater se cala

o meme vira rima

a mãe se anima

a política irrita

 meu pai na sala


a fome grita

a rede ignora

o pão que não se compartilha


da janela de impulsionamento de conteúdo

o coach oferece a solução

mindset da felicidade

mais perdão pro coração


cronometrar as tarefas nas horas é necessário pra diluir a solidão

ritalina na medida certa pra ferida aberta do meu déficit de atenção


o processo melhora

o fluxo segue

a sede estanca

a mente obedece


resultado de esforço

nunca de sorte


pra alma quântica

questão de física

programação neurolinguística

é dever de casa

e lição resolvida


a mão desliza

o olho celular avisa

o corpo apaga

e já tem jeito pra morte


é preciso recarregar urgente

a bateria da vida







ÀS 22:38 DO DIA 3 DE JULHO DE 2019 NA AVENIDA PAULISTA COM A CONSOLAÇÃO EU SENTEI E CHOREI



depois de percorrer os seus dois mil e setecentos metros a pé desde a rua do paraíso

não pelo frio de 13 graus que fazia arder os meus olhos

e que já seria suficiente pra maltratar a minha carcaça nordestina frágil

(a frieza dói mais por dentro da cabeça quando a alma resseca em circuitos cerebrais enferrujados)


mas porque vi gente jogada no chão da vida

e a minha inércia nada foi capaz de fazer aos cobertores alheios

porque eles estavam cobertos demais

e deitados em colchões de concreto e asfalto


chorei porque vi lixo sendo tratado

papel plástico metal vidro resíduo orgânico gente não

(o lixo meu Deus antes fosse homem)


chorei pela solidariedade perdida que me consumia mais forte no rosto das crianças

entre um sinal e outro fechado

o choro incapaz de me ressuscitar em lágrimas

um gosto de esperança salgado maranhão


chorei pelo o que me impedia de aprofundar o olhar dos que estavam deitados e invisíveis e cobertos ao tempo em que via os meninos e meninas dos jardins

comemorando nos bistrôs espalhados pelas calçadas a mesma noite bela e festiva e

agasalhada que demorava pra terminar


chorei porque não entendia como a desgraça e a alegria poderiam conviver na harmonia da indiferença

(a gente nunca para e pensa de verdade no que uma lágrima é capaz de fazer)


nem sempre existe rima porque não existe solução

(ultimamente não é sempre que choro)


às vinte e duas horas e trinta e oito minutos

do dia três de julho

de dois mil e dezenove

havia uma avenida

meus pés

as lágrimas

do paraíso à consolação

um gosto salgado maranhão

os cobertores

o lixo tratado

a harmonia da indiferença

minha carcaça nordestina frágil

gente invisível

os meninos e meninas

a paulista

circuitos cerebrais enferrujados

um pedaço do frio

iceberg

da cidade

que se perde

de vista







POEMA-CORRENTE



que seja prisão

mas siga em frente

poesia grito

ancestral latente

viral ressoando na mente

fake compartilhado

poema de amor rasgado

deserto que ecoa dentro da gente

certeza de vento que quer correr o universo

soneto clássico reverso

canção tecno delirante

poema-meme controverso

haicai stories do instante

novo dadaísmo Google

galgando versos na virtual estante

frase direta de efeito inverso

limerick atribuído ao poeta de guesa errante

outdoor vivo pulsante 

como as árvores dos jardins da baía de cingapura

se ramificando dispersas em fotossíntese radiante

poesia não se poda

não tem cura

está na moda

e é pra sempre

como um autêntico corte de versace

com a textura do sol que renasce

se fotografa se filtra e nos aquece

no scroll infinito das telas deslizantes

na loucura diária de querer ir adiante

falando de amor morte e saudade

poesia-corrente

deslize

repasse

por favor

repasse







CORRENTES EM MURAIS



I.



há de ser vida

que se reserve ternura

pra hora da despedida



II.



há de ser brisa

que o vento revigore

nosso amor que agoniza



III.



há de ser ponte

que muros não se demorem

de el passo ao horizonte



IV.



há de ser belo

nem sempre tem no mundo

tudo tudo quanto quero



V.



há de ser livre

que o verso desarme

a mentira que se vive



VI.



há de ser leve

que o silêncio abrevie

essa idade que é breve



VII.



há de ser mudo

como o sangue derramado

na revolução de veludo



VIII.



há de ser sujo

que o poema não seja

mero subterfúgio



IX.



há de ser fome

pra que eu saiba que a carne ávida

o espírito consome



X.



há de ser sonho

olhos de esperança

deste livro tristonho



XI.



há de ser rápido

o sexo líquido dissolve

o que é mágico



XII.



há de ser morte

sobras da minha infância

jogadas à sorte



XIII.



há de ser súbita

que se conceda ao cadáver

o benefício da dúvida



XIV.



há de ser luto

verbo substantivo

que resiste ao tempo bruto



XV.



há de ter flores

plastificadas e pálidas

sobre o fim dos nossos amores



XVI.



há de vir lágrimas

que saudade só não basta

ao solo das américas



XVII.



há de ser tempestade

reviver o meu réquiem

pelos becos da cidade



XVIII.



há de ser turva

a dor que Deus chora

por meio da chuva



XIX.



há de ser treva

abismo inevitável

dessa vida que se leva



XX.



há de ser trova

sentimento que persiste

amor a toda prova



XXI.



há de ser calma

que não suspeitem de mim

da morte da alma



XXII.



há de ser nada

que o verbo reencarne no fim

palavra compartilhada







VERSOS ANCESTRAIS



não é um livro

é uma vida que se desfaz

em cada página rasgada

é a viagem perdida dos que costumam falar sozinhos

com as paredes na madrugada

ruminando sentimentos do mundo


não é mais um capítulo

de folhas envelhecidas amareladas

cansadas de modernismos antigos

impressos

datilografados

manuscritos

mimeografados

hieróglifos

digitalizados

atribuídos

compartilhados

no espelho touch screen nuvem

quem sabe dos sonhos de alguém


não é palavra nem é saudade

vocábulo vintage reinventado

essa voz que se quer abismo iminente

infinitamente precária e travada no peito

pra expressar o vazio que se sente


é um olhar sem filtros nostalgia

qualquer gesto incerto que se aprecia

longa explicação que não se entende


é a poesia

esse deserto dentro da gente







POEMA ATRIBUÍDO A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE



sonho com um futuro

em que as pessoas se reconheçam

meus irmãos se reconheçam

e que a gente volte a se olhar nos olhos


habito em um lugar

que passa em muitos países

se não me veem, eu vejo

eu tenho incontáveis amigos


eu procuro uma canção

que meu filho possa cantar

pra acalmar a minha mente inquieta


reservo meu sorriso mais verdadeiro

como quem sabe o medo de viver


de um jeito inesperado

nossos caminhos se desencontram


minha vida, nossas vidas se perderam em algum instante

trago comigo antigas palavras

pra que se leia hoje nas telas


eu procuro uma canção

que acorde em mim a criança

e que faça adormecer os homens







POEMA CONCRETO SOBRE O AMOR (versão 2.0)



autocomplete do Google em 12/06/2019


amores possíveis

amores canibais

amores roubados

amores à distância

amores líquidos

amores imperfeitos

amores improváveis

amores rasos

amores da minha vida

 



setembro, 2021



Samuel Marinho é maranhense de São Luís/MA. Publicou os livros Pequenos Poemas Sobre Grandes Amores (Edição do Autor, 2002), Poemas In Outdoors (Penalux, 2018) e Poemas de Última Geração (Penalux, 2019). Foi finalista em 2020 do Prêmio Jabuti de Literatura na categoria poesia.


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