INFLUENCER
I.
segue-me narciso
com teu sorriso polido
teu espírito plástico
tua alma de acrílico
e teu corpo perfeito
a vida postiça
exige uma disciplina
que só um coração transplantado
e este ar rarefeito
II.
enfeitiça meu tato
e atiça meu clique
a morte é isso
que aos poucos me enguiça
bem lá no fundo do vale
o silício me avisa
estejamos atentos
ao tempo das sombras
grafenos intocáveis
do por vir
DAS MARCAS DA LINHA DO TEMPO
se o trecho é bom
mas nem tanto o desfecho
se a palavra é vintage
mas a rede não reage
se o silêncio é comovente
mas o verso não vende
se o post não é glamoroso
tanto quanto o nosso gozo
se é bom o trocadilho
mas não se vence o desafio
deleta meu filho
o que a vida quer da gente
é imagem
CINZAS DE BELCHIOR NO MURAL DE TIAGO IORC
viver é melhor que postar
eu sei que a rede social é uma coisa boa
mas também sei que um abraço real
é melhor do que o like de qualquer pessoa
POEMA ATRIBUÍDO A FERNANDO PESSOA
o poema é uma verdade
que se quer sentir despida
traz consigo a vontade
de fingir a dor sofrida
mas que retrato é essa realidade
que o poeta faz da vida?
o verso que inventa a saudade
dói o adeus da despedida
BLACK MIRROR
cérebros congelados
alimentados com
inteligência artificial
nossas vidas serão pra sempre
como nas projeções dos últimos
hologramas de Deus
WORKFLOW
a terra é redonda
a tela é plana
a menina explana
o post lacra
o hater se cala
o meme vira rima
a mãe se anima
a política irrita
meu pai na sala
a fome grita
a rede ignora
o pão que não se compartilha
da janela de impulsionamento de conteúdo
o coach oferece a solução
mindset da felicidade
mais perdão pro coração
cronometrar as tarefas nas horas é necessário pra diluir a solidão
ritalina na medida certa pra ferida aberta do meu déficit de atenção
o processo melhora
o fluxo segue
a sede estanca
a mente obedece
resultado de esforço
nunca de sorte
pra alma quântica
questão de física
programação neurolinguística
é dever de casa
e lição resolvida
a mão desliza
o olho celular avisa
o corpo apaga
e já tem jeito pra morte
é preciso recarregar urgente
a bateria da vida
ÀS 22:38 DO DIA 3 DE JULHO DE 2019 NA AVENIDA PAULISTA COM A CONSOLAÇÃO EU SENTEI E CHOREI
depois de percorrer os seus dois mil e setecentos metros a pé desde a rua do paraíso
não pelo frio de 13 graus que fazia arder os meus olhos
e que já seria suficiente pra maltratar a minha carcaça nordestina frágil
(a frieza dói mais por dentro da cabeça quando a alma resseca em circuitos cerebrais enferrujados)
mas porque vi gente jogada no chão da vida
e a minha inércia nada foi capaz de fazer aos cobertores alheios
porque eles estavam cobertos demais
e deitados em colchões de concreto e asfalto
chorei porque vi lixo sendo tratado
papel plástico metal vidro resíduo orgânico gente não
(o lixo meu Deus antes fosse homem)
chorei pela solidariedade perdida que me consumia mais forte no rosto das crianças
entre um sinal e outro fechado
o choro incapaz de me ressuscitar em lágrimas
um gosto de esperança salgado maranhão
chorei pelo o que me impedia de aprofundar o olhar dos que estavam deitados e invisíveis e cobertos ao tempo em que via os meninos e meninas dos jardins
comemorando nos bistrôs espalhados pelas calçadas a mesma noite bela e festiva e
agasalhada que demorava pra terminar
chorei porque não entendia como a desgraça e a alegria poderiam conviver na harmonia da indiferença
(a gente nunca para e pensa de verdade no que uma lágrima é capaz de fazer)
nem sempre existe rima porque não existe solução
(ultimamente não é sempre que choro)
às vinte e duas horas e trinta e oito minutos
do dia três de julho
de dois mil e dezenove
havia uma avenida
meus pés
as lágrimas
do paraíso à consolação
um gosto salgado maranhão
os cobertores
o lixo tratado
a harmonia da indiferença
minha carcaça nordestina frágil
gente invisível
os meninos e meninas
a paulista
circuitos cerebrais enferrujados
um pedaço do frio
iceberg
da cidade
que se perde
de vista
POEMA-CORRENTE
que seja prisão
mas siga em frente
poesia grito
ancestral latente
viral ressoando na mente
fake compartilhado
poema de amor rasgado
deserto que ecoa dentro da gente
certeza de vento que quer correr o universo
soneto clássico reverso
canção tecno delirante
poema-meme controverso
haicai stories do instante
novo dadaísmo Google
galgando versos na virtual estante
frase direta de efeito inverso
limerick atribuído ao poeta de guesa errante
outdoor vivo pulsante
como as árvores dos jardins da baía de cingapura
se ramificando dispersas em fotossíntese radiante
poesia não se poda
não tem cura
está na moda
e é pra sempre
como um autêntico corte de versace
com a textura do sol que renasce
se fotografa se filtra e nos aquece
no scroll infinito das telas deslizantes
na loucura diária de querer ir adiante
falando de amor morte e saudade
poesia-corrente
deslize
repasse
por favor
repasse
CORRENTES EM MURAIS
I.
há de ser vida
que se reserve ternura
pra hora da despedida
II.
há de ser brisa
que o vento revigore
nosso amor que agoniza
III.
há de ser ponte
que muros não se demorem
de el passo ao horizonte
IV.
há de ser belo
nem sempre tem no mundo
tudo tudo quanto quero
V.
há de ser livre
que o verso desarme
a mentira que se vive
VI.
há de ser leve
que o silêncio abrevie
essa idade que é breve
VII.
há de ser mudo
como o sangue derramado
na revolução de veludo
VIII.
há de ser sujo
que o poema não seja
mero subterfúgio
IX.
há de ser fome
pra que eu saiba que a carne ávida
o espírito consome
X.
há de ser sonho
olhos de esperança
deste livro tristonho
XI.
há de ser rápido
o sexo líquido dissolve
o que é mágico
XII.
há de ser morte
sobras da minha infância
jogadas à sorte
XIII.
há de ser súbita
que se conceda ao cadáver
o benefício da dúvida
XIV.
há de ser luto
verbo substantivo
que resiste ao tempo bruto
XV.
há de ter flores
plastificadas e pálidas
sobre o fim dos nossos amores
XVI.
há de vir lágrimas
que saudade só não basta
ao solo das américas
XVII.
há de ser tempestade
reviver o meu réquiem
pelos becos da cidade
XVIII.
há de ser turva
a dor que Deus chora
por meio da chuva
XIX.
há de ser treva
abismo inevitável
dessa vida que se leva
XX.
há de ser trova
sentimento que persiste
amor a toda prova
XXI.
há de ser calma
que não suspeitem de mim
da morte da alma
XXII.
há de ser nada
que o verbo reencarne no fim
palavra compartilhada
VERSOS ANCESTRAIS
não é um livro
é uma vida que se desfaz
em cada página rasgada
é a viagem perdida dos que costumam falar sozinhos
com as paredes na madrugada
ruminando sentimentos do mundo
não é mais um capítulo
de folhas envelhecidas amareladas
cansadas de modernismos antigos
impressos
datilografados
manuscritos
mimeografados
hieróglifos
digitalizados
atribuídos
compartilhados
no espelho touch screen nuvem
quem sabe dos sonhos de alguém
não é palavra nem é saudade
vocábulo vintage reinventado
essa voz que se quer abismo iminente
infinitamente precária e travada no peito
pra expressar o vazio que se sente
é um olhar sem filtros nostalgia
qualquer gesto incerto que se aprecia
longa explicação que não se entende
é a poesia
esse deserto dentro da gente
POEMA ATRIBUÍDO A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
sonho com um futuro
em que as pessoas se reconheçam
meus irmãos se reconheçam
e que a gente volte a se olhar nos olhos
habito em um lugar
que passa em muitos países
se não me veem, eu vejo
eu tenho incontáveis amigos
eu procuro uma canção
que meu filho possa cantar
pra acalmar a minha mente inquieta
reservo meu sorriso mais verdadeiro
como quem sabe o medo de viver
de um jeito inesperado
nossos caminhos se desencontram
minha vida, nossas vidas se perderam em algum instante
trago comigo antigas palavras
pra que se leia hoje nas telas
eu procuro uma canção
que acorde em mim a criança
e que faça adormecer os homens
POEMA CONCRETO SOBRE O AMOR (versão 2.0)
autocomplete do Google em 12/06/2019
amores possíveis
amores canibais
amores roubados
amores à distância
amores líquidos
amores imperfeitos
amores improváveis
amores rasos
amores da minha vida
setembro, 2021
Samuel Marinho é maranhense de São Luís/MA. Publicou os livros Pequenos Poemas Sobre Grandes Amores (Edição do Autor, 2002), Poemas In Outdoors (Penalux, 2018) e Poemas de Última Geração (Penalux, 2019). Foi finalista em 2020 do Prêmio Jabuti de Literatura na categoria poesia.
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