©kotaro marks

 
 
 
 
 
 
 

I



Antônia, por sua culpa

Daqui a vinte anos

vão me chamar de poetisa

excessivo

arrebatamento lírico 

desmesura no maneirismo

a-historicidade 

Antônia

estes são tempos de fascismo 

e eu a pensar que poderíamos

com muita graça

dançar um tango nas nuvens 

Antônia 

estes são tempos de guerra 

e eu a pensar que para ler um poema

todas as manhãs preciso

de um ruído estocástico

preciso de um escudo

anti-hiperacusia

Antônia você estudando os gregos 

Antônia

você dizendo que se importa

com Brecht

Marx e o conceito de trabalho

o nosso tempo, Antônia, há de chegar

por enquanto

você ainda faz muito barulho 







II 



para Antônia

traduzi um poema da Condessa Evdokiia Rostopchina

do russo para a nossa língua

ficou assim:


guardo um talismã a sete chaves

e dentro dele o coração de toda terra

se apossa (ele é todo nó e promessa)

penhor vindouro

extraviado êxtase

ele não é enigmático bracelete 

ou anel cravejado de palavras

nem mesmo uma carta 

de confissões e preces

tampouco um álbum cheio de nomes

não é pena arrancada à branca pluma

nem mesmo dobrável retrato

do meu talismã tu não sabes

o inaudito e musical segredo

por ele darei a vida e o sangue

meu talismã, Antônia, é o olho da memória

ou teu amor âmbar continuamente

violando a várzea







III



para afunilar a manhã Antônia

me pede que eu seja um rio


Antônia cada vez mais vultosa 

de Sol 


sacode as ilhargas 

me pede palavras estranhas


se impressiona 


com a similaridade sonora

entre nomes e numes 


Antônia me dá toda manhã

sintomas novos

nitentes flancos


às vezes


uma lua terrosa







IV 



pela manhã os deuses soerguem

a faustosa ladradura


sobre um mosaico

de deslizes, de dálias


indecisa no amar-te

como nuvem ou bicho


mas para a minha morte falta pouco

(é o que parece)







V



Antônia, o tempo da beleza já era.

Khliébnikov faria um poema

da gota de leite, da crosta de pão.

Já eu a aventar-me 

a fome do mundo 

(estas coisas, Antônia, são muito perigosas

tu me tornaste amiga

de trânsfugas, desertores

aérea, cúmulo-nimbo

onde muito drama se assenta

os meus poemas já não dizem

de faina e fúria

dizem: intervalos melífluos, odes

anacreônticas todos

os anéis de teus dedos

amavio aoristo)



março, 2021



Alice Vieira mora em Belo Horizonte desde 2009. É graduada em Letras pela UFMG e mestra em Estudos Literários pela mesma universidade. Possui poemas publicados nas revistas Em Tese (2018), Gueto (2018) e Ruído Manifesto (2019). Participou, em 2019, da coletânea Poemas Reunidos I, da revista portuguesa A Bacana. Publicou, em outubro de 2018, seu primeiro livro de poesia, intitulado {Open Source}, pela Editora Penalux. Em 2020, lançou novo livro de poemas, intitulado Taxidermias, pela Editora Urutau.


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