há ainda este tempo
há ainda este tempo
que nada deixa amadurecer
há ainda esta tarde depois dos dias
e esta esfinge escavando esquecidos enigmas
como se os refizesse reviver
há ainda este tempo
de se viver somente assim
a repetir os gestos
em que costuram em si
o fim do início e o início do fim
esta mesma face esquerda
doada em dízimos às dezenas
há ainda estes dias
as cinzas as palavras
pintada em verbo angústia nenhuma palavra incendeia
decantada a mesma iluminada metáfora escura
seguindo em eterna fuga do discurso que se perca
expressão que inexata deseja toda exatidão
envolta entre sim e não se refaz a dúbia certeza
exatidão toda inexata que deseja expressão
qual verbo abandonado por remota prosa incontida
qual chama irrestrita escrevendo seu ardor devastado
cinza palavra ao vento calado palavra descrita
como que semeando a si espalhando do vento ao gosto
as cinzas em torno de todas as obras a destruir
então
em perene forma permanece em idade e fortuna
tudo que no tempo não muda nem tempos nem vontades
nem mentira nem verdade penetra a forma profunda
somente em mim depositou-se irrelevante mudança
talvez desnecessária dança que o cair das folhas trouxe
talvez inseto da noite que de seu brilho descansa
quem sabe silêncio de outrora agora outra hora propaga
antes de ilusão inata à matéria apurar sua volta
em perene forma precisa mas dispersa inexata
somente em mim depositou-se irrelevante reverso
de não mais crer nos versos dessa inútil lira agridoce
as tardes as manhãs
as tardes quentes e iguais a todas as outras as manhãs
desprovidas de ânsias vãs seguem lentamente aos currais
como se guardassem mais que o passado dos dias de amanhã
e perene a si tece a tarde disposta sobre nós
como noite de homem só como tempo que não se mede
agudo vento que segue sem rumo sem prumo sem voz
iguais a todas as outras se tramam em nós as marcas
em caminho aberto a faca como vento leva suas folhas
iguais a todas as horas na erma eternidade do nada
e perene a si tece a tarde disposta sobre nós
as tardes quentes e iguais a todas as outras as manhãs
[Do livro As cinzas as palavras, 2009]
e plantam flores onde fenecem os frutos da terra
e plantam flores onde fenecem os frutos da terra
para mães que não podem resistir às dores do parto
as vítimas de tanta desgraça atiram-se às trevas
pelos mesmos gestos de efusão materna acumulados
sem que nenhum júbilo encontrasse aquele que caminha
onde plantavam no sagrado barro os ossos do pecado
desfeito abrigo e caminho da palavra medida
que as mãos de uma mãe recolhe para o útero vazio
e com a língua recobre e cura a própria ferida
e planta flores onde fenecem os frutos de Eva
e grita as dores do parto de um filho sem umbigo
a bailarina da Ásia
a bailarina da
Ásia ondula
suavemente seus
gestos lascivos
envolta em sua sombra
sua chama dança
desde a ponta
dos dedos volta
sua dança devassa
a bailarina da
Ásia oscula
suavemente a ponta
dos dedos
desenvolta seu véu
sua chana ao léu
onde dança
aponta a ponta
de minha lança
envolta em sua umbra
suavemente se depura
a cona a anca
o lábio a vulva
avulta a dança de puta
a bailarina da
Ásia perdura
suavemente ondula
os seios
desenvolta em sua dança
sua cona se alcança
desde o lábio
lambendo a anca
ofertada em altar de santa
teu corpo ao dormir
teu corpo ao dormir meu corpo busca
em teu colo se debruça
minha face que teu cheiro aguça
minha face tua face
minha mão que tua mão segura
enquanto dorme
e segura minha mão a mão tua
teu corpo ao dormir me procura
e sobre minha perna tua perna perdura
e sobre tua perna a minha imita a mesma postura
e dura infinito neste sono a minha carne dura
encosta na minha a face tua
encosta em mim por todo sono
o seio o lábio a vulva
e deixa assim junto o sonho
de sempre habitá-la nua
e quando a mim à noite assim se debruça
mais que teu corpo meu sonho busca
a coluna de São Simeão
I. scriptio continua
oquerepousaemsuacoluna
emmoldeimpurosefaz
noquebuscadisforme
tuaimagemesemelhança
II. lectio
fazer de uma ideia objeto
fazer da fé uma coluna
estar perto do céu
naquele tempo não mais
havia gigantes sobre a terra
estar no alto de uma coluna
São Simeão o estilita
elevar a fé à loucura
desejo de repousar entre as estrelas
esquecer a carne
que essa se corta nas espadas
que essa se devora
em rituais de um novo mundo
onde se canta a bravura
dos inimigos
que essa se penetra
quando o instinto devora
mesmo sem pagar o preço
de nova vida
elevar-se ao céu
exige seu sacrifício
no campos de Senaar
os homens erguem a coluna
onde a força divina divide os homens
vencidos pela linguagem
que se confundam
por todas as outras regiões
Santo Simeão em sua coluna
não tem com quem se confundir
um mundo moldado a sangue
outro se refaz em silêncio
III. emendatio
corrigir um ato
refazer a coluna
reanotar cada indicação do caminho
onde não há horizonte
restam nuvens por solução
reelaborar o caminho
para continuar o mesmo
toda obra de um homem
se refaz no tempo
como tudo que é sólido
se desmancha no sangue
um homem busca corrigir seu tempo
que sozinho se esvai
IV. enarratio
palavra sobre palavra
uma linguagem se constrói
cada palavra guarda sua metáfora
uma a uma se encaixam
como as vértebras da coluna
interpreta linguagens
de homens e anjos
V. judicium
avaliar cada coluna
com seu eremita no alto
e todos que lá não puderam estar
toda linguagem
serenidade de quem colhe tempestade
tranquilo
avaliar cada linguagem
com sua metáfora
na margem do silêncio
toda metáfora
eternidade que sozinha
se finda
[Do livro Yone de Safo, 2007]
na glória de tua força perdida na ânsia do herói
na glória de tua força perdida na ânsia do herói
derrotado se constrói a divindade que te louva
levado à mesma forca que sendo erguida se destrói
perdida a força do herói o que em nossa lira se canta
guarda no andor de santa caminho em terra de homens sós
onde em ferro se constrói todo canto que ao fogo espanta
há música e há dança onde uma musa leve se mova
meretriz que se louva quando um herói sem esperança
entrega a própria lança na rude batalha em que morra
entre as marcas e a força do profano e do sagrado
destes heróis armados que uma brisa distante encanta
nesta terra teu canto te assiste entre sina e silêncio
nesta terra teu canto te assiste entre sina e silêncio
em lira de fio breve que tenso verso em ti resiste
desdobrando-se o dia persiste em dízimo lento
nesta terra teu canto te roendo em partes e inteiro
como o abrigo que encontrou num peito saudoso e intenso
estando Ruth posta em tormento em meio ao trigo alheio
nesta terra teu canto desfeito desfaz tua dor
nos pés inchando todo ardor pelo caminho estreito
oráculo devorando sem receio teu genitor
neste canto prepara entre silêncio e sina
estigma do enigma que cego te redime
o que a musa antiga canta
ou as armas desse pobre pescador
as armas desse pobre pescador
mais que uma rede, uma canoa e coragem
são essas marcas que algum peixe deixou
na rede e na alma desse rio sem margem
um jeito de conviver com a dor
e o olhar de quem vê mais que uma miragem
a manha e força de um homem que teve
o equilíbrio certo ao puxar a rede
aquele rio não era
sequer um cão
nem um feixe
que prende um peixe
à sobrevivência do homem
e também as memórias esquecidas
que de vida e de morte se refazem
por essas águas passam consumidas
por esses cambos de peixe que trazem
como marca mais forte que as feridas
do tempo ou os calos que essas redes fazem
joga sua rede mesmo se cansasse
como cada artista apreende sua arte
aquele rio nem era a morte
nem a vida
nem o desengano
de uma rede que volta vazia
colher o fluir leve desse caminho
o passar calmo como mão tranquila
ou qualquer outra forma de carinho
como outro trajeto jamais faria
pois todo corpo sabe seu destino
como qualquer rio seu curso caminha
como um mapa que num ventre é tatuado
como armas e barões assinalados
aquele rio não era
o rio de minha aldeia
aquele rio não é
sequer um rio
nem um caminho
onde habitam vivos e mortos
nem o espaço onde jazem
nem a força que os move
e vós, mulheres desse rio faminto
que devora enquanto é devorado
e nenhum canto espalha pelo rio
se nenhum canto se espalha a nado
se nenhum canto é canto sozinho
então cesse esse canto solitário
cesse tudo que na água se encanta
cesse tudo o que a musa antiga canta
aquele rio só nada
ao ouvidor geral de 1732
canção de amor cantar eu vim
mas agora, de nomes e de usança
novos e vários são os habitantes
Cardoso Balegão, sargento-mor
este que em companhia de escravos fugidos
este que semeou sangue nos sertões do Piauí
estes Pedro Barbosa Leal e Manuel de Sousa Pinheiro
canção de amor cantar eu vim
mas o ouvidor geral repete
que as mortes não eram naturais
como não era natural que
Antônio Pedro Nunes, advogado
secretário interino do governo
seja assassinado para os olhos de Oeiras
bárbaro e público
no esquecido dia 13 9 1803
e que no ano seguinte
a um homem assassinado
tenha as mãos cortadas
e uma delas pendurada
no badalo do sino da igreja
em Piracuruca
se dos registros de 1694
sendo 16 pessoas mortas
apenas uma por enfermidade
mas agora, de nomes e de usança
novos e vários são os habitantes
se no ano da graça de 1845
o júri julgou 58 crimes
1 de moeda falsa
1 contra a liberdade individual
4 de ameaças
3 de furto
1 de estupro
2 de porte ilegal de arma
23 de lesões corporais
23 de homicídios
canção de amor cantar eu vim, Musa
mas não mais que a lira tenho destemperada
e a voz enrouquecida
[Do livro Entrega a própria lança na rude batalha em que morra, 2005]
março, 2021
Adriano Lobão Aragão nasceu em Teresina, Piauí, em 1977. Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Piauí. Professor de língua portuguesa do Instituto Federal do Piauí. Trabalhou como assessor pedagógico da Editora Saraiva. Em 1998, por meio do Concurso Novos Autores, recebeu o Prêmio Cidade de Teresina pelo livro Uns poemas, publicado no ano seguinte pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves. Em 2005 publicou Entrega a própria lança na rude batalha em que morra, pela Fundac. Seu livro Yone de Safo foi agraciado em 2006 com prêmio Torquato Neto instituído pela Fundação Cultural do Piauí e publicado pela Amálgama no ano seguinte. Publicou ainda as cinzas as palavras (amálgama, 2009) e, em 2012, lançou seu primeiro romance, Os intrépidos andarilhos e outras margens (Nova Aliança). Em 2017, publicou Os tempos e a forma (Desenredos), poesia reunida, contendo os livros de poemas anteriores e o inédito Entre áridos anseios dispersos. Em 2019, publicou o livro de poemas e fotografias Destinerário (Desenredos) e a segunda edição de Os tempos e a forma (Desenredos/FCMC), incluindo o inédito Ainda havia carambolos nos muros. Atualmente, edita a revista eletrônica Desenredos.
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