©andreas riedelmeier

 
 
 
 
 
 
 

há ainda este tempo



há ainda este tempo

que nada deixa amadurecer


há ainda esta tarde depois dos dias


e esta esfinge escavando esquecidos enigmas

como se os refizesse reviver 


há ainda este tempo

de se viver somente assim

a repetir os gestos

em que costuram em si 

o fim do início e o início do fim


esta mesma face esquerda

doada em dízimos às dezenas


há ainda estes dias







as cinzas as palavras



pintada em verbo angústia nenhuma palavra incendeia

decantada a mesma iluminada metáfora escura

seguindo em eterna fuga do discurso que se perca


expressão que inexata deseja toda exatidão

envolta entre sim e não se refaz a dúbia certeza

exatidão toda inexata que deseja expressão


qual verbo abandonado por remota prosa incontida

qual chama irrestrita escrevendo seu ardor devastado

cinza palavra ao vento calado palavra descrita


como que semeando a si espalhando do vento ao gosto

as cinzas em torno de todas as obras a destruir   







então



em perene forma permanece em idade e fortuna

tudo que no tempo não muda nem tempos nem vontades 

nem mentira nem verdade penetra a forma profunda


somente em mim depositou-se irrelevante mudança

talvez desnecessária dança que o cair das folhas trouxe

talvez inseto da noite que de seu brilho descansa


quem sabe silêncio de outrora agora outra hora propaga

antes de ilusão inata à matéria apurar sua volta

em perene forma precisa mas dispersa inexata


somente em mim depositou-se irrelevante reverso

de não mais crer nos versos dessa inútil lira agridoce







as tardes as manhãs



as tardes quentes e iguais a todas as outras as manhãs

desprovidas de ânsias vãs seguem lentamente aos currais

como se guardassem mais que o passado dos dias de amanhã


e perene a si tece a tarde disposta sobre nós

como noite de homem só como tempo que não se mede 

agudo vento que segue sem rumo sem prumo sem voz


iguais a todas as outras se tramam em nós as marcas

em caminho aberto a faca como vento leva suas folhas

iguais a todas as horas na erma eternidade do nada


e perene a si tece a tarde disposta sobre nós

as tardes quentes e iguais a todas as outras as manhãs




[Do livro As cinzas as palavras, 2009]




e plantam flores onde fenecem os frutos da terra



e plantam flores onde fenecem os frutos da terra

para mães que não podem resistir às dores do parto

as vítimas de tanta desgraça atiram-se às trevas


pelos mesmos gestos de efusão materna acumulados

sem que nenhum júbilo encontrasse aquele que caminha

onde plantavam no sagrado barro os ossos do pecado


desfeito abrigo e caminho da palavra medida

que as mãos de uma mãe recolhe para o útero vazio

e com a língua recobre e cura a própria ferida


e planta flores onde fenecem os frutos de Eva

e grita as dores do parto de um filho sem umbigo







a bailarina da Ásia



a bailarina da

Ásia ondula

suavemente seus

gestos lascivos


envolta em sua sombra

sua chama dança

desde a ponta

dos dedos volta

sua dança devassa


a bailarina da

Ásia oscula

suavemente a ponta

dos dedos


desenvolta seu véu

sua chana ao léu

onde dança

aponta a ponta

de minha lança


envolta em sua umbra

suavemente se depura

a cona a anca

o lábio a vulva

avulta a dança de puta


a bailarina da

Ásia perdura

suavemente ondula

os seios


desenvolta em sua dança

sua cona se alcança

desde o lábio

lambendo a anca

ofertada em altar de santa







teu corpo ao dormir



teu corpo ao dormir meu corpo busca

em teu colo se debruça

minha face que teu cheiro aguça


minha face tua face

minha mão que tua mão segura

enquanto dorme

e segura minha mão a mão tua


teu corpo ao dormir me procura

e sobre minha perna tua perna perdura

e sobre tua perna a minha imita a mesma postura

e dura infinito neste sono a minha carne dura


encosta na minha a face tua

encosta em mim por todo sono

o seio o lábio a vulva 

e deixa assim junto o sonho

de sempre habitá-la nua


e quando a mim à noite assim se debruça

mais que teu corpo meu sonho busca  







a coluna de São Simeão



I. scriptio continua



oquerepousaemsuacoluna

emmoldeimpurosefaz

noquebuscadisforme

tuaimagemesemelhança




II. lectio



fazer de uma ideia objeto

fazer da fé uma coluna


estar perto do céu


naquele tempo não mais

havia gigantes sobre a terra


estar no alto de uma coluna

São Simeão o estilita


elevar a fé à loucura


desejo de repousar entre as estrelas

esquecer a carne

que essa se corta nas espadas


que essa se devora

em rituais de um novo mundo

onde se canta a bravura

dos inimigos


que essa se penetra

quando o instinto devora

mesmo sem pagar o preço

de nova vida


elevar-se ao céu

exige seu sacrifício


no campos de Senaar

os homens erguem a coluna

onde a força divina divide os homens


vencidos pela linguagem

que se confundam

por todas as outras regiões


Santo Simeão em sua coluna

não tem com quem se confundir


um mundo moldado a sangue

outro se refaz em silêncio




III. emendatio



corrigir um ato

refazer a coluna

reanotar cada indicação do caminho


onde não há horizonte

restam nuvens por solução


reelaborar o caminho

para continuar o mesmo


toda obra de um homem

se refaz no tempo


como tudo que é sólido

se desmancha no sangue


um homem busca corrigir seu tempo

que sozinho se esvai




IV. enarratio



palavra sobre palavra

uma linguagem se constrói


cada palavra guarda sua metáfora

uma a uma se encaixam

como as vértebras da coluna


interpreta linguagens

de homens e anjos




V. judicium



avaliar cada coluna

com seu eremita no alto

e todos que lá não puderam estar


toda linguagem

serenidade de quem colhe tempestade

tranquilo


avaliar cada linguagem

com sua metáfora

na margem do silêncio


toda metáfora

eternidade que sozinha

se finda




[Do livro Yone de Safo, 2007]




na glória de tua força perdida na ânsia do herói



na glória de tua força perdida na ânsia do herói

derrotado se constrói a divindade que te louva

levado à mesma forca que sendo erguida se destrói


perdida a força do herói o que em nossa lira se canta

guarda no andor de santa caminho em terra de homens sós

onde em ferro se constrói todo canto que ao fogo espanta


há música e há dança onde uma musa leve se mova

meretriz que se louva quando um herói sem esperança

entrega a própria lança na rude batalha em que morra


entre as marcas e a força do profano e do sagrado

destes heróis armados que uma brisa distante encanta







nesta terra teu canto te assiste entre sina e silêncio



nesta terra teu canto te assiste entre sina e silêncio

em lira de fio breve que tenso verso em ti resiste

desdobrando-se o dia persiste em dízimo lento


nesta terra teu canto te roendo em partes e inteiro

como o abrigo que encontrou num peito saudoso e intenso

estando Ruth posta em tormento em meio ao trigo alheio


nesta terra teu canto desfeito desfaz tua dor

nos pés inchando todo ardor pelo caminho estreito

oráculo devorando sem receio teu genitor


neste canto prepara entre silêncio e sina

estigma do enigma que cego te redime







o que a musa antiga canta

ou as armas desse pobre pescador



as armas desse pobre pescador

mais que uma rede, uma canoa e coragem

são essas marcas que algum peixe deixou

na rede e na alma desse rio sem margem

um jeito de conviver com a dor

e o olhar de quem vê mais que uma miragem

a manha e força de um homem que teve

o equilíbrio certo ao puxar a rede


aquele rio não era

sequer um cão

nem um feixe

que prende um peixe

à sobrevivência do homem


e também as memórias esquecidas

que de vida e de morte se refazem

por essas águas passam consumidas

por esses cambos de peixe que trazem

como marca mais forte que as feridas

do tempo ou os calos que essas redes fazem

joga sua rede mesmo se cansasse

como cada artista apreende sua arte


aquele rio nem era a morte

nem a vida

nem o desengano

de uma rede que volta vazia


colher o fluir leve desse caminho

o passar calmo como mão tranquila

ou qualquer outra forma de carinho

como outro trajeto jamais faria

pois todo corpo sabe seu destino

como qualquer rio seu curso caminha

como um mapa que num ventre é tatuado

como armas e barões assinalados


aquele rio não era 

o rio de minha aldeia

aquele rio não é 

sequer um rio

nem um caminho 

onde habitam vivos e mortos

nem o espaço onde jazem

nem a força que os move


e vós, mulheres desse rio faminto

que devora enquanto é devorado

e nenhum canto espalha pelo rio

se nenhum canto se espalha a nado

se nenhum canto é canto sozinho

então cesse esse canto solitário

cesse tudo que na água se encanta

cesse tudo o que a musa antiga canta


aquele rio só nada







ao ouvidor geral de 1732



canção de amor cantar eu vim

mas agora, de nomes e de usança

novos e vários são os habitantes

Cardoso Balegão, sargento-mor

este que em companhia de escravos fugidos

este que semeou sangue nos sertões do Piauí

estes Pedro Barbosa Leal e Manuel de Sousa Pinheiro


canção de amor cantar eu vim

mas o ouvidor geral repete

que as mortes não eram naturais


como não era natural que

Antônio Pedro Nunes, advogado

secretário interino do governo

seja assassinado para os olhos de Oeiras

bárbaro e público

no esquecido dia 13 9 1803


e que no ano seguinte 

a um homem assassinado

tenha as mãos cortadas

e uma delas pendurada

no badalo do sino da igreja

em Piracuruca


se dos registros de 1694

sendo 16 pessoas mortas

apenas uma por enfermidade


mas agora, de nomes e de usança

novos e vários são os habitantes

se no ano da graça de 1845

o júri julgou 58 crimes

1 de moeda falsa

1 contra a liberdade individual

4 de ameaças

3 de furto

1 de estupro

2 de porte ilegal de arma

23 de lesões corporais

23 de homicídios


canção de amor cantar eu vim, Musa

mas não mais que a lira tenho destemperada

e a voz enrouquecida




[Do livro Entrega a própria lança na rude batalha em que morra, 2005]



março, 2021



Adriano Lobão Aragão nasceu em Teresina, Piauí, em 1977. Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Piauí. Professor de língua portuguesa do Instituto Federal do Piauí. Trabalhou como assessor pedagógico da Editora Saraiva. Em 1998, por meio do Concurso Novos Autores, recebeu o Prêmio Cidade de Teresina pelo livro Uns poemas, publicado no ano seguinte pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves. Em 2005 publicou Entrega a própria lança na rude batalha em que morra, pela Fundac. Seu livro Yone de Safo foi agraciado em 2006 com prêmio Torquato Neto instituído pela Fundação Cultural do Piauí e publicado pela Amálgama no ano seguinte. Publicou ainda as cinzas as palavras (amálgama, 2009) e, em 2012, lançou seu primeiro romance, Os intrépidos andarilhos e outras margens (Nova Aliança). Em 2017, publicou Os tempos e a forma (Desenredos), poesia reunida, contendo os livros de poemas anteriores e o inédito Entre áridos anseios dispersos. Em 2019, publicou o livro de poemas e fotografias Destinerário (Desenredos) e a segunda edição de Os tempos e a forma (Desenredos/FCMC), incluindo o inédito Ainda havia carambolos nos muros. Atualmente, edita a revista eletrônica Desenredos.


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