meus sapatos inúteis de doente que não mais andará.
Depois rezei. Uma oração feita por mim,
entrecortada pelo arfar do peito e pela tosse rouca.
Pedi uma morte mansa suave
o coração parando, sem aflição, sem dor.
Lá fora os sinos da Missa do Galo
acompanhando minha morte lenta.
E aqui dentro ninguém... o silêncio... o descanso... o mistério...
Mas Papai Noel passou sem nada me dar.
Achou decerto enormes meus sapatos...
Um estranho Natal em 1928, por Joaquim Branco
O Natal — considerado por uns um momento de tristeza e por outros de comemoração, ou às vezes as duas coisas — é sempre um tema difícil, ainda que tentador para um poeta.
O poema de Ascânio Lopes (1907-1929), acima, deve ter sido escrito quando ele estava internado num sanatório em Belo Horizonte, provavelmente no final do ano de 1928, pois morreria no dia 10 de janeiro do ano seguinte.
Vejamos o que ele nos apresenta.
O título — "Natal do tuberculoso" — coloca o leitor literalmente de frente para uma temática crua, de enfrentamento direto, mas ao mesmo tempo parece nos enganar, pois o texto escorre para uma leveza puerilizada pelo tema, contribuindo para isso a escolha de palavras simples e a opção por um discurso com um tom marcadamente inocente.
Contudo, de repente, toda essa atmosfera é tragada por um realismo duro e de conformação, tendo como fundo os sinos da Missa do Galo que arrebatam para o texto uma sombra de inexorabilidade.
Será que podemos sentir, nessa aceitação da morte pelo poeta, um apelo final ao leitor? Algo filtrado nas entrelinhas e acentuado pelas reticências em gradação descendente pode nos dizer isso? Vejamos: "E aqui dentro ninguém... o silêncio..., o descanso... o mistério".
Surpreendentemente, porém, o último verso insere um novo elemento no universo do poema, pois termina com uma metonímia ironicamente seca, trazida pela imagem agigantada dos "sapatos".
Se aí vai um instante de tristeza neste poema autobiográfico de um grande poeta cataguasense, pelo menos aproveite o leitor este momento poético que tem a assinatura indelével de Ascânio Lopes.
Marcar os dias. Uma desimportância que ela excluiu há muito tempo. Datas são gatilhos cruéis. Geram expectativas sem controle. Impossibilidades batizadas com nomes deformados: desejo, objetivo, sonho, fantasia. Um anel de noivado, um presente de aniversário, uma viagem para Londres, uma madrugada de sexo, um passeio no mar. Uma noite de Natal.
Há 10 minutos ela olha fixamente para a bola vermelha espelhada pendurada num galho com glitter. Ver a própria imagem distorcida na superfície arredondada é um salto até a infância. Quando os natais eram de laços, bolas e guirlandas de todas as cores. E havia uma janela retangular por onde lhe disseram que Papai Noel entrava nas casas que não tinham chaminé. E uma árvore de bengalinhas e luzes coloridas que piscavam ritmadas.
Ela não sabe. Se o cheiro de pernil assado vem da cozinha ou da memória. Se a pilha de presentes sob a árvore que pisca é real ou pertence à criança que ela foi. Se as rabanadas gordas sobre a mesa enfeitada são delírio ou podem ser devoradas. Se ainda é preciso vigiar as portas. Para saber por qual delas ele entrará. Bêbado, cambaleando, gritando palavrões e ironias. Tentando agarrá-la à força para fazê-la se sentar no seu colo e para obrigá-la a dizer: A bênção, papai. Esperando ela se recusar, refugando como um cavalo assustado, para então tirar da calça o cinto de couro e bater nela até ela mijar na roupa nova. Ansioso para ela gritar pela mãe e fazê-la vir correndo da cozinha para ser a próxima a apanhar.
Na bola vermelha, outro rosto se junta ao dela. A pequena Maria Clara quer saber se Papai Noel entra pela janela ou pela porta, enquanto se equilibra nas pontas dos pés tentando alcançar um doce de bengalinha listrado pendurado logo acima da bola-espelho.
Pela porta, não, filha. Pela porta entram coisas ruins, ela quer dizer. Mas não diz. Maria Clara puxa a sua mão e a arrasta para longe das memórias. Maria Clara. Essa luz de quatro anos que a afasta das portas que precisam ser fechadas para sempre.