O SOBREVIVENTE
Deus se tornou uma palavra inútil.
O amor se tornou uma palavra inútil.
As minhas mãos tecem os trabalhos e os dias.
Já não sei chorar.
O meu coração é de gelo.
Não quero saber mais das mulheres ou das crianças.
Estou sozinho no escuro
onde a minha solidão é maior
e posso vazar os meus olhos em segredo.
A velhice pesa como chumbo.
Já não aguento o peso do mundo.
O homem é um animal com a morte nos olhos.
Os ratos já roeram o edifício,
o suicídio não é mais a questão capital da filosofia.
Vivo um tempo em que é inútil morrer.
Sobrevivo a mim mesmo como um bagaço no chão.
Este é o tempo dos cegos.
A vida é o caos.
A vida não tem mais nenhuma justificação.
O FOTÓGRAFO E O CONDENADO
Na estação de Times Square,
em Nova York,
um homem discute com um mendigo
na plataforma.
De repente o mendigo
empurra
o homem
para os trilhos.
O fotógrafo freelancer R. Umar Abbasi vê
o homem caído
e começa
a clicar.
O trem arfa e arfa
e vem.
A vítima tenta sair
inutilmente.
(A função do fotógrafo não é
salvar
vidas
mas registrar a notícia.
O tabloide New York Post publica
a foto
com a manchete: "CONDENADO",
"Este homem está prestes a morrer".)
A SENTENÇA
Os mortos não perdoam
nós não significamos nada
INCÊNDIO NA FAVELA DE PARAISÓPOLIS
Incêndio no Paraíso.
A árvore do bem e do mal foi carbonizada.
Adão e Eva não têm nem folhas de figueira
para cobrir as partes íntimas.
O anjo ergue a espada de fogo
e expulsa os pobres do lar.
Adão e Eva não tinham o que comer,
não tinham o que vestir,
agora não têm mais onde morar.
As casas, os barracos, as árvores do Paraíso
contorcem-se de dor.
Até as serpentes e os ratos fogem
do Paraíso em chamas.
(Nada mais a dizer.
A fumaça consumiu as palavras.
Amanhã recomeçará a mesma história.)
A LIBÉLULA
A libélula morta à beira d'água
e o brilho do nada
O TITANIC COMO METÁFORA
O Titanic era a metáfora do fim do século dezenove
e início do século vinte.
Era a metáfora do progresso tecnológico
e era a metáfora do adeus à inocência (viria logo a
Primeira Guerra Mundial, viria a Segunda com todas
as suas mortes tão tecnológicas).
Era a metáfora da divisão de classes – os mais pobres
no porão, mais perto da morte.
Era a metáfora do privilégio ostensivo e da massa
descartável.
A vida não é uma metáfora,
a morte não é uma metáfora, diz o poeta.
Deixemos a metáfora para o Titanic, tão antimetafórico
e sem nenhuma metafísica no fundo do mar.
A PEDRA
A pedra já foi água
o mais íntimo do seu silêncio é líquido
O MASSACRE NA NORUEGA
Andres Behring Breivik pôs uma bomba
no Parlamento Norueguês
com o fim de matar o Primeiro Ministro,
mas matou outras oito pessoas, culpadas do crime de estar lá.
Andres Behring Breivik depois disfarçou-se de policial
para burlar a vigilância e entrar no acampamento
dos jovens do Partido Trabalhista, na ilha de Utoya,
e atirar metodicamente causando 69 vítimas.
Andres Behring Breivik diz que foi cruel,
mas necessário realizar essas ações: ele era
um Cavaleiro Templário
na guerra contra o marxismo e o islamismo.
Andres Behring Breivik diz que faria tudo de novo
em sua Guerra Santa.
Somente o sangue pode purificar o mundo,
numa guerra não pode haver contemplação.
A ENFERMEIRA
Agora posso me pentear,
disse a enfermeira após receber prótese nas mãos decepadas.
VERGONHA
Não tenho muito a dizer sobre os anos setenta
ninguém tem muito a dizer sobre os anos setenta
na verdade temos vergonha dos anos setenta
talvez seja isso
temos vergonha de ter sobrevivido aos anos setenta
Era preciso prosseguir com a vida
era preciso não denunciar os companheiros
era preciso calar a boca
era preciso fechar os olhos e os ouvidos
a ignorância era a melhor companheira
Temos vergonha de ter sobrevivido aos anos setenta
os companheiros caíam mortos ao lado
nós ignorávamos
nós ignorávamos
A PLACA
Todos os dias a mulher pendura uma placa
no pescoço: "Aluga-se
Árvore do Bem e do Mal"
A MOSCA E O PRESIDENTE
Eu vi o Presidente dormindo de boca aberta
Eu vi uma mosca sobrevoar a boca do Presidente
e vagarosamente desaparecer dentro dela.
O Presidente soltou um urro
como se o mundo fosse acabar.
Esbugalhou os olhos,
ficou de joelhos,
enfiou o dedo na garganta.
A mosca acabou com toda a empáfia do Presidente.
julho, 2020
José Carlos Mendes Brandão é autor de oito livros de poesia e um de crônicas. Ganhou vários prêmios literários, como V Bienal Nestlé de Literatura, 1991, por Presença da Morte; "José Ermírio de Moraes", 1984, por Exílio; "Jorge de Lima", da U.B.E.-Rio, 2011, por Livro dos bichos; Cidade de Belo Horizonte, por um romance inédito, 2000; Brasília de Literatura, por um livro de poesia inédito, 1991. Mantém o blogue Poesia & Crônica.
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