©lenka novotná

 
 
 
 
 
 
 

O SOBREVIVENTE



Deus se tornou uma palavra inútil.

O amor se tornou uma palavra inútil.

As minhas mãos tecem os trabalhos e os dias.

Já não sei chorar.

O meu coração é de gelo.


Não quero saber mais das mulheres ou das crianças.

Estou sozinho no escuro 

onde a minha solidão é maior

e posso vazar os meus olhos em segredo.


A velhice pesa como chumbo.

Já não aguento o peso do mundo.

O homem é um animal com a morte nos olhos. 

Os ratos já roeram o edifício,

o suicídio não é mais a questão capital da filosofia.


Vivo um tempo em que é inútil morrer.

Sobrevivo a mim mesmo como um bagaço no chão.

Este é o tempo dos cegos.

A vida é o caos.

A vida não tem mais nenhuma justificação.







O FOTÓGRAFO E O CONDENADO



Na estação de Times Square, 

em Nova York,

um homem discute com um mendigo 

na plataforma. 


De repente o mendigo 

empurra

o homem

para os trilhos.


O fotógrafo freelancer R. Umar Abbasi vê

o homem caído

e começa 

a clicar. 


O trem arfa e arfa

e vem.

A vítima tenta sair

inutilmente.


(A função do fotógrafo não é 

salvar

vidas

mas registrar a notícia.


O tabloide New York Post publica 

a foto

com a manchete: "CONDENADO",

"Este homem está prestes a morrer".)







A SENTENÇA



Os mortos não perdoam

nós não significamos nada







INCÊNDIO NA FAVELA DE PARAISÓPOLIS 



Incêndio no Paraíso.

A árvore do bem e do mal foi carbonizada.

Adão e Eva não têm nem folhas de figueira 

para cobrir as partes íntimas.


O anjo ergue a espada de fogo

e expulsa os pobres do lar.

Adão e Eva não tinham o que comer,

não tinham o que vestir,

agora não têm mais onde morar.


As casas, os barracos, as árvores do Paraíso

contorcem-se de dor.

Até as serpentes e os ratos fogem

do Paraíso em chamas.


(Nada mais a dizer.

A fumaça consumiu as palavras.

Amanhã recomeçará a mesma história.)







A LIBÉLULA



A libélula morta à beira d'água

e o brilho do nada







O TITANIC COMO METÁFORA



O Titanic era a metáfora do fim do século dezenove

e início do século vinte.


Era a metáfora do progresso tecnológico

e era a metáfora do adeus à inocência (viria logo a 

Primeira Guerra Mundial, viria a Segunda com todas

as suas mortes tão tecnológicas).


Era a metáfora da divisão de classes – os mais pobres

no porão, mais perto da morte. 

Era a metáfora do privilégio ostensivo e da massa

descartável.


A vida não é uma metáfora, 

a morte não é uma metáfora, diz o poeta.

Deixemos a metáfora para o Titanic, tão antimetafórico

e sem nenhuma metafísica no fundo do mar. 








A PEDRA



A pedra já foi água

o mais íntimo do seu silêncio é líquido







O MASSACRE NA NORUEGA



Andres Behring Breivik pôs uma bomba 

no Parlamento Norueguês

com o fim de matar o Primeiro Ministro, 

mas matou outras oito pessoas, culpadas do crime de estar lá.


Andres Behring Breivik depois disfarçou-se de policial 

para burlar a vigilância e entrar no acampamento 

dos jovens do Partido Trabalhista, na ilha de Utoya,

e atirar metodicamente causando 69 vítimas. 


Andres Behring Breivik diz que foi cruel, 

mas necessário realizar essas ações: ele era 

um Cavaleiro Templário

na guerra contra o marxismo e o islamismo.


Andres Behring Breivik diz que faria tudo de novo

em sua Guerra Santa.

Somente o sangue pode purificar o mundo,

numa guerra não pode haver contemplação.







A ENFERMEIRA



Agora posso me pentear, 

disse a enfermeira após receber prótese nas mãos decepadas.







VERGONHA



Não tenho muito a dizer sobre os anos setenta 

ninguém tem muito a dizer sobre os anos setenta

na verdade temos vergonha dos anos setenta

talvez seja isso

temos vergonha de ter sobrevivido aos anos setenta


Era preciso prosseguir com a vida 

era preciso não denunciar os companheiros

era preciso calar a boca

era preciso fechar os olhos e os ouvidos

a ignorância era a melhor companheira


Temos vergonha de ter sobrevivido aos anos setenta

os companheiros caíam mortos ao lado 

nós ignorávamos

nós ignorávamos 







A PLACA



Todos os dias a mulher pendura uma placa 

no pescoço: "Aluga-se 

Árvore do Bem e do Mal"







A MOSCA E O PRESIDENTE 



Eu vi o Presidente dormindo de boca aberta

Eu vi uma mosca sobrevoar a boca do Presidente

e vagarosamente desaparecer dentro dela.

O Presidente soltou um urro

como se o mundo fosse acabar.

Esbugalhou os olhos, 

ficou de joelhos,

enfiou o dedo na garganta.

A mosca acabou com toda a empáfia do Presidente. 



julho, 2020



José Carlos Mendes Brandão é autor de oito livros de poesia e um de crônicas. Ganhou vários prêmios literários, como V Bienal Nestlé de Literatura, 1991, por Presença da Morte; "José Ermírio de Moraes", 1984, por Exílio; "Jorge de Lima", da U.B.E.-Rio, 2011, por Livro dos bichos; Cidade de Belo Horizonte, por um romance inédito, 2000; Brasília de Literatura, por um livro de poesia inédito, 1991. Mantém o blogue Poesia & Crônica.


Mais José Brandão na Germina

> Poesia