Este país não é um cachimbo

 

 

Virou o dia do avesso e chupou até o pau.

Vestiu a noite física e saiu por aí. Ou por lá.

A poesia é uma loucura. O real é chato paca.

A pedra vira água. E se escoa pelos dedos.

A cidade assombra. Como um rinoceronte.

Fotografaram o buraco negro. Era vermelho.

Perdi a goiaba, a manga e a esperança.

E se o bicho da goiaba me comer ontem?

Chupei uma laranja e me engasguei. Orra meu.

Olha o sorriso do filhote de cruz-credo.

Estão mangando de mim, este é um país triste.

Enche a vida até espumar. Bebe a espuma e cospe.

Tinha um chifre na fronte e nenhuma poesia.

Atira e depois pergunta. Aliás, atira e dá risada.

As palavras caíram no abismo desesperadas.

A pátria tem a língua e os olhos cheios de lágrimas.

Quem descasca uma cebola tem que chorar.

Quem descasca um abacaxi também descasca um pepino?

A água não volta atrás, vira lama e corricho.

Aliás, corricho é um porco pequeno e não vê o céu.

O último a sair não apague a luz no fim do túnel.

 

 

 

 

 

 

O bigode de Stalin

 

 

O bigode de Stalin ao vento

mandou Mandelstam para o Gulag

o poeta escorregou na lama

morreu engasgado com a lama

 

A poesia é muito perigosa

os tiranos temem a poesia

e matam os poetas inocentes

a poesia matou Mandelstam

 

Poesia é poder, disse Mandelstam

os tiranos cortam a garganta

têm medo da poesia suave

como um coração dentro do peito

 

A profissão de poeta incomoda

é bem melhor ser um indigente

o infortúnio latindo e mordendo

como um pobre cachorro sarnento

 

Mandelstam mal podia respirar

sugando o ar mínimo pela boca

deitado sobre a ponte do Volga

enquanto o vento forte soprava

 

Agonizava em cada cilada

a polícia vem de madrugada

o que devemos temer agora?

o pior já passou, ele disse

 

Ossip e Nadejda nem tiveram

tempo de se despedir um do outro

Mandelstam mandado para a morte

Nadejda ficou com a sua dor

 

Era possível sentir o medo

era como se estivesse morto

Osia, meu namorado distante

a minha dor é maior que o mundo

 

O poeta morto, a poesia morta

senão a tirania não vive

a poesia é muito perigosa

por isso mataram o poeta

 

Ossip Mandelstam, descanse em paz

gozando do bigode de Stalin

as palavras do poeta não morrem

os vermes no bigode de Stalin

 

 

 

 

 

 

Lacan e a Gestapo

 

 

Todos os dias ela acordava assustada às cinco da manhã

mesmo horário em que a Gestapo batia às portas para levar os judeus

ao ouvir essa história Lacan levantou-se e tocou-lhe a bochecha

num gesto de carinho e consolo

 

um gesto na pele

geste à peau

que em francês conforme a entonação da voz

tem o mesmo som de Gestapo

 

um gesto que quarenta anos depois ela ainda está narrando

 

 

 

 

 

 

Tributo a Charlie Hebdo

 

 

Os cartunistas do Charlie Hebdo foram assassinados

porque o Inferno era um sonho impossível

ou porque o Paraíso tinha vagas de sobra?

Charb ri escarninho

e promete continuar a rir e a fazer rir mesmo depois de morto.

Wolinski ri espiando por uma fresta do Paraíso,

coça a careca e a barriga e diz Eu não disse?

Cabu completa Finalmente fiquei sem palavras

e sem carga nenhuma para carregar.

Tignous adverte Eu não tinha razão?

e completa Onde eu estiver sempre será um espaço

em branco.

É preciso rir de tudo, diz Charb,

a graça da vida é fazer graça.

Eu sempre fui uma piada ambulante, diz Wolinski,

que nem a morte vai matar.

Ridendo castigat mores é uma máxima velha como a História

e afinal é sempre melhor rir do que chorar

apesar da turma da vaca amarela.

 

 

 

 

 

 

 

Tributo a Ana Cristina Cesar

 

 

Eu morava em Santos quando comprei A teus pés

e no dia seguinte

como um choque

na contramão

a notícia fria contra o vento noroeste

Ana C. se matou

 

Nem tive tempo

de ler o livro

a morte atravessada na garganta

o navio ancorado no espaço nunca mais

 

Por que um poeta se mata, meu Deus?

e uma poeta

bela

linda como a manhã sobre o mar azul

uma poeta não

poderia morrer

e o navio joga sobre as ondas e as espumas

 

Tantos poemas que perdi

essa poética que desafina

essa poética contra

o ideal de um pequeno poema gravado em pedras tumulares

olhar o poema com um filete de sangue nas gengivas

Ana C. morta

a poeta bonita que é um desperdício

a mulher mais discreta do mundo

poeta

sem nenhum segredo

 

Tarde te amei tarde aprendi

por que conservar esse fiapo de noite velha?

a alma lavada não se lava outra vez

 

Escrever é uma maldade não escrever também

 

Ana C. sujou o linho da vida com um poema à sua espera

 

 

 

 

 

Toada para matar a morte

 

 

O cavalo queria ser um leão

para matar a morte.

O cão queria voar alto como a águia

para matar a morte.

O bezerro queria ser forte como o touro

para matar a morte.

A águia queria ser um cavalo, o leão queria

ser um cabrito, o touro queria ser uma andorinha

para matar a morte.

O cavalo queria decifrar o enigma da rosa,

para matar a morte.

A borboleta beijava os lábios da tarde

para matar a morte.

Os olhos enormes da libélula refletidos no lago

para matar a morte.

O baobá se ajoelha ao crepúsculo

para matar a morte.

Eu quero um martelo, um enxadão, um trator, um anzol

para matar a morte.

 

 

 

 

 

 

A bunda

 

 

Tem pudor demais no mundo.

Frescura demais.

Era preciso dizer que eu gosto da sua bunda.

Era preciso e digo, Eu gosto da sua bunda.

 

— Mas que é que tem a bunda? Por que os homens

gostam tanto de bunda?

— É bonita!

— Só "é bonita"? Diga lá: a bunda te excita?

— Claro. E é bonita.

 

Que é que a moral tem contra a bunda?

É uma palavra bonita.

Gerânio é uma palavra bonita. A flor, nem tanto.

A rosa é uma flor bonita. A palavra, meio sem graça.

Viola é bonita, mais do que violão. É feminina. As

curvas. Sentada sobre a bunda.

 

Meu Deus, que é que o mundo tem contra a bunda?

Meu bem, como a sua bunda é bonita!

 

 

 

 

 

 

Sol no umbigo

 

 

O gargalo da garça voa.

A mariposa ama a chama mais do que a vida.

O inferno não são os outros, mas o espelho.

Quem escapa dos lobos é devorado pelas ovelhas.

A humanidade não vale mais do que as minhas unhas,

que sobreviverão à minha humanidade.

Uma mulher deitada no chão do meu quarto

e o seu perfume de rosa e suor.

A vantagem do navio dentro da garrafa

é não partir nunca.

A vantagem do cego é não ver o fim do mundo.

O mundo acabará no fim do túnel.

O mundo não acabará com um suspiro,

mas com um peido.

As sombras das coisas não são as coisas,

mas assombram.

A aranha devora a violeta e o poeta.

O sol ilumina o abismo.

Sol no umbigo, sinal de perigo.

As pirâmides passam, como os pássaros.

A pedra não tem fim.

 

 

 

 

 

 

História familiar

 

 

A filha ama o pai e a mãe com raiva

a mãe não ama a filha porque lhe falta raiva

o pai ama a filha com muita raiva

a filha pare uma filha com raiva

a filha ama com raiva a sua filha

o pai ama a filha da sua filha com mais raiva

a mãe não ama a filha da sua filha

a mãe não sabe ter raiva

a filha da filha come a mãe com raiva

ela pensa que está amando e talvez esteja certa

o pai come a filha da filha com uma raiva especial

depois se deita para dormir sem mais raiva nenhuma

a mãe aprende a ter raiva e come o pai

depois se deita numa cova de terra vermelha

na cova estão deitados os mortos

os pais as mães as filhas e as filhas das filhas

os que foram comidos e os que ainda serão

 

 

 

 

 

 

Tributo a Evaldo Rosa dos Santos

 

 

Foram oitenta tiros de fuzil.

O metal caiu com estrépito.

A fumaça se elevou no ar da tarde.

O sangue borbulhando com a flor no alto.

Uma flor de sangue nas costas.

Os ovos da morte borbulhando no sangue.

Ouve a música da flauta que se quebra.

Ouve o touro da morte, como muge.

Ouve o tigre da morte, como ruge.

Ouve o rinoceronte da morte, que estúpido.

Ouve a jaula da morte, nenhuma lucidez.

De tudo ficou apenas um buraco negro.

Nenhuma pomba branca voa mais.

O músico é um pássaro com a garganta cortada e canta.

O seu canto corta a pele do dia como o diamante.

 

 

 

 

 

 

Tempo dos assassinos

 

 

Ninguém é inocente. Somos todos assassinos.

Um político de pedra gesticula em cada esquina,

os industriais confabulam com o abismo,

os generais erguem a espada contra a poesia.

A violência é surda. Ainda se ouvem os gritos castrados.

Ouçam como se esgoelam os vulcões,

os corações devorados aos pedaços na beira do rio.

Os espelhos estavam todos velados.

Sabíamos desde o princípio que a vida é impossível.

Quem contará a nossa história?

Mas onde estavam todos? Todos são culpados, sem remissão.

O mundo não tem solução.

O curso das coisas é limitado pelo sol do nada.

 

 

 

 

 

 

As verdades atrozes

 

 

Nunca é hora de matar ou morrer.

Nunca é hora de dizer certas verdades.

Todas as verdades são atrozes

e nenhum anjo ouvirá a sua verdade.

Pus as minhas asas para secar ao sol,

queimaram.

Do meu voo restou apenas um punhado de cinza

sob o céu de vidro.

A dor nos ombros me lembra de que estou vivo.

Carrego a dor do universo nos ombros.

Estou só à beira do buraco negro das estrelas.

O sol se levanta e se põe, o abismo é irremediável.

A papoula é louca, floresce contra a morte.

Não há mais tempo, nada a fazer antes de morrer

senão espantar-me.

O caos é a minha condição.

Estou tecendo a brancura do esquecimento.

Não sou um outro no espelho, mas ninguém.

Pisa as pétalas, pisa as rosas no caminho e esquece.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


José Carlos Mendes Brandão nasceu em Dois Córregos e mora em Bauru (SP). É autor de oito livros de poesia e um de crônicas. Ganhou vários prêmios literários, como V Bienal Nestlé de Literatura, 1991, por Presença da Morte; "José Ermírio de Moraes", do Pen Centre de São Paulo, para melhor livro do ano, 1984, por Exílio; "Jorge de Lima", da UBE-Rio, 2011, por Livro dos bichos; Cidade de Belo Horizonte, por um romance inédito, 2000; Brasília de Literatura, por um livro de poesia inédito, 1991. Mantém o blogue Poesia Crônica.