©myriam zilles

 
 
 
 
 
 
 

LEITO QUATRO



se vai mais um dia entre muitos que pensei viver melhor olhares como

se esperança fosse um entulho de lamentações acelera meus pulmões

ginsberg tece comentários entre a luva indesejada e o prato de comida

que chega como hospitalidade aquele antro de desespero e chagas

destila em meu caos inconformidades com o divino que insiste em me

reter sem qualquer motivo na verdade queria estar em um aeroplano

sobrevoando as praias de humberto de campos ou conversando com

uns amigos na porta do bar do Adalberto


às vezes yeats faz me lembrar da samsara que é um copo de leite gelado

após a bebedeira flanando pela avenida melo e povoas agarrado nas

arrepiadas ancas de uma morena observo o marasmo da calcinha

da mulher que ri ao lado naquele bar entre estrelas descontinuadas

todos os meus provérbios de existir me negam tropeço mais uma vez

na mesmice de acreditar em corações complacentes hainoã quando

me chama de pai caem meus hemisférios sobre a baía de são marcos

há felicidade entre o roer de unhas e a dor da cutícula


na rua do giz minha vertebral luz minha jerusalém estoica meu

gozo sobre o colo de prostitutas noites que como beatnik caminhava

desolado em busca de algo mais que pudesse estancar as interferências

prejudiciais dos versos inacessíveis anti-herói soprava a dualidade

dos anos oitenta/noventa com barba rala & jaqueta desbotada

transpirando revoluta paixão um ser barroco à procura dos

espelhos perdidos com a obscura missão de continuar em precipícios

acreditando que há um verão orgástico no caminho do poeta


a verdade da vida era para ser escrita em forma de poesia pouparia

do desgaste secular de acreditar em são tomás de aquino o amor

só vale a pena se não exigir tíquetes de estacionamento bandeira

da mastercard crediário nas lojas de departamento da magalhães

de almeida agora recluso entre gotas interestelares seringas peidos

fortuitos e azedos o deserto de barreirinhas é o arpoador das minhas

abstrações bundinhas tesas adornadas de branco tangenciam minha

libido meu cacete endurece entre uma e outra troca de antibióticos


o céu mais azul que já havia visto se instala em meu coração do olho

d’água à ponta do farol iemanjá me guia com suas ondas caudalosas

o espírito de meu avô parece dançar entre as pedras de arrebentação

da ponta da areia batuques inebriantes cadenciam aquela noite

enquanto os trinta e nove e meio graus me jogam de um lado para

outro iniciado em rotinas e fast-foods inconformismos parecem me

tragar para o boqueirão se pudesse acenderia velas para os ancestrais

bashô está comigo é o que me deixa calmo pelo menos dessa vez


reviro-me para tentar apaziguar o cansaço do trópico de capricórnio

que há em minhas costas as mulheres da antiga sunset rasgam meus

olhos pela madrugada naquele equinócio de desesperança onde líamos

camus pessoa gullar chopes ecoavam no saloon pronto a explodir a

nudez de uma amistosa moça nem todos se sentiam na primeira fila

do carnegie hall o cobertor florido aquece meus ossos embargados

por um dia quase todo de febre e delírios ao lado da cama minha

mulher ronca baixinho como um poema arisco de alice ruiz


rabolú encontrou as engrenagens simbióticas de jesus maomé

quetzacoaltl pelas ruas desfilou em seu fleetmaster conversível muito

embora a discoteca fosse o religare preterido chove sobre os telhados

do turu e não sinto nada estou vazio como um biscoito ensopado

de café frio aproveito para conferir intempéries não aguento mais

ficar imóvel sobre a esquálida cama apesar de muitos livros ao meu

redor nenhum tem a atmosfera lúdica de peshkov se eu fosse líquido

precipitaria sobre os túmulos carcomidos do cemitério do gavião


queria caminhar pela rua portugal destilar imoralidades com sotero

vital ou ouvir o guriatã cantar que a coroa está no maracanã meu

alento são alguns metros quadrados e a memória profícua e desolada

a contemplar a kalevala entre uvas tangerinas e sorrisos de minha

mãe a conversar há uma catarse de choros e ainda não é sexta-feira

nos corações das pessoas nem mesmo o extremismo fático dos grupos

muçulmanos a cortar gargantas pelo iêmen calará os preciosos traços

dos redatores da charlie hebdo


meus cabelos parecem a décima quinta de shostakovich a antissepsia é

tão complexa quanto as linhas de nazca mamãe me dá uma ajudazinha

e me enche de sândalo barato ouço no rádio que o país não é mais o

mesmo crise à vista salários minguados violência se instalando dentro

das casas a oligarquia baixando a guarda no maranhão o mundo é

uma sobra de falências múltiplas enquanto uma criança vietnamita

chora a perda de seu cão assado em um mercado público a standard

& poor's rebaixa a nota de investimentos no brasil







RELIGARE



o tempo todo guardou segredo

na noite de núpcias baixou a luz

pediu que eu viesse com calma


abriu o zíper virou-se de costas

beijei-lhe o pescoço as nádegas


a virei de frente desci a calcinha

suguei os seios a batata da perna


quando estava lá pediu que eu

parasse que seguiria ao closet


fechou a porta apagou as luzes

de repente surgiu todinha nua


maluquice da minha mulher

tatuar um buda em sua xoxota







MÍNIMO-MÁQUINA



uma pessoa que escreve poesia 

não é nenhum pouco diferente

de uma costureira de franzidos

de um instalador de antenas 


não difere em nada

de um ostreiro de um pirata

que rouba barcos fundeados

na baía de são marcos


não é nada distante 

de copeiros de fast-foods

de acionistas de fundos

de investimentos


pelo contrário 

um sujeito como os outros 

que desliza seus olhos 

pelas cidades de si mesmo


uma pessoa que escreve poesia

de maneira alguma é diferente

a não ser por levar humanidades

dentro do seu hábito de caminhar 







TERMOS E CONDIÇÕES



A velhice é a crítica da mocidade

- José de Ribamar Brito



sempre quis o futuro todos querem o futuro

mesmo com suas ameaças seus mísseis e guerras 

açoitado pela rotina não desnorteio o carinho 

por quem um dia foi o meu amor


nunca seremos ideais ou seja lá o que for

nem admitiremos que a morte nos espreita

pelos corredores e filas ou no orgasmo 

com sua manta pungente cheia de significados


vivo como se o respirar fosse sempre festa

não minto que já passei por momentos difíceis

me preservo ouço a chuva e preparo o espírito


ninguém nunca duvidará do futuro 

nem as tais tecnologias serão capazes

de automatizar o que de humano já fomos 

tudo se alinha com o que é certo


todos os contratempos são antíteses

ou então deus ainda insiste em estrelas

ninguém é muito diferente das ruas à noite

não existe futuro o que existe é agonia

lamentável que os sinais da existência

sejam reticentes ou maneiras de otimismo

já deixei você antes agora só quero voar


vou sair 

procurar alguém para escolher minhas árvores

ouvir boa música ou mesmo sentar em uma pracinha

de um lugar sem ninguém por perto


pessoas passarão por mim

verão meu carimbado rosto

meu livro de cabeceira


a eternidade há muito deixou de estar

em meu cabide de roupas prediletas

sempre se constrói algo quando se tenta acreditar  


vivências me fazem lembrar que pouco mudei

não havia cordas pesadas em meu pescoço


beiramos a estupidez ao pensar em inovações

tudo é complexo para parecer que estamos bem

não ria de mim eu também já me apaixonei


talvez reescreva meu destino na tua porta

ou quem sabe me desespere em fugir de ti







PASTO



quando fernando pessoa 

ensaiava o livro do desassossego

minha avó debulhava juçara

nos brejos do interior


quando manuel bandeira 

modernizava as cinzas das horas

meu avô galopava cavalos

pelas manhãs infinitas


quando jorge luis borges

ilustrava a história universal da infâmia

meu pai ainda caminhava

dentro da voz do meu avô


quando carlos drummond de andrade

apresentava a rosa do povo

o mundo se diluía entre guerras

meu pai carregava água nos ombros


quando pablo neruda 

apaixonava com cem sonetos de amor

minha mãe descascava coco babaçu

para ajudar a renda da família


quando bandeira tribuzi

se mostrava em pele e osso

meus pais se encontravam

nos clubes de dança de são luís


quando cecília meireles

despetalava flor de poemas 

eu nascia na benedito leite

com muita gritaria


quando luís augusto cassas

concatenava rosebud

eu nos primeiros versos

tomava um espanto


quando hagamenon de jesus 

emplacava the problem

minha poesia começava a trilhar

entre as transições do mundo


quando ricardo leão

palpitava em primeira lição de física

meu combustível se expandia 

em anticópias de paixão


quando antonio aílton

fulgurava com cerzir

há tempos já acreditava

na desordem das coisas


poesia essa ponte de significados

que trisca os olhos necessários

como se o tempo fosse incrustado

no penso parâmetro do porvir







A ESPOSA



i)

foi necessário perder a costela

para entender toda sua ontologia


mesmo no desfiladeiro não desisti

aprontei as malas retornei ao círculo


nesta turbulência pude entender

os romances de virginia woolf



ii)

apesar dos filhos da casa mobiliada

só restou o que não me desgastava


esqueci de tudo voltei para casa

abrigo de minha mãe um paraíso


não era para ser este destino

vivíamos em rota estrangeira



iii)

estranho ter que cruzar 

com a alma em precipício


desconstruir incertezas

apostar o que não podia


desprender das perdas

estender cálidas feridas



iv)

apaguei os rastros

o caos se equilibrou


fui criando apego

pela paz interior


tudo se cadenciou

o amor revigorado 



v)

a vida é o entrelaçar 

de aparentes dúvidas


não crio mais expectativas

só com o que me satisfaz 


meus olhos agora brincam 

como sempre quis 







INTERVALOS BURLESCOS



1

ele brinca atirando pedras no rio

enquanto o pai se distrai 


com uma mossberg 500

caçando patos selvagens



2

a irmã sem o que fazer

ouve imagine dragons


entre gibis baratos

pede proteção a belzebu



3

a mãe com a boca

entupida de cannabis


descarta bitucas

no vaso sanitário



4

o namorado da irmã 

bate na janela do quarto


entre uma transa e outra

faz boquetes inesquecíveis



5

o pai chega com o filho

coloca a arma sobre a mesa


bate na porta do quarto

da filha sem dizer nada



6

o namorado não espera

pula do terceiro andar


a mãe morre 

de rir com a cena







CISÃO AMÉM!



Aos 50 anos de Antonio Aílton



1.

era uma época de beleza de ignorância lamber os seios de uma mulher um feito merecedor de uma chuva de meteoros quando tocava meu pênis detrás daquele jardim luzes inebriantes solapavam os olhos vermelhos dela que se dizia relâmpago entre meus colhões a verdade é que todo aquele tempo vivíamos uma sinfonia de medos não seguíamos mais os beatles e o que se queria ser era só vanguarda ou rebeldia para agradar um bando de gente com suas interrogações doenças bombardeios ônibus espaciais se desintegrando na hora da sessão da tarde mas sobrevivemos a todos os meandros circunscritos nas calças jeans de nossos pais



2.

há muito estive cansado meus cachorros se jogaram de dentro dos meus olhos e escaparam da comida ruim dos fast-foods baratos é certo e não existe coisa mais desagradável que um punhado de caos no final de uma sexta-feira naquela cidade naqueles degraus da matriz de são josé de ribamar vi os olhos de deus caminhando nos cabelos crespos de uma senhora que vendia potes de barro meus pecados talvez não durem mais que o olhar do bêbado dormindo na porta daquela casa em ruínas a fila é grande para os que desistem de amar durante muito tempo desisti de me contentar com um pouco de sexo vinho e discos de pink floyd 



3.

às vezes necessito que teus olhos larguem meus destinos nunca disse que amanhãs estão escritos na parede do quarto na incerteza encontraremos nosso refúgio necessário há um calendário de perdas no desnorteado sentimento tudo conspira e sopra a nosso favor mesmo desiludido encontro suas pegadas na minha sala de estar é a hora que me inflamo e beijo tuas mãos como reverência aquela fogueira não alcança mais minhas dúvidas divide meus vazios as coisas mudaram não são mais como sempre imaginei quando menino sentando em um banco de praça na avenida jerônimo de albuquerque conferia carros e admirava estrelas



4.

hoje passam por um menino na calçada profissionais liberais advogados pessoas comuns casais de namorados desviam do inoperante destino mudam os olhares talvez só o apreciem o sol a chuva ou um amontoado de latinhas descartadas os sentidos de todos estão vidrados mesmo é com o aumento dos seios da filhinha do papai são silêncios que nos perseguem que quebram as asas dos anjos se eu permitir você com suas conchas estarei contribuindo para o eterno marasmo que nos persegue uma esquina é sempre um bom lugar para chorar calma que deus até hoje não desabrigou nenhum filho seu por isso esperemos



5.

em horizontal perspectiva se esconde entre a neblina sugando a metafísica sem estralos da porta que o conduz ao precipício o faro de satã faz habitat na planície da noite é mais belo que o compulsivo sexo da amante amo a noite não me ouve às vezes ninguém me espera há uma chance para abrir a porta me sinto no precipício dentro dos meus olhos a vida basta as pessoas nunca se escutam espio o exercício de cada dia na espiral das escolhas todas as manhãs não tomo café meu vizinho ouve baixinho as notícias dos jornais nem mesmo chuva é ritual nesta existência talvez felicidade seja mais que todas essas coisas juntas



6.

ela desce as escadas do corredor risca as paredes sem motivo inventa caos é estupidez o retrato do que poderia ser estepe diário filosofia esperança e minha debandada ela que retrai sorrisos é luta íntima o olhar nervoso as estrelas o piano e as cordas vocais as rinhas os reinados a bússola a poesia e tudo que inverna e supera a maresia a santidade e a descrença é iemanjá a pausa a alegria dos casais por ela que tudo se acalma tudo se destrói com um gesto põe tudo a ganhar ou a perder é o destino a que todos esperam é o amor é a que se adianta porque nenhum inverno a espera nem a jose cuervo ou o cabaço da mocinha tremendo



7.

naquele tempo tudo era muito impreciso nem imaginávamos como seria nossa atualidade quantos filhos só intentávamos em comer um monte de besteiras já passaram tantas tempestades meio século e ainda corremos para a felicidade a vida anda chata demais nem mesmo jogar futebol ou empinar papagaios nos distraem a vida é um acúmulo de cabelos brancos aos poucos vamos brilhando cada vez menos rugas até nas fotos de infância desesperança e angústia nossos companheiros do andar de cima e saber que um dia não mais estaremos por aqui o mal existe deuses e raparigas lindas sorrindo no sofá de um clube de adultos



julho, 2020



Bioque Mesito é poeta, nascido sob o sol de aquário em 3 de fevereiro de 1972. Possui vários prêmios em concursos de poesia em âmbito local, regional e nacional. É autor dos livros de poesia A inconstante órbita dos extremos (São Paulo: Cone Sul, 2001); A anticópia dos placebos existenciais (São Luís: Edfunc, 2008); A desordem das coisas naturais (São Paulo: Penalux, 2018) e Odisseia do nada registrado (São Paulo: Penalux, 2020).


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