AUTOBIBLIOGRAFIA



quando você quiser me dar um beijo na boca

por favor não me diga nada

sou um astronauta das madrugadas

sob a influência de aquário eu nasci


tenho os mais diferentes conceitos

sei que a terra gira que o vento faz curva

e que as estrelas são psicólogas

dos bêbados e das galinhas


por isso quando você quiser me procurar

me achará dentro de um livro

de rimbaud ou de artes plásticas

ou ainda ouvindo schummann


os meus conceitos as minhas poesias

os meus retratos são fúnebres concertos

de vanguarda e de guarda-chuvas

aliás eu adoro a metafísica de um pé de mamão


sonhos tenho aos milhares de milhões

nas esquinas os meus passos têm o esboço

da via-láctea e a minha poesia dorme de costas

tentando conversar com o futuro







RECÉM-FORMADO EM BOTÂNICA



arrumei cinco folhas era madrugada

na mesa um macarrão fora de moda

agora não posso desistir

os meus óculos passeiam pelo chão

o dia inteiro não foi como uma sinfonia

por ironia não foi como uma de mahler


rasguei a primeira e joguei ao destino

as minhas pupilas declamavam rilke

estava ensaiada toda a obra da minha vida

tudo fantasia do meu retrato que sorria

sem parar gáudios de safo

o pensamento platônico me fazia brincar

com uma borboleta 

o tempo não depende das asas de uma borboleta


a segunda tinha um tom meio balzaquiano

rimei em versos dodecassílabos 

antes de opugná-la ao lixo

a noite navega como um argonauta apaixonado

o sono toca sua harpa indolentemente

o tempo aterrissa para confidenciar ao crepúsculo


a terceira veio impulsionada pelo concerto de brahms

desta vez o inverno não chegou aos meus ombros

com ela o sincretismo de descartes

sófocles ao piano passa pelo meu subconsciente

estava eu em delírios gregos


a lua começa a bocejar

tudo é sombra e abandono

no meu quarto a vida é insatisfação

de quem nunca viajou por si mesmo


a quarta completa os estágios de mallarmé

não consigo esquecer os versos do sobrinho

neste momento tudo é pausa

o universo é monótono átomos em prosa

o poema flui como galáxias

a madrugada brilha uma vez mais


a quinta está completa 

pelos passos prostituídos das outras

o tempo não depende das asas de uma borboleta







COTIDIANO DE UM POETA



acordo às nove e meia da manhã 

com os olhos no sol que dormiu

comigo pego um copo com água

olho-me no espelho escovo os dentes


sento-me em uma mesa

como um pão com chocolate frio

aos poucos vou me sentindo no mundo


minuciosamente vou em direção ao quarto

observo a velha máquina de escrever

arrumo algumas folhas e começo a trabalhar

a mesma cor metafísica de sempre


a névoa começa a dançar em meus neurônios

sinto-me como se estivesse com ressaca

tento estralar os dedos como forma de abstração


uma pessoa me telefona está tudo bem

volto para o vazio não sei me convencer

estou perdido nem o noticiário é interessante

a tarde namora meu telhado


estou confuso sai a primeira linha

muito inocente desenho a chuva no campo

a lua para atrás da minha janela


é tão estranho que a noite não me sorria

ouço prelúdios de brisas

aprendo a conviver com a verdade já é tarde

minha cama é o caminho da eternidade

amanhã quem sabe 

eu me ouça menos

e a poesia fale 







VIOLETAS DANÇAM NO PLAYGROUND



sete e meia da manhã

um menino busca o pão

a família o espera


oito e vinte e cinco

um carro o atropela


doze e quinze

a família fica sabendo


dezesseis e trinta e sete

o seu corpo é sepultado


sete e meia da manhã

do dia seguinte

o pão aumenta

uma família diminui







A PENÚLTIMA CASA



1. eu não lerei o último

poema meu

talvez seja anacrônico

ou até mesmo contrabandista 


2. terá por certo a perfeita alusão

de mim

sem me desvendar


3. cicatrizes no peito

olhos bem espantados

2,20 m de curiosidade


4. suave como borboletas

no cio

metade eterno por todo tempo

metade orgasmo por insatisfeito







ETERNIDADE MÍNIMA



estou cego

e a coleção completa dos filmes 

de lars von trier ainda não assisti

o gato que antes passeava pela minha

imaginação agora só dorme no tapete


entre todos estes combalidos anos

não encontrei o lado b da vida

que consiga me causar espantos

ou a mulher de beijos estonteantes

que me faça negar meus pedros


estou cego

e a felicidade é só mais um lúdico cartaz

os fantasmas que nunca ousei encarar

riem das minhas fotos de casamento

amigos me culpam pelo crasso silêncio


mesmo a guerra não declarada

do meu comportamento antissocial

é capaz de compreender

os carinhos extremos dos amantes

da ponte neuf



estou cego

e cada vez mais os sorrisos recuam

os amores não mais se reconhecem

o absurdo sepulta em mim seu engano

na incerteza cambaleante de continuar 







A DOMÉSTICA CASA DAS INVENÇÕES PARTICULARES



o tempo elege sempre uma vida para levar

mas aprendi que não existe certeza


antes corria dos trilhos incendiados

para compreender a perda que imaginamos

nem todo dia é para comemorarmos


existe uma parada ela estava lá silenciosa


há uma música que sempre ouço pela manhã

faça chuva ou quando lembro de meu pai


estão disfarçados os amantes que mandam flores

sem meus valores não julgo ninguém

meu filho acha engraçado eu dormir de pijama


a vida é uma série de confusos movimentos


escolhi o vazio dos lugares sem nomes

para mutilar lembranças que nunca existiram







RODOPIO



não esperarei mais

que teus beijos encontrem

meus sapatos trocados


nunca ninguém me disse

que eu deveria correr tanto


amar foi para mim

uma estranha maneira

de se comparar amanhãs


sempre segui na contramão

do que eu sentia sem saber


não sei te amar mais

do que uma imagem

desfocada no espelho







ESTUÁRIO



poesia

uma insatisfação


pausa que pulsa por detrás

do mundo lâmina de alta precisão


contraventora de palavras

fuga da minha imaginação


destino que me alucina

rupestre inscrição


incêndio controlado

em minhas mãos







HABITAÇÕES



I)

vague entre estrelas e sóis imaturos pregue a doutrina do beijo

compreenda a dor enamorando-se beba o belo e o feio que são

eternos vista o sonho de realidade ressuscite retratos amarelecidos

com o mesmo ontem solitário experimente novidades sem naufragar

em mares de nunca cruze a saudade velejada nos ombros



II)

fale de ventos e tempestades íntimas dance com ternura a valsa dos

peixes deposite o azul dos céus nos olhos mudos toque em notas nuas

as pausas da solidão cicatrize feridas com um leve silêncio de luas

faça versos em sereno utópico à procura do momento exato anuncie

em prosa amiga a grandeza das trevas brancas



III)

cante para as noites as suítes úmidas do vento busque no horizonte

um sonho de mãos descalças trace o ridículo em carinhos incomuns

acene em gestos simples sem reduzir rostos de papel ultrapasse

mundos vazios sem flagelos de um soprar castanho escute histórias

de atalhos com urgência de nuvens



IV)

suavize as madrugadas num deleite de estrelas trilhe pelos muros do

tempo sem um único sinal de beijo póstumo envolva dores de mães

em dédalos de linho olhe para os homens como palavras rudes resista

calado às dores das cicatrizes amanheça em brumas com sonhos de

distâncias viva à sombra da foice sem massa de cadáveres



V)

pinte de aurora a tela do infinito pacifique cóleras com doações

de simplicidade respire corpos perfeitos sem cansaço de bandeiras

tenha mãos pacíficas e seja poeta até no desalento sorria sem perder

a identidade sonhe transparências sem nitidez de suspiros lute contra

os medos são apenas pensamentos



VI)

reviva a rosa noturna sem cotidianos de sangue dispa destinos

incertos na nua profundeza dos sonhos decifre províncias sem reter

liberdades pese pecados enrolando confissões sopre o perfume

das fêmeas acariciando orgasmos tenha segredos sem se tornar

prisioneiro conforme o pranto com travesseiros de nunca



VII)

abrace o covarde para que ele saiba o que é amar beije a face de

modo elétrico saúde cada momento com exatidão beltrana ore com

olhos sinceros para os de pés cansados procure na dúvida o futuro

embaçado absorva fábulas sem desperdiçar uma borboleta sequer

reduza incertezas em cemitério de comas



VIII)

garanta aos humildes um necessário lugar alegre a mesmice em

infernos de flores roucas dissolva o hálito da ruína percebendo o

silêncio mármore dos girassóis retire do lodo as pessoas puras

procurando a essência dos beijos conviva lúcido em um mundo de

hashtags whatsapps & selfies torne público o que de público não há



IX)

pregue um mundo de perdões de franciscos protestando contra as

mazelas seculares fuja dos intolerantes dos preconceituosos dos

moderadores e se arrependa das amantes que nunca amou acorde

e olhe para o céu para o sol e o mar para as estrelas como símbolos

contínuos do nosso existir sede vós a essência dos mundos







SERENDIPIDADE



quase observo

uma velhinha passear pela rua

do sol com os calcanhares duros


pelas tantas do meio-dia

quase cai e o vento passa


de longe apreensivo

pergunto se não quer ajuda


abre a sombrinha e me dá a mão


lembro do meu avô que morreu

em uma queda de um muro

ou melhor meses depois

de banhar por horas na chuva


abruptamente ela para me olha

até aqui está bom vá com deus


o caminhar impreciso e frágil

flutuava pelos paralelepípedos


como guiados por uma razão maior







ANTI



às vezes o tempo alucina

parte de minhas vértebras

conheço mais beijos selvagens

que suaves segredos


a noite pousa na braguilha

das fêmeas famintas

só há um norte para libido


um pássaro que não quer partir

do rigoroso inverno

me compreende mais que tudo

às vezes uma pausa me

basta

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Bioque Mesito é poeta, nascido sob o sol de aquário em 3 de fevereiro de 1972. Possui vários prêmios em concursos de poesia em âmbito local, regional e nacional. É autor dos livros de poesia A inconstante órbita dos extremos (São Paulo: Cone Sul, 2001); A anticópia dos placebos existenciais (São Luís: Edfunc, 2008); A desordem das coisas naturais (São Paulo: Penalux, 2018) e Odisseia do nada registrado (São Paulo: Penalux, 2020).


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