©elisa scascitelli

 
 
 
 
 
 
 

Um sonho



quero ir embora

quero viajar

quero mudar para 42

o número do meu sapato

e aumentar meus passos.







Simplicidade



na minha infância solitária

fingia-me sábia como uma cigana

e brincava de prever meu futuro de heroína

então girava, girava, girava

feito pomba rainha gira

até tropeçar

nas sete saias imaginárias

que me defendia

de cair na realidade

do chão que eu esfregava

com amabilidade e delicadeza


Mulambos que herdei de Maria


Se a vida rouba sorrisos

isso explica bem a minha cara séria

com o poder de uma mulher invisível

tenho a riqueza do desapego

nunca cobicei o ouro de Oxum

convicta de que o dourado não me cai tão bem

quanto a liberdade dos fios de prata nos cabelos







Perecível



Toda mulher se retira um pouco a cada vez que se torna mãe

Mãe é uma mulher expulsa de si mesma


Toda mãe é encruzilhada

dúvida, medo, sobrecarga, pressão


O mundo íntimo de uma mãe é um pavor constante

Mãe é imperfeição, angústia, culpa, remorso


Quando as filhas se tornam mães, descobrem — ainda que tardiamente —

que toda mãe estraga em determinado grau a vida dos seus filhos e filhas


Toda mãe é alvo de ira


Mãe é ofensa

culpada e condenada


eterna

um grande erro

que não cabe dentro de nenhum perdão


As mulheres que não almejam a maternidade

se tornam cada vez mais mulheres e independentes

mas nunca libertas da mãe

que um dia elas reconhecerão

no próprio rosto diante do espelho


As mães pairam, emergem, vem à tona


Mãe é um problema biológico


Não há como escapar da carne da mãe


Mãe é a escuridão interna dos seus filhos e filhas


Toda mãe é idealizada

nenhuma é o resultado esperado


elas se transformam

viram peso

se tornam inúteis


Toda mãe é perecível







Bens guardados



Para que as palavras não tomem o lugar do significado


guardo neste armário sem portas e sem fundo

os deslimites da minha riqueza

o universo azul nos olhos do céu

o brilho de uma estrela no mar

o acaso e a chuva passageira

a flor e o cheiro da laranjeira

a miniatura de uma saudade

o palco, a arte e uma jubarte

um beijo e dois olhares

o silêncio e um quilate de besteira

o espaço e meio metro de abraço

os pequenos pés da alegria gêmea

vinte e quatro patas de afeto

três gatos e três cadelas

a felicidade da minha criança

e uma perna de esperança

no sorriso do homem o menino

a música, o canto, a poesia de Manoel

a delicadeza e o amor em liberdade

os favos de mel e a coragem de um ratel

a personagem concebida e um enigma

quem eu sou de verdade.







Le Grand Mensonge



Le Grand Mensonge

o tolo e austero rebotalho

por falta de morte é uma não coisa que dura

resumido desde o ontem

já deu mais sessenta voltas

em torno da cicatriz arredondada

na linha média do abdome

de misérias várias usa máscara de ouro

e refugia-se entre o chão e o assoalho

helminto faminto

triturou vidas e almas

agora rói os próprios ossos

e mal respira







Sete ervas de proteção



que a espada de são Jorge

me proteja da inveja

disfarçada de estima

dos olhos insignificantes

dessa primitiva e vaidosa traça

bem alimentada com migalhas

de elogios sem serventia

querendo coabitar a minha casa

Pé de pato mangalô trêis veiz

alecrim, arruda, guiné

manjericão, pimenteira

comigo ninguém pode.







Ninguém



ninguém sabe

dos abismos em nós

quando virá a tormenta

da dor no coração de um homem

das saudades que já não habitam as lembranças


ninguém sabe

da aflição da mulher de Lot

do desespero de Orfeu

da onipotência divina

do perigo de olhar para trás

ninguém sabe

quem arrancou a flor de cacto do nosso jardim

porque partimos ou onde chegamos

por qual motivo se apaga uma cidade

com quantas interrogações se indaga uma vida?

— ninguém sabe







Suicida



tonto

despencou

do vigésimo primeiro andar

fitando o abismo


o amor sangrou

estatelado na superfície







Soltura



Fiquei doida, solta

dessas que ninguém consegue atar em poste

que ninguém consegue atar

que ninguém consegue.







Partida



sem trilha sonora

sem abraços de despedida

sem beijos técnicos

sem ar novelesco

sem final feliz

sem final nenhum

algumas histórias são assim







Transbordo



vivo à margem

onde a vida vaza

sangro







Precaução



Partiu

antes do amor

desgastar







Contrato



Permaneceram unidos

pela insegurança afetiva



dezembro, 2020



Arlene Lopes é escritora, compositora letrista e produtora executiva em projetos culturais. Nasceu na cidade de Jacobina, Chapada Diamantina, Bahia, onde viveu até a adolescência e encontrou o caminho do Sul no início de 1990. Foi no Sul que surgiu a arte da escrita como forma de resgate das sensações vividas e de afirmação de identidade, tanto cultural como pessoal. Em sua trajetória poética e literária, teve muitas obras integrando movimentos coletivos em revistas virtuais, blogues, livros de antologias poéticas e coletâneas do universo literário feminino. Alguns de seus textos foram incorporados na peça teatral A mulher do padeiro uma adaptação de La femme du boulanger, do francês Marcel Pagnol. Em 2016, após 26 anos, retornou à Bahia para um novo caminho ao lado do compositor e músico gaúcho Santiago Neto. Em 2017, radicaram-se na cidade de Itacaré, na costa do cacau, litoral sul baiano, onde criaram o espaço cultural independente "A Sonora Casa Santiago de Arlene", onde desenvolvem várias ações culturais como o projeto "Quinta no Quintal" — encontros de música e poesia — e programas de Residências Artísticas com artistas de outros lugares do Brasil e do mundo que participam das atividades da casa como contrapartida. Há, neste espaço, uma escola de música com programas de inclusão e acesso à educação musical, promovendo também o incentivo à leitura e à escrita, além de oficinas de artes para crianças e adolescentes da comunidade.


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