alma

 

 

tenho a mania de ser radical

e já arranquei um peito

para eliminar uma dor endurecida

coisa de mulher fodida

que coleciona cicatrizes

coisa de quem tem alma

 

 

 

 

 

 

alice

 

 

a primeira vez que a morte rondou alice

enroscou o cordão umbilical em seu pescoço

com a intenção de transformá-la numa criança natimorta

quando nasceu alice recebeu da vida um abraço magro e faminto

 

a segunda vez que a morte rondou alice

empurrou-a de um precipício

atirou-lhe nas costas duas enormes pedras

e alice entendeu o aviso de que não seria poupada

 

a última vez que a morte rondou alice

preparou-lhe uma emboscada

em posição fetal lavada de sangue

com o pulmão perfurado

aos nove anos alice tornou-se eterna

 

 

 

 

 

 

andança

 

 

ando vestida de silêncio

penumbra

a fadiga roendo minhas tripas

secando minha juventude

meu sorriso verde musgo

sem força sem vida sem sorte

túmulo em desuso

ando vestida de morte

a alma em chagas

soterrada pelas cinzas

inexistência

numa quarta-feira arruinada

ando

feito hiena

rodeada de carcaças

com aparência rugosa

rastejando feito serpente

lúgubre

parecendo um diabo

com dezoito dentes e mãos minúsculas

ando

medonha

 

 

 

 

 

 

papai e mamãe

 

 

papai era comerciante de todo tipo de coisa

por isso cuidava bem da aparência

mamãe costurava e também trabalhava na cooperativa de sisal

mas sempre arrumava tempo para pintar as unhas

mamãe pariu sete filhos

os sobreviventes papai levou embora

fui a primeira

papai desatento e aquariano

não percebeu minhas lágrimas nem o choro de mamãe

papai comprou um carro novo

mamãe adotou um menino e passou a fazer somente o que queria

num dia de julho papai sangrou muito durou pouco

não nos viu crescer

mamãe viu o menino tornar-se adulto

mas não esperou o café ficar pronto

repousou nos meus braços o seu último suspiro

eu — com o tormento de quem sobrevive —

me senti a morte em pessoa

 

 

 

 

 

 

inabitada

 

 

nena aprendeu a engolir o choro

antes mesmo de aprender a falar

não fez poesia

escreveu emudecimentos

com um olhar de cacto

cativante e deserto

viu seus escombros

refletidos na água parada

não quis mergulhar como aglaya

 

nena com pouca precipitação pluviométrica

parecia suicida

era inabitada

 

 

 

 

 

 

extrações

 

 

arrancaram-lhe da mãe

arrancaram-lhe a mãe

arrancaram-lhe as unhas dos dedos do pés

que topavam com as pedras sem nenhum obstáculo

arrancaram-lhe os dentes de leite e as amígdalas

quando o pai foi arrancado também arrancaram-lhe a irmã

plantados numa cova dupla cobertos com terra infértil

regados com água salobra: nunca brotaram

arrancaram-lhe a cama as roupas

a casa as lágrimas

arrancaram-lhe um filho o útero a avó

o peito os sisos e o juízo

escreveu para repelir seu desejo de morte

matou todas as recordações

 

 

 

 

 

 

das posses

 

 

um vivente

que possuía muitas coisas

e carregava nos ombros

o peso dos equívocos

debruçou-se no corredor da agonia

remoeu palavras ruínas

e  mágoas circulares

carcomeram seu coração

andou sobre pedregulhos pontiagudos

feriu os calcanhares embriagados de posses

 

certa vez

encontrou uma mulher-poema

que na dor do caminho

o  presenteou

com sorrisos de larga profundidade

e versos em forma de beijos

duas vezes ao dia

então ele perguntou:

como sorri se não tem posses?

ela ofereceu-lhe o terceiro sorriso do dia

— tenho o existir

 

 

 

 

 

 

vida

 

 

costuro

um saco cheio

de ausências

impróprias

apego

à vida

escrevo rápido

tenho pressa

finco palavras

no papel

dor

descabida

apago

a vida

 

 

 

 

 

 

horizonte

 

 

expando-me no horizonte

com o último olhar

para a janela do equívoco

imagens migratórias

voam contornando

a melancolia seccionada

do peito

da bifurcação

do caminho

onde o passado

vasculha os mortos

 

 

 

 

 

 

do que restou

 

 

era um bom dia para descontinuar-se

no silêncio do domingo pairava toda a incapacidade

do juízo inquieto

era um bom dia para interromper-se

não tinha ira

nem medo

junto com a fúria necessária para continuar

ficaram os sonhos atados às pedras

deixadas ao longo do caminho

restou uma paz cansada e pálida

uma alma tensa e dilacerada

as feridas e os destroços

restou a existência

 

 

 

 

 

 

equilíbrio

 

 

dias suspensos

por um fio

a vida

o assombro

o silêncio

refletido na vidraça

como um fantasma que se plantou

teimando

em encarar-me com olhos ofensivos

nem mesmo os passos acelerados

do coração

conseguem fugir

da espera

não adianta correr

sem ter para onde ir

o melhor é não se perder

no labirinto dos dias

sombrios

no insulto das chuvas

interrompidas

não desequilibrar os passos

nem a vida

dependurada

por uma linha tênue

 

 

 

 

 

 

alpendre

 

 

protejo-me sob um alpendre

envolta em lençóis lambuzados

num papelão molhado

acomodo a frieza

busco uma palavra liberta

despida de indiferença

encontro estrumes de felicidade

e a perdição de um sono usado

 

 

 

 

[imagens ©monia merlo]

 

 

 


 

 

 

 

Arlene Lopes é baiana de Jacobina. Desde 2003, viveu em Porto Alegre e, em 2016, voltou para a Bahia. Designer de interiores por formação, optou pela caminhada na produção de conteúdos culturais, primeiramente, na escrita poética, com textos em teatro e publicações de poemas em iniciativas coletivas de escritores brasileiros, conteúdos em blogues e revistas. Também é compositora filiada à UBC (União Brasileira de Compositores) e produtora executiva em projetos culturais.