Difícil desvendá-los com nossa bússola eurocêntrica. Meus instrumentos de análise mesmo são redutores. Parecem poemas futuristas (de Marinetti). As "palavras em liberdade" parecem estar lá. No entanto, os 12 poemas de sopaporiki, grafado assim, em minúsculas, do poeta brasileiro sul rio-grandense Richard Serraria, seguem basicamente uma estrutura muito tradicional, a dos chamados "orikis", poemas de origem iorubá, que representam saudações epiteticamente falando, muitas vezes aos orixás, na condição ritualística. Esses poemas quase não contêm conjunções. 

Então, percebemos rápido, se bem-informados, sopaporiki tem algo na forma que é semelhante ao apregoado por uma vanguarda do início do século XX, remetendo, no entanto, a uma estrutura tradicional da arte e cultura de um antigo povo africano. Mesmo paradoxo presente nos trabalhos de Picasso que originariam o cubismo nas artes plásticas.

Essas coincidências com movimentos que se diziam à frente do seu tempo fazem da poesia presente em sopaporiki uma poesia nova? Uma novidade em poesia? Os próprios movimentos avant-garde representam o novo ainda hoje? Sim, a todas essas perguntas. O processo de escrever "palavras em liberdade" (ou "parolibere", no qual as palavras que compõem o texto não têm nenhuma conexão sintática-gramatical entre elas e não são organizadas em frases e períodos) era um tipo de coisa inaceitável academicamente em poesia na sua época. Essa "imaginação sem fio" presente em larga escala nos poemas do livro de Serraria ainda soa novidadeira hoje, embora já não como algo revolucionário.

Fernando Pessoa escreveu que uma poesia pode ser nova quanto à forma, caso em que diríamos que temos um artista novo da poesia, ou ao conteúdo, caso em que diríamos que temos um poeta novo, ou em função de ambas as coisas. Nos três casos o poeta português admitiu que teríamos uma poesia nova. Então, se a forma dos poemas do livro não é nova, mas soa como novidade ainda, e se o "conteúdo" dele pode parecer absolutamente novo àquele que venha de uma tradição eurocêntrica, não resta dúvida de que estamos diante de poesia nova.

Já, embora a forma revolucionária exigida por Maiakovski como requisito para uma poesia revolucionária, ideia herdada pelas segundas vanguardas tal como o concretismo, quiçá não esteja presente em sopaporiki, a obra pode ser mais que nova como objeto cultural e linguístico. Ao menos do ponto de vista de uma língua e uma cultura luso-brasileira, ou americano-europeia.

Maiakovski também teorizou sobre como fazer poesia, qualquer uma, e conclui que o poeta tem que cumprir também algumas exigências "indispensáveis para o início do trabalho poético", sendo as três primeiras: "encargo social", "existência na sociedade de um problema cuja solução é concebível unicamente por meio de uma obra poética"; "percepção da vontade da classe a que você pertence (ou do grupo que representa) em relação a esse problema"; ter um amplo reservatório de "palavras necessárias, expressivas, raras, inventadas, renovadas, produzidas, e toda outra espécie de palavras". As primeira e segunda exigências do vanguardista russo parecem apontar para o poeta novo de Pessoa, embora possamos dizer que o nosso Serraria já demonstrasse seus dons poéticos há quase três décadas, ao menos, especialmente através do poema em formato canção. A terceira exigência, quando citada a necessidade de palavras inventadas parece apontar para a poesia avant-garde e suas artes da palavra herdeiras. Então, Maiakovski, na realidade, somente definiu nestes três princípios alguns fundamentos para criar uma poesia nova, nos dois dos seus tipos conforme a visão pessoana. O livro de Richard cumpriu, sem dúvida, os primeiros três pré-requisitos do russo para produzir uma poesia que se quisesse nova. Isso fica evidente nos seus orikis "modernos".

Mas o que são o sopapo e o oriki que formam o neologismo palavra-valise do título? Sopapo é um tambor, instrumento afro-gaúcho (gaúcho é como se designa quem nasce no estado brasileiro do Rio Grande do Sul), feito originalmente com troncos de árvore e couro de cavalo. O sopapo tornou-se um símbolo da valorização da identidade negra no Rio Grande do Sul. O instrumento também foi utilizado para simbolizar as conexões com os países vizinhos, já que há registro de um tambor semelhante, talvez idêntico, no Uruguai e Argentina, com o nome de Sopipa. Sobre o conceito de oriki de que os poemas do livro de Richard parece se aproximar, Pierre Verger, nele citado, diz: "Oriki: forma de saudação, em que são enunciados os nomes gloriosos, as divisas, as louvações especiais ao Orixá, que exaltam seu poder e recordam fatos e proezas do ancestral divinizado." 

Assim, os neo orikis de Serraria escolheram homenagear os 12 orixás do Batuque de Nação Oyó Idjexá. O tambor sopapo assume a posição de uma espécie de eu lírico, ao mesmo tempo que simboliza um orixá. No caso das orixás femininas, o sopipa, lido o "a" final como designativo de gênero, tem estas posição e simbolismo. Logo, os orikis do livro também são loas ao próprio sopapo (ou "à" sopipa). 

Se aproximam, além disso, daquilo que Ezra Pound denominaria "estilo sintético-ideogrâmico", da montagem cubista, utilizando-se da justaposição de frases e orações, sem uso de conjunção e outros elos de ligação. Por isso falávamos no início de quase "palavras em liberdade", são mais frases e orações em liberdade, na verdade, embora tenha sido empregada uma economia de outros vocábulos gramaticais que estabelecessem conexão entre termos da oração ou entre períodos. Em comum com o programa do futurismo italiano há essa ruptura com a lógica sintática tradicional das línguas europeias, além do uso dos neologismos, exploração dos efeitos visuais e fônicos das palavras, uso de números. Também próximo das ondas vanguardistas históricas é o amplo uso de palavras-valise nos textos.

É difícil retirar um trecho de uma obra tão densa e coesa de forma que este não fique parecendo incompreensível. O seguinte trecho do poema sopapo odé e otín sopipa, no entanto, ilustra bem estes usos ultramodernos de imaginação (quase) sem fio e palavras-valise inventadas:


sopapo arco mão aberta

sopipa flecha rasga céu

oquebamo oqueacha

cerração quebaixa sol queracha

cântaro sobre reinos mundo

canta cabeça erguida

oquearriba oquerixa

céu risca erebango


Diz-nos Octavio Paz, sobre o "escritor modernista" — no caso específico dos modernistas hispanoamericanos — que ele "sacrifica as palavras europeias no altar de autenticidade americana". É mais ou menos a ideia de antropofagia de Oswald de Andrade: uma devoração crítica que come o estrangeiro europeu para apossar-se de suas qualidades. Sopaporiki, no entanto, devora palavras de outras linhagens para formar o reservatório de Maiakovski: "pretoguês" (neologismo emprestado por Serraria da autora Lélia Gonzalez, o qual aponta para a africanização do português falado no Brasil), banto, guarani, iorùbá, kaingáng, charrua, quéchua, espanholismos, lunfardo, crioulo, bozal, gírias do chamado "porto-alegrês" (de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul). O poeta é, então, um "descobridor" pluri e panlinguista de uma língua portuguesa/brasileira baseada na variedade do Rio Grande do Sul, mesclada às línguas da Bacia do Prata e das Américas, e/ou a línguas pertencentes a uma cultura "amefricana", usando quase um dialeto que exigiu um glossário ao fim da obra, para auxiliar nosso entendimento limitado da linguagem verbal, embora fosse esperar demais um glossário completíssimo que contemplasse a riqueza da linguagem de sopaporiki e suprisse nossa ignorância.

No trecho que selecionamos acima, essa riqueza vocabular preexistente e de invencionice, assim como uso renovador do regional/microrregional idiomático aparece bem: "erebango" (palavra kaingáng), "oquebamo" e "oquearriba" (palavras-valise com uso de espanholismos), "cerração quebaixa sol queracha" (reciclagem da expressão do Rio Grande do Sul "cerração que baixa, sol que racha"). E tudo derivando paranomasicamente, seguindo um princípio do poético exposto na teoria de Roman Jakobson, princípio sem o qual os versos cairiam desfeitos, conforme Maiakovski.

Também, na sua mistura linguística, renova o uso de gírias, alterando, por exemplo, sua grafia de acordo com a visualidade desejada, indo um passo adiante da poesia marginal dos anos de 1970, embora possamos dizer que o poeta está, de alguma forma, aparentado a ela. Vejam o poema sopapo shapanã:


shapanã traga

saúde meu shapa

sopapo shapa

shapa na paz

abáu

sempre


Trata-se também, a referida riqueza verbal, de uma espécie de antropofagia linguística inovadora que, sem abandonar nossas línguas europeias da América, aproveitando suas particularidades e inovações, mergulha-as no influxo aparentemente inovador também de línguas africanas e nativas, para que aquelas não permaneçam cativas "a uma linguagem racista", usando os termos de Richard. Digo "aparentemente" porque, se pensarmos bem, essa outra linguagem já estava aí, em uso no continente, mesmo que "subterraneamente".

Desse modo, usar um quase dialeto subterrâneo é uma opção política que traz à tona uma proposta de atestar a presença de uma poética da oralidade na construção do imaginário brasileiro, dando destaque à matriz negra e originária no sul da América "Latina", sem dispensar toda uma variedade regional e suas influências em geral. Mais uma vez usando um termo do autor dos neo orikis, desvendador de um conteúdo novo, este se tornou o poeta novo pessoano, através do trabalho de "artivista". O mesmo trabalho com a linguagem, mas dessa vez com sua sintaxe, usando processos na verdade tradicionais de textos orais de uma língua africana, iorubá, outra língua de dominados, faz do poeta um artista novo da poesia de Pessoa, pois traz uma forma que é ainda novidade. Richard é um continuador do modernismo brasileiro antropófago de um país imaginário do extremo sul americano, regionalista e universal ao mesmo tempo, escrevendo em verso livre, sem maiúsculas e sem pontuação, adentrando em formas das vanguardas europeias e de seus derivados.

Conforme a teoria de Maiakovski também estamos diante de um verdadeiro poeta, praticante do novo em poesia. Que traz, politicamente, como dissemos, um problema que somente poderia ser tratado poeticamente, justamente o de trazer à tona uma poética ou poéticas da oralidade, línguas e variedades linguísticas subterrâneas etc. Trazê-las à tona corresponde às expectativas dos grupos sociais que praticam essas culturas paralelas à luso-brasileira/ euro-americana, fundamentais. As palavras dessas poéticas ou línguas e variedades, enfim, dessas culturas, são necessárias e representam um sopro de vida para nossos falares desgastados pelo uso, bem como para aquelas mesmas poéticas ou línguas e variedades.

Finalmente, podemos dizer que Richard é criador de poesia nova em vários sentidos, sob vários enfoques modernos ou vanguardistas, sendo ainda um poeta em sentido muito homérico,  cantor, no entanto, de uma "mátria" sem fronteiras precisas, imaginária e marginalizada, que necessitava, decididamente, deste novo porta-voz para tomar forma e visibilizar-se. Apesar do uso do eu poético sopapo/ sopipa, sendo estes criação literária, personagens, não se pode dizer que não é o próprio autor que se expressa nos poemas. A voz do poeta em sopaporiki não é uma ficção.

Sopaporiki é formado do que, pelos padrões de hoje, época de poemas sem fôlego, podem ser consideradas longas logopeias (com o perdão da paranomásia), as ideias dançam, não se perde de vista a melopeia, tal como a fanopeia. Ou, as ideias dansam, com "s’, como grafado por Richard, porque o "s", visualmente, lhe foi sugerido parecer mais dançante que o "ç’. Mais uma antiguidade que ainda soa como novidade, pois o recurso de usar ortografia própria já era usado por Qorpo-Santo, no século XIX, embora com outros fins. Algumas obras são novas velharias novidadeiras. É o caso de sopaporiki.



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O livro: Richard Serraria. sopaporiki.
Porto Alegre: Après Coup - Escola de Poesia, 2020, R$ 60,00
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dezembro, 2020



Adrian'dos Delima (Canoas/RS), pseudônimo para Adriano do Carmo Flores de Lima, é poeta, tradutor, teórico de poesia e compositor, revisor, capista e diagramador. Cursou Letras, com habilitação em Tradução, na UFRGS. Na década de 1990, publicou poemas em antologias e fanzines fotocopiados, que editou com amigos, além de editar e publicar no jornal “Falares, dos estudantes de Letras da UFRGS. Foi pesquisador da poesia de João Cabral de Mello Neto. Seguindo seus estudos como autodidata, posteriormente, publicou em revistas de papel e online, como a Babel Poética, Gente de Palavra, InComunidade, Sibila, Diversos Afins, Mallarmargens, Subversa, Literatura & Fechadura, entre outras. Traduziu poemas de Joan Brossa para a Revista Gueto e de Reiner Künze para a Editora Moderna. Publica, sem muita regularidade, teoria literária e da tradução, traduções poéticas e poemas próprios na sua página Rim&via. É autor dos livros de poemas Consubstantdjetivos ComUns (Vidráguas e Gente de Palavra, 2015), Flâmula e outros poemas (Gente de Palavra, 2015) e O aqui fora olholhante (Vidráguas, 2017).


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