tom wesselmann | mouth 8
 
 
 
 
 
 
 
 

 

APELAÇAM DE FERNAM DE GUILHADE DANIFICADO, CUJO HE CONDAPNADO AO DEGRADO SEM AVUDO AUTO DAVER

 

 

[Improvável poeta apócrifo imaginário contemporâneo de Villon, primeira metade do século XV, condenado ao desterro. Escrito em português próximo da língua popular de Fernão Lopes, do mais "clássico" português de Gomes Eanes de Zurara e da língua das "Ordenações Afonsinas"]

 

 

Des que nom vivo co'a ventura

Hei descuberto toda sorte

De cousas cruas da natura

Que a mi nom leixam nem co'a morte.

Caso do nado haveendo cura

A mi nom guar me o dereito,

Ca a justiça a mi he dura

Nom teendo acorro por meu feito.

 

Soomente hei desaventura

Em seendo huũ qual busca aporte

Daquesta coita que perdura

Sem mais remedio que o conforte.

Quanto da door da vida pura

Guarida hei jaa me deleito;

Mas dei d'achar aa lei mais dura,

Nom teendo acorro por meu feito.

 

Quando eu jaa era em esta altura

Foy que foy dar em vida forte,

Me desaviindo co'a ventura

Pera perder me de aquel norte;

Sem de merçee huũa mestura

Qual aa mais fea em no seu geito

Nunqua domada criatura,

Nom teendo acorro por meu feito.

 

Nosso Senhor, Rey da ventura

Nom vos queiraes nom seer perfeito:

Guilhade roga a graça pura —

Nom teendo acorro por meu feito.

 

 

 

 

 

 

A NECESSÁRIA HIGIENE

 

1.

 

O de repente

pássaro

eu o olho pra cima

sair-se das copas

pra sumir acima do telhado

ao som de abertas

duas asas

quando abro o portão de casa

minhanossa vida se abre ao surpreendente

 

 

2.

 

Assim como

a de repente

balbúrdia pode chegar

deixemos ela passar

e parecer um simples flap

 

 

 

 

 

 

TURBILHÃO

 

O ventilador olhou dois lados

Eu dormi

Ele virou pro outro

E enterrou fundo

As hélices pela janela

Numa nuvem de chuva

 

 

 

 

 

 

ASCENSÃO SELECIONADO

 

próximo a

filho da

acostumado a, com

nocivo a

necessário a

 

relacionado com

filho de

ojeriza por

útil para

 

desejoso de

união com

apto a

entendido em

hábil em

versado em

grato a

 

diferente de

preferível a

suspeito de

impróprio para

 

compatível com

escasso de

vazio de

alheio a, de

fácil de

essencial para

 

 

 

 

 

 

DECOMPOSIÇÃO

 

Hare Krishna, Hare Krishna

Os teus olhos azuis cantando

                         me dizem

pra eu ser feliz na minha, e eu

desiludido penso eu queria

ser feliz na minha tua.

Eu já tive lindas, lindas flores, lindas

    nos meus vasos de (flores da) vida que murcharam

como as orelhas do burro cor-de-burro-

quando foge, foge de tudo. Eu-brusco busco não ser apagado da memória

do mundo   com

uma borracha com cheirinho de morango — E rodo

rumba, mambo, baiana — un tango —, quanto? ó

mundo do dodó extinto, nós os dinossauros.

Eu-só

 não quero sumir assim não, mas sim

   ficar nos murais, nos muros, vitrôs coloridos em flor

que vão ficando pretos, e chumbo,

             de efeito, nós-nozes numa estufa, nazi-forno.

 

Pobrezinho d'Eu que alimentei esperanças em mim e as dissolvo, como

aos poucos, e decomponho as palavras, vá,

    vá bene, parabolar palavras boas, pra lá bolas parábolas,

palávroras palárbolas palárboles palárvores ou palárvoras

    bene, palavras novas, já, de jaca, jaca Hare

                   jaca H, vá já.

 

Eu não, vou ficar pra lá, pra sempre — tu passar, tu passa, passará na passeata

                                          bólido enve(ne)nado vida

Tu no vácuo

Tu vai lá — lá, lá — tu vai lá, ninhum lugá — oh, alea jacta est, señorita —

                              de Hare Krishna, Hare Jaca-se, KH.

 

 

outubro/1987

 

 

 

 

 

 

IDADE DA CORUJA

 

As particulares formas

das partículas

que não distinguimos

no ar que entrou

 

espirr/spritos de poeiras

restos de pele pêlos pelos pêlos das narinas e borracha dos pneus etc

 

(que)

 

flutuam invísiveis

no quarto hermético

fechado a portas e a janelas

 

No escuro sem consciência

se vive bem por séculos

 

 

 

 

 

 

A TRADIÇÃO FUTURISTA (OU a tradição-anti)

 

1. trânsito em transe

 

os cruzamentos e as rótulas tensas

os automóveis se olham

as cidades do futuro não avançam

a vez das bicicletas prende a respiração

os idosos não dão o primeiro passo incerto

os bêbados praguejam

ninguém sabe até onde

 

 

2. eco-carroças contra a privatização do lixo

 

os carroceiros futuristas se carregam de sacos pretos

as cabeças dos carroceiros ficam entre grandes fones de ouvido antigos

os narizes e bocas dos carroceiros são feitos de máscaras cirúrgicas

as camisas pele punk de panos costurados levam mensagens escritas

as pessoas da rua talvez não saibam ler de verdade   

os automóveis não conseguem atropelar as carroças

alguns só conseguem ter pena dos animais

 

 

3. todo o ódio futurista aqui desenvolvido

 

os autos odeiam é verdade as motos também

as bicis

os bêbados

os velhos

é claro

quando não estão somente indiferentemente ligados nos seus celulares

nas suas musiquitas

e + mas + ignorar as carroças não podem

os autos que só cuidam do seu próprio couro de lata

e até gospem homenzinhos vermelho-

gritão

se estourando as veias no pescoço

prontos pra

à soco

de ódio

a pior guerra tribal

quando a tinta do carro passa por algum arranhão 

 

 

4. olha o relógio

 

sem (à carroça) indiferença

é a hora mais burra mais suja mais partidária das leis

é ou uma ou duas ou três das três                                      

 

 

*Nota sem poesismo: não sei como se escreve cuspir.

 

 

 

 

 

 

SUBÚRBIA                             

 

(bem anterior a um certo filme)

 

A tarde tinha um ar grisalho ao terminar

Onde as lâmpadas mais altas

Acendiam cabeças

De vaga-lumes pálidos

 

Eram os pescoços desta cidade baixa

Que se esticavam nos postes

Talvez para ver além dos telhados

Presos que estavam na borda da calçada

 

Se pudessem se lançavam

Por cima do chapéu do morro                     

Para o céu estrelado que à noite

O teto das metrópoles usa

 

Para iluminar com os poetas

Os vultos que a lua projeta

Os vãos escuros entre os edifícios

E a sombra da miséria sob os viadutos

 

 

 

 

 

 

A DANÇA

 

Há uma poesia

de tal tamanho

querendo pôr

meu corpo em movimento

Que saio

sem rumo certo

para a rua

por esta tarde

agradável de inverno

onde algumas folhas

balançam

orelhas no vento

 

 

 

 

 

 

ATO DO RECOMEÇO

 

O vento vune

Na minha orelha

Se levanta o cabelo

 E quanto àquilo

 Que eu pensava tão longe

 Caio em meu corpo

Mas mergulhar

Minha bota

No brilho do asfalto

Recompõe a noite

Tudo aquilo que pensei

Cai com a chuva

Branca de luzes

Tudo aquilo

Se recompõe

Em mais um passo

                          Outro

 

 

 

 

 

 

DESPERTA(DO)R DE SOL NA CARA

 

Alto de muro,

Pardais, olho nos —

 Altos —

Dias chegando.

 

Assim passam — Contemplam —

A hora — E assim são meus guias —

Como é a cabeça.

 

Vou —

        Pr'oriente

                Purpureando-se —

Queimando fogo sobre o morro.

 

Vou chegar

No sol nascer —

         Quando vai ser?

E eu não sei

 Pra que irei

  E até quando.

 

Onde tu mora',

Tomorrow chego,

Pro outro lado —  l'atrás

De morro ardendo — brasa

Dentro do mar.

 

Onde tu mora' —

É tua morte num nascimento? —

'Seje bestia! —

Canção que deixa

Bico com marca.

 

 

 

 

 

 

DO INIMIGO NATURAL

 

prainha

    de pescadores

virada do avesso

             por uma onda

 

    hosana hosana sempre

                                por esta catástrofe

                                 tão à toa

 

                                                  casinhas de crustáceos

                                                       à beira-mar

                                                 tragadas no embalo

                                                                        de krakatoa

 

 

 

 

 

 

SENTIMENTOS DE UM LUGAR NOVO

 

Atrás da minha porta sem tranca

Solto o olhar de ver os astros

Nos livros da minha estante

Me orgulho deles

 

E solto a vista pela janela

E passo por cima de casas e árvores

Ao chegar pelos morros de claras barrigas

Deito na cama

E baixo as pálpebras

 

Estou num buraco onde vivo

Onde todos poetas viveram

Onde todos estão vivos

Daqui  tenho as paredes

Que não me prendem

Nem têm pintura

Tenho a visita

Das lagartixas

Minhas amigas

Lá está uma

 

 

 

 

 

 

ESPERANÇO DAS BOAS-NOVAS

 

O martim-pescador grande

Espera pacienciosamente

Um peixe que nunca vejo ele pescar

 

Penacho nele paira imóvel

Pendurado até nas costas

Robin Hood de pé numa pedra

 

De pé numa pedra

Tenho eu meu topete

De aprender esperar

Por toda a vida um bom poema

Que fisgue

De mais simples a mais culto

E faça eles tudo amigos

 

Desse assim

Sem nada de pesca

O pássaro rouba do sem medido

Amanancialmento da natureza

Algo que eu é que não tenho

E que a mim me presenteia

Com um algo que meu que não é

E que

Disso

No conseguinte

Pra o coração e o entendimento

Dum seguinte

É a lei dar de presente 

 

 
 
Adrian'dos Delima (Canoas/RS, 1970). Pseudônimo de Adriano do Carmo Flores de Lima. Poeta, tradutor e compositor. Cursou Bacharelado em Letras, Habilitação Tradutor, na UFRGS, onde pesquisou também JCM Neto e foi um dos editores do jornal "O Falares", dos estudantes de letras da universidade. Não pôde concluir o curso, foi desligado da pesquisa e escanteado da edição do jornal por quem detinha o controle das verbas levantadas, preocupando-se daí para diante somente com a sobrevivência e com a criação artística. Certa vez, deixou de publicar um livro através de órgão público, por não aceitar a redução do número de páginas. Sempre se considerou, verdadeiramente, um marginal, tendo participado também de grupos marginais de poetas que jamais publicaram, a não ser em antologias, jornais ou fanzines — como ele mesmo, que foi editor, junto a um desses grupos, de um fanzine fotocopiado, chamado "Manifesto-Ato". Atualmente, faz algumas anotações impulsivas no blogue Rim&Via [ http://partidodoritmo.blogspot.com ].