Precisamos conhecer mais a nossa história. Quem foi o major Teixeira Nunes, negro-mulato nascido em Canguçu, comandante do 1º Corpo de Lanceiros Negros da Revolução Farroupilha? E o negro-mulato Mariano de Matos, depois ministro e presidente interino da República de Piratini, que propôs a abolição da escravatura? Por que o ministro negro-mulato Domingos de Almeida não se percebia como negro? Mulato, designação anterior dos filhos de mouros com portugueses na Península Ibérica, era o termo usado na correspondência farroupilha. E Vicente da Fontoura, o escravocrata-mor, por que se exaltava contra Teixeira Nunes, lanceiro elogiado por Garibaldi na biografia escrita por Alexandre Dumas?

Os dois corpos de Lanceiros Negros, compostos por escravos resgatados dos imperiais e postos em liberdade, escravos dos estancieiros farroupilhas dispostos a lutar e libertados, escravos escalados para lutar no lugar de familiares dos estanceiros, escravos fugidos de estâncias e charqueadas — e contingentes de índios — eram pessoas que guerreavam apenas em troca de sua liberdade individual, como alguns costumam dizer em termos mercantis, ou sentiam na carne que o Império era o principal sustentáculo da escravidão? Não eram eles os mais interessados na luta e na vitória?

Em Pretos de Peleia (Gente de Palavra, 2020), de apropriado e sonoro título, Renato de Mattos Motta gera muitas reflexões, que aqui apenas sugerimos. Dividido em dois cantos, o 1º traz "O General Manoel Padeiro", narrativa em versos de um quilombola real, ambientada em 1834, na região de Pelotas. Em sua trajetória, Manuel Padeiro obtém um ganho: "aprendi que liberdade/ se cria dia após dia/ que a vida de verdade/ é o fio que a gente fia" (1º, V). O 2º, "Farrapo Preto — Jorge de Ogum, lanceiro negro", busca sintetizar a luta de muitos através de um personagem ficcional.

Ao adotar, em boa parte, o verso de sete sílabas — como João Cabral, em Morte e Vida Severina — Renato não o reproduz simplesmente, mas renova. Além da rima soante, em que tudo coincide a partir da vogal tônica (Iku/ angu, gente/ diferente), e da rima toante, em que só as vogais coincidem (yê/ vencer, oceano/ pranto), utiliza-se da rima aliterante, ao priorizar a similaridade consonantal (mudo/ muda, vivo/ escravo), atento às sílabas átonas finais (justiça/ raça, mulheres/ pares, charqueada/ ferida), recurso que, em linguagem técnica ou dominical, se chamaria de homoteleuto. Assim, e de outros modos, supera o corriqueiro: céu/ cruel, couro/ puro, ocultar/ Okutá, arma/ alma, preto/ perto, pele/ vale, filha/ batalha, vermelho/ velho, Jorge/ longe. Uma estrofe: "trouxemos da velha África/ mais que sangue e pele preta/ mais que tambor que repica/ alma livre e inquieta" (1º, II).

Se o canto do general, também de mulheres, traz um poema com dez e outro com quinze sílabas, "Farrapo Preto" tem quatro poemas quadrissílabos, que impõem seu ritmo, lembrando pontos cantados afro-brasileiros: "— Jorge, guerreia!/ da lua cheia/ Ogum saúda/ — força te acuda!" (2º, II). O ambiente sobrenatural é recriado: "diz: — Ogum yê!/ guerra vão ter!/ coragem filhos!/ lutem com brilho// mais vale o sangue/ do que a canga/ mais vale a lida/ do que a vida" (2º, VIII). E há lugar para imagens: "O sol clareou o silêncio/ sobre o quilombo vazio" (2º, IX).

Pretos de Peleia surge ante dias em que o protofascismo racista-entreguista desgoverna. A leitura amplia-se, "mostra pro monstro o seu fim" (2º, IX). Jorge "vai por seu povo/ sempre de novo/ traz a justiça/ pra sua raça// fera no chão/ lança na mão", até que "mata o dragão" (2º, X).


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O livro: Renato de Mattos Motta. Pretos de peleia. Com ilustrações do autor.
Porto Alegre: Gente de Palavra, 2020, 80 págs., R$ 40,00
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dezembro, 2020



Sidnei Schneider é poeta, ficcionista e tradutor. Publicou De rua e sangas (2018), Andorinhas e outros enganos (2012), entre outros.


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