Primeiro livro de poesia para adultos de Christian David, autor de vários livros de sucesso para crianças, Poemas de não amor (Patuá, 2019) vem marcado pela perda da pessoa amada e sua difícil superação. A voz poética — não necessariamente o autor dos poemas — luta contra o sofrimento e a melancolia para se libertar de um amor dilacerado.

Entre a família de obras que lhe correspondem, vem à memória o romance Os sofrimentos do jovem Werther, de J. W. Göethe (1749-1832), precursor do romantismo ocidental, acerca de uma paixão tão arrebatadora quanto irrealizável, que provocaria epidêmica comoção entre a juventude da época, tão a sério levou-se a sua leitura. Ou o poema "El desdichado", do francês Gerard de Nerval (1808-1855), aqui na tradução de Manuel Bandeira, "É morta a minha estrela, — e no meu constelado/ Alaúde há o negror, sol da melancolia", e na de Alexei Bueno, "Meu único Astro é morto, e o meu alaúde iriado/ Irradia o Sol negro da Melancolia". Ou ainda, para nos aproximarmos no tempo, o poema "Do azul que ainda busca seu rosto", do romeno Paul Celan (1920-1970), na tradução de Cláudia Cavalcanti: "Deslizas pelos meus dedos, pérola, e cresces!/ Cresces como todos os esquecidos./ Deslizas: o granizo negro da melancolia/ cai num lenço, todo branco pelo aceno de despedida".

Para bem situar a obra de David, examinemos o que alguém já disse sobre a poesia em que um eu, inventado ou não, expressa a si mesmo — o chamado lirismo. "O conteúdo de um poema não é mera expressão de emoções e experiências individuais. Pelo contrário, estas só se tornam artísticas quando, exatamente em virtude da especificação de seu tomar-forma estético, adquirem participação no universal", escreveu Theodor Adorno, em "Palestra sobre lírica e sociedade". Mas também, logo a seguir, que "Da mais irrestrita individuação, a formação lírica tem esperança de extrair o universal". Nesse caso, "a relação do eu com a sociedade é tanto mais perfeita quanto menos tematizada pelo poema: o não social do poema acaba sendo o seu social". É o que busca Christian David no seu livro.

Vejamos alguns versos, a título de exemplo: "Injusto teres nascido assim/ com tantas armas/ e eu com essa cara de alvo", pois "fico prisioneiro fiel/ agradecidamente infeliz/ vivendo só de água e ilusões". Ou estes: "perder o nosso restaurante/ eu aguento sem reclamar", mas não "aquele punhal cravado bem fundo/ que só as melhores confidentes/ (e únicas) podem cravar". A descrição do infortúnio é aguda: "Engulo teu olhar/ como o náufrago a água doce". Tudo dói: "A palavra torta entrou reta em mim". Em determinado momento, inicia-se tenuamente uma reflexão autocrítica, quando a voz poética se vê como "um velho manco/ Que insiste em apoiar-se na perna machucada".

Por sofrer tanto, tal voz sonha cortar-se um mundo de nuvens, como se a vida não tivesse percalços: "Mereço que até o fim dos dias/ eu receba refrescante trégua,/ anseio pelo que é só ilusão!" Mas no poema seguinte já percebe a ratoeira: "Armadilha para este velho roedor de sonhos/ e ilusões". Quando espera não se olhar no espelho e evadir-se da realidade, tememos que jamais recupere a serenidade: "melhor a ignorância fingida/ do que a verdade órfã".

A dificuldade, expressa em versos como "o sangue é bombeado/ ao invés de circular/ se esvai para o teu lado/ me deixa fraco, sem ar", ao invés de propiciar a superação da perda, conduz a um desejo impossível: "Dessa forma o que eu proponho/ é que estejas sempre por perto,/ que alimentes o meu sonho/ por transfusão de afeto". O apagamento do real é também proposto à pessoa amada: "Esquece do mundo no meu abraço" e "Vem depressa, aperta o passo,/ o tempo anda, o tempo passa". A solidão não é pequena, vivida numa pouco elevada formação circular, mais propriamente um buraco, no meio do oceano: "fico perdido neste atol".

Quando surge certa dose de humor, a superação parece começar: "Nasci insatisfeito/ e não há nada que me satisfaça./ Será que eu tenho jeito?/ Será que isso passa?" e "Nada me traz conforto./ Ninguém ensina a receita./ Será que depois de morto/ a minha vida se ajeita?" A voz poética, em sua luta contra a dura pedra da perda, reflete e acusa seu próprio romantismo, relativo ao modo de ser originado deste movimento literário: "Não me é permitido./ Não posso amar./ Aos nascidos românticos/ só é permitido sofrer/ com a pretensão do amor". E a brincadeira, como às vezes dizem os poetas, da terminação do verso com palavras proparoxítonas — músculo, espasmódico, ósculo e mácula — precedidas pela palavra cardíaco, ao gerar algumas repetições consonantais em /m/, /k/, /l/, e vocálicas em /o/, /u/, /a/, já traduz outro clima.

A suavidade enfim se mostra: "Descobri nos teus cabelos/ o cheiro dos sonhos de infância/ a cor do negro poço de mistérios/ a clara luz da alegria./ Posso tocar?" Igualmente, neste quase haikai ou haikai brasileiro: "Acabou o dia/ e eu nem te disse/ metade do que eu queria". Ou neste outro: "Te procuro/ Na multidão de rostos/ só o teu é amanhecer". Então, ao constatar a principal contradição que a habita, a voz poética passa a declarar "Ordem de despejo": "Morreste pra mim/ mas teus fantasmas/ ainda habitam meu sótão". E, também, um sentimento difícil de admitir, "Te odeio em segredo". O que, evidentemente, implica alguma sutileza, descartadas as repugnantes ações daqueles que se utilizam da violência contra quem diziam amar.

A visão mais distanciada insinua a solução, ainda que o sugerido não seja uma ação própria: "Queria que fosses embora com a dor que me causas". A voz poética, menos lamentosa, começa a beirar o real: "Quem dera fosse fácil consertar o amor". Até chegar a dizer que "Os pedaços eu juntei,/ as cicatrizes eu curei./ Mas o brilho no olhar sumiu./ E agora?", para então projetar um futuro amor, ainda que não identificado: "Como ver de novo o que ninguém mais viu?" Entre dores, enxaquecas e morbidez recalcitrantes, a sombra da pessoa amada não dá descanso e ainda persegue o infeliz. No entanto, a ausência passa de negativa a positiva: "Sonho que não te vejo/ sonho bom.../ sonho bom..."

Passadas tantas agruras, a voz poética clama merecer um pouco de tranquilidade e leveza e se diz crente de novo. Afora o aspecto religioso, é de se perguntar: no que, num novo amor?

Agora podemos ampliar a família de obras na qual a poesia de Christian David se insere. Como no início, não referimos influência ou diálogo criativo, mas similitudes. Em Uma arte, a poeta Elisabeth Bishop (1911-1979), norte-americana que chegou a viver no Brasil, trata de perdas. Na tradução de Paulo Henriques Britto, o primeiro verso diz "A arte de perder não é nenhum mistério", enquanto o último sugere a escrita como superação, "por muito que pareça (Escreve!) muito sério". Ou a leitura, diríamos aos leitores.



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O livro: Christian David. Poemas de não amor.
São Paulo: Patuá, 2019, 70 págs., R$ 40,00
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julho, 2020

 

 

Sidnei Schneider. Poeta, ficcionista e tradutor em Porto Alegre. Publicou os livros Andorinhas e outros enganos (Dahmer, 2012), Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer, 1999), Versos Singelos/José Martí (SBS, 1997) e Poemas 1987-1992 (Artesanal, 1992). Participa de Poesia Sempre (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2001), O melhor da festa 1 e 2 (FestiPoa Literária, Porto Alegre, 2008 e 2009), Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, Florianópolis, 2011), Poesia Gaúcha Contemporânea (Assembleia Legislativa/RS, 2013) e outras antologias. Publicou o livreto De rua e sangas (Maisumascoisas, 2018).1º lugar em poesia no Concurso Talentos, UFSM, 1995; 1º lugar no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu, UFRGS, 2003; Prêmio Açorianos de Divulgação literária, Prefeitura de Porto Alegre, 2008. Membro da Associação Gaúcha de Escritores.

 

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