Haveria em algum lugar um texto que o leitor pudesse tomar inteiramente como imagem de um movimento contínuo? Um texto que respirasse desde o âmago de sua porosidade transubstanciando em si mesmo as disposições primeiras do ser, isto é, as exigências singulares, intransferíveis, de um corpo? Seria então a realização de um prodígio, de um sonho antigo que em certo sentido a literatura sempre almejou, que é o de configurar-se em um plano bidimensional levando às últimas consequências sua motivação simbólica de tornar-se anagrama de um corpo misto e plural, amálgama do autor, do leitor e da linguagem em planos sucessivos de presença e ausência, memória e esquecimento, visível e invisível? Pois é desse modo que ela, a literatura, à revelia dos gêneros, se inscreve no real, na impessoalidade absoluta, em nome de uma soberania incontestável, de uma inoperância que desafia toda operação assertiva do mundo produtivo do capital e da homogeneidade do sentido, o sentido utilitário, servil, mancomunado com tudo o que é nocivo ao corpo e aos processos de subjetivação. É desse modo, enfim, que a literatura se produz em nome do inominável mesmo, pois não se pode definir totalmente este impulso, este gesto intempestivo por meio do qual a experiência humana se faz poética, dotada de sensibilidade e razão (ou além da razão) conforme os auspícios da sorte e do azar, do saber e do não saber, e resgata para o ser descontínuo que somos um sentimento de continuidade.

Com isso, a força da escrita atenuaria toda tendência à descontinuidade em que, por sinal, somos feitos e desfeitos, refazendo as amarras do ser sobre o fundo imanente do tempo. A bênção da experiência poética é que ela nos devolve os ritmos que a vida nos ensina (e assimilamos até a medula) ainda mais vibrantes, assim como nos restitui a promessa do ápice no sonho materializado pelos signos, já que no charivari cotidiano dos seres e coisas a vida costuma tomar tudo de volta aos corações e mentes, e não raras vezes à flor da pele e dos ossos. E é bom que a poesia nos faça sonhar acordados, mantendo o desejo ereto em vital ebulição. A poesia que para Rimbaud enceta a estrutura impossível e etérea da eternidade mesma, ou seja, quando o poeta atinge o sublime misturando nas mãos o mar e o sol poente, ainda que este movimento implique sua autodevoração. Afinal, o ápice é isto.

Torna-se então legítimo ao poeta (semeador de rastos), sujeito descontínuo como qualquer outro, e à revelia de seu posicionamento no mundo, reverter o caminhar trôpego, as intempéries do trajeto nos confins da linguagem, na linha divisória entre o legível e o ilegível, o razoável e o absurdo, para retomar o sentido e a intensidade ao lúcido fio de Ariadne. E se "há uma pedra no meio do caminho", como diz o célebre poema drummondiano, ele irá contorná-la ou saltar por cima como um ator mambembe, mantendo o ritmo e as disposições afeitas ao impulso atávico do que se quer contínuo, não importando as consequências, nem mesmo a consumação de si. Afinal, somos seres descontínuos, afirma Georges Bataille, e vivemos no vácuo da continuidade perdida, sendo por isso mesmo que buscamos um ápice. Para tanto, há o erotismo, o êxtase, experiências do excesso dispendioso nas quais se pode, excepcionalmente, atingir esse ponto indefinido, suplementar e essencial da vida. Claro, há também a experiência poética, e através dela a chance de renovar os vínculos entre o simbólico e o real, ou seja, produzir nas filigranas do ser da linguagem outras reconfigurações para o que nos cerca, nos habita, nos excede, e nos constitui enquanto tais interna e externamente. No entanto, esse tour de force que exigem certas relações de leitura pode ser vertiginoso e nos deixar olho a olho com o furacão do impossível. Ora, não é o real o terrível de nosso tempo? Ou talvez fosse mais acertado dizer que todo artifício da literatura e da arte se efetuou desde sempre para atenuar, neutralizar, desativar o impacto do real até sua total transfiguração e assim convertê-lo em potência amiga, solidária, em forma propulsora e força providencial?

Desse modo, um texto pode desencadear no leitor uma relação de continuidade que eventualmente o põe no auge, mantendo aceso por algum tempo o júbilo do instante nesse acordo intransferível entre sujeito e objeto, sentido e intensidade. E quando isso acontece, a distinção entre os primeiros desaparece, e nos últimos, o segundo termo absorve o anterior, levando-o além do limite.

Aliás, se uma relação de continuidade se dá no plano imanente de qualquer leitura (do contrário seria impossível ler um texto), há obras que fazem dessa condição seu clamor, sua razão de ser, pedindo adesão completa do leitor ou nada. Liberdade ou morte, isto é, abandono imediato da obra e recaída na recorrência do descontínuo, tal o movimento para baixo do braço de um carrasco ou de uma ordem severa do superego: "largue imediatamente este livro". Sim, este livro, que pode muito bem ser Os esgrimistas de á-peiron, de Luís Serguilha, que o leitor tem em mãos. Justamente, a exigência deste autor incomum é abolir a descontinuidade em função de uma escrita poderosa que em sua base e para todo efeito toma o continuum por princípio.

É assim que em nosso tempo por demais fragmentário, abduzido por imposições midiáticas e dispositivos virtuais que nos arrebatam a atenção e nos exigem além da conta, mas apenas para nos conectar com o mundo suprimindo no fundo o que nos é essencial (encurtando as distâncias e enfraquecendo as relações), a escrita de Luís Serguilha se impõe como contrapartida instigante, intransigente, inegociável, e que por isso mesmo se ergue em máquina de guerra contra a comunicação fácil e ingênua, os estereótipos, as recorrências da logosfera em que vivemos e amiúde reduzem sensibilia e sapientia à miséria. Sim, porque estamos entupidos de detritos linguareiros os mais diversos (infelizmente, não pela qualidade) até as entranhas. E não há como deixar de assimilá-los, de olhos bem abertos, ou mesmo dormindo. Em todo caso, nada ou raramente chega aos sentidos como "música das esferas".

Decerto, há vários modos de se empregar os signos, formas, sonoridades, dicções, por meio de códigos igualmente distintos e a literatura faz disso seu reino, seu paraíso, seu inferno. No entanto, nem mesmo ela, atividade secular do lógos codificado em gêneros, está imune às apropriações pelas instituições do discurso e formas do poder, cedendo enfim ao esvaziamento gradativo de seu ser. A propósito, o poder, ensina Roland Barthes, concentra-se na língua, encontrando nela suas formas de domínio e expansão viária. O embate do poeta, no limite, é com a língua mesma.

Desde muito tempo a poesia foi recrutada pela retórica, e deve andar na lei, pois costuma tripudiar com esta ciência magistral; tem que ser vigiada porque no fundo pode disseminar operações desviantes, tirando o homem do sério e, por extensão, a sociedade e a cultura (que morrem de medo do heterogêneo e da soberania improdutiva da invenção poética). A poesia é desvio de sentido? Excesso de linguagem? Delírio subjetivo? Ela então é loucura. "Só louco, só poeta", no dizer de Nietzsche. Sim, as instituições são vigilantes e estão em toda parte, inclusive no ar venenoso que respiramos. A comunicação, a fala assertiva da mídia, da ideologia, dos saberes instituídos dizem e a poesia desdiz. Faz falar diferente do habitual, faz falar para se ouvir o que não se pode ouvir, o que permanece interdito, ou porque no fundo é indizível. Ela contrapõe o pensamento como autoridade vital do corpo e da subjetividade à fala estéril (quando não histérica) e reprodutora da comunicação e às verdades cristalizadas dos discursos e instituições do poder. Só a poesia, falando por todos os gêneros literários, é capaz de reverter esse processo espoliante em favor da vida, desobstruindo a língua, renovando suas formas e usos para atender aos clamores do ser. Só a poesia ouve e faz falar as margens. E se não faz isto, reitera o retorno do mesmo, chove no molhado, ilumina o chão ensolarado para a marcha de botas anacrônicas como no Brasil de hoje, botas cumuladas no alto por cabeças ocas, ou ressentidas, ou violentas, cuja energia não faz do signo valor positivo, não transforma a matéria viva da linguagem em afirmação de vida (mas de morte), entrevando o pensamento, a língua e, no limite, o próprio ser. Não será por temer o sopro visceral das margens que desestabilizam o atual? Ora, a poesia não incomoda tanto, pois seu sangue não reflui no mainstream, mas corre nas margens aos borbotões. À razão normativa e ao saber instituído como verdade da linguagem (que costuma passar por verdade coletiva dos corpos e almas) basta que a literatura reitere as convenções de gêneros, os valores literários consagrados pela tradição, ou atenda as demandas mercadológicas, e com isso o socius perde sua substância vigorosa e vital. Assim, a poesia não passa de linguagem nula, ou mesmo servil. Como um gorila em sua jaula, o animal da beleza é prisioneiro do gosto e dos padrões estéticos que as convenções regularmente elegem como ideal. Inócua porque bela. Bela porque reconhecível, manipulável, domesticável, tal uma aranha de prata na lapela.

Para refazer sua têmpera e reatar os fios na continuidade (como aprovação do corpo, dos processos de subjetivação e da vida mesma), ela teria que fugir de tudo isso e ser a poesia que "não faz gênero", que tripudia com este, ou que está além dele mesmo, renovando seus vínculos com o real ao revigorar internamente, no cerne da língua, as formas e os modos de produção simbólica para expressar as novas demandas do homem e seu tempo, as quais não são (ou raramente) atualizadas pelos poderes e instituições do discurso (a libido dominandi). Afinal, as margens vêm à tona para isto; as margens configuram o impossível na latência dos sonhos. A poesia faz sua teia e inspira uma vida melhor.

Desde seus primeiros livros, Luis Serguilha é um artífice desse empreendimento ousado, irredutível, cujo grafo singulariza o continuum. Pode-se achar que ele escreve sempre o mesmo livro multiplicado ao infinito e isso não é fácil contestar. Mas seja feita uma ressalva destacando um paradoxo. Não é bem o mesmo livro que ele escreve interminavelmente em seu processo inventivo, mas um livro continuamente outro. De fato, se com isso se pode considerar sua escrita obsessiva, ela também é única, incomparável, já que se renova a cada livro, não pela recorrência do mesmo, mas pelo retorno radical da diferença.

Não é fácil para o leitor, nem mesmo os familiarizados com as estripulias da linguagem poética, assimilar o conjunto desta obra, pois ela faz do inassimilável um valor, uma forma de potência, da primeira à última linha, parecendo jamais render-se ao olhar sequioso (ou estupefato). É assim que cada livro de Luís Serguilha continua no seguinte como que para abolir o anterior, ou incorporá-lo, mantendo-o subjacente à maneira de um palimpsesto. Desse modo, eles se sucedem em camadas semióticas que vão se sobrepondo umas às outras no plano imanente do continuum. A bem dizer, o poeta parte, não exatamente de onde parou, mas da instância espaço-temporal que se abre entre um livro e outro, a margem fecunda em que instaura seu corpo a corpo com o texto, e que responde pelas relações entre matéria e tempo, vida, erotismo e morte, na experiência-limite com seres, coisas, pensamento e linguagem.

Mostra-se assim inesgotável o fluxo serguilhano, não por acaso configurado em corpo, animal-palavra, poemanimal. Sim, porque "há uma animalidade bastarda que nos atravessa". A bastardia é o grito de guerra contra as formações de parentesco de uma civilização doente, redutora não apenas de seu corpo e alma, mas também de seu pensamento e linguagem, moldados em falas anteriores e reforçadas pelas atuais, arraigadas a seus valores e crenças, grandiloquentes no volume e no eco, mas carcomidas pela impotência. Por certo, não é esta continuidade que interessa, devendo ser descontinuada em favor de outros apelos, marginais sobretudo, e que fazem do atravessamento seu método de contestação em luminosa sintonia com o tempo. Esta outra e primordial continuidade demanda outros constructos à linguagem do ser e ao ser da linguagem. Eis porque a carnalidade animal é o híbrido impuro que reinventa o homem através da palavra. São alguns dos sinais que a poesia de L. S. parece anunciar aos brados à nossa ignorância do futuro. Seu ser é um devir que encontrou no continuum sua forma de materialização efetiva. E o que é o contínuo senão a conquista da a-topia como espaço-tempo do poético?Com isso, leitor, autor (esse fantasma) e obra respiram em um só corpo para o que der e vier.

É bem verdade que essa operação visceral com tantas exigências, desafios, idiossincrasias sêmicas, pode tanto atrair o leitor para si em uma luta corporal luxuriante e que só é possível enquanto experiência-limite, como, ao contrário, afugentá-lo para sempre, devolvendo-o ao domínio das relações familiares com a literatura, em que ele pode consumir com segurança e facilidade tudo o que lê. Em uma terminologia barthesiana1, o leitor não encontra em Luís Serguilha "textos de prazer", nos quais a leitura é produzida em permanente sintonia com a tradição literária e o leitor pareça sempre reconciliado com ela, seu cúmplice feliz, movendo os olhos em ritmo agradável e a seu controle, como em um passeio matinal pelo bosque, sem raios e trovoadas. Ele pode até se perder nos "bosques da ficção", como diria Umberto Eco, certo de que encontrará sem dificuldade o caminho de volta. Pois esta analogia não funciona com os textos serguilhanos que tiram completamente o leitor de seu lugar de conforto, fazendo-o defrontar-se como uma floresta inóspita, tempestuosa, sempre ameaçadora de relações pacíficas com a forma, a sonoridade e as redes semânticas, e que no fundo parecem contestar suas noções de lógica, sensibilidade, lucidez, e a própria fé na razão. O "mau tempo" que L. S. introduz obriga o leitor, se quiser atravessar esse cabo das tormentas, a seguir desamparado, sem abrigo, só podendo aferrar-se ao fascínio com que vai assimilando o impacto semiótico dos surpreendentes blocos de sintagmas que se sucedem com soberania no plano do continuum. O leitor mais atirado ou intrépido avança, encorajado (ou encantado) pela força descomunal dessa escrita e que só se deixa revelar aos poucos em um jogo de claro-escuro ou esconde-esconde, na intermitência dos sentidos, nos núcleos aforísticos, nas descrições inusitadas, nas definições abruptas, à queima-roupa, como em um pugilismo de sintaxes (quase sem defesa para o leitor). O regime de leitura que exige a obra serguilhana é o da experiência-limite do saber com o não saber, do sentido com a perda, em meio ao gozo e à dor da linguagem, do tudo e do nada. O desafio desse continuum é ler sem perder o fôlego, sem sair da pista estrelada de signos, mesmo que de quando em quando o leitor fique sem rumo e se veja nu em uma encruzilhada de relâmpagos.

Seguindo ainda Barthes, os livros de L. S. só poderiam ser lidos como "textos de gozo" (jouissance), justamente aqueles que desestabilizam o leitor em sua relação com a cultura ou com aquilo que responde por ela convencionalmente e de acordo com o saber instituído. Com essas relações rompidas, ao deus-dará da linguagem, o sujeito pode entrar em époché, termo que os antigos gregos empregavam para os que sucumbem inexoravelmente a um efeito de suspensão. Curioso efeito este do continuum: o apagamento do sujeito num plano infinitesimal de escrita.

É assim que a disposição do grafoserguilhano exige uma adesão irrestrita da parte do leitor, como em uma economia de dom, economia libidinal, em que um corpo se doa na escrita e outro na leitura em uma operação prodigiosa de trocas simbólicas ao rés do olhar. E isso ao fio da navalha, ao longo de uma fronteira que pode ser a da lucidez com a loucura, ou da razão com a sem-razão em um labirinto de signos, mas criticamente, à maneira de uma esquizoanálise, ou, mantendo aqui a semântica de Deleuze e Guattari, à luz do saber subterrâneo e rizomático do texto. O subterrâneo como índice de espacialidade figural e o rizoma como modus operandi do continuum.

Em seu mais novo livro, Luís Serguilha se inspira em um dos primeiros e mais fundamentais conceitos da filosofia grega antiga, o ápeiron ("ilimitado", ou "sem-limite", ou "indeterminado", "infinito"), de Anaximandro de Mileto. De fato, no tocante ao poema serguilhano, o termo não poderia ser mais apropriado. O ápeiron, diz Aristóteles, "não tem princípio mas parece ser princípio das demais coisas, e a todos envolver e a todos governar2". O ilimitado, degenerando, gera o ser descontínuo e seus signos, e com isso os que conhecem o ápice e seu fim. O continuum, enquanto dura, é um operador do ápeiron e responde pelas disposições do sem-limite no domínio dos seres, coisas e linguagens. É do ápeiron que o movimento contínuo da escrita tira sua potência ou dela participa (sua imagem especular é o silêncio); é nele, pedra filosofal, que a língua afia sua lâmina. Ao continuum cabe atualizar a potência do ilimitado acima do bem e do mal. É o máximo que ele consegue fazer, e é exatamente esta a sua função, já que todo ato efetuado em um plano contínuo só pode descontinuar-se consumando-se na experiência mesma de sua duração. No domínio sensível e material dos seres, ou melhor, da vida mesma, concreta e simbólica, e em nome do ápeiron, o poema de Luís Serguilha imanta em luz jubilosa os sabres, espadas, floretes, cimitarras e que tais, para a esgrima revigorante dos olhos.

No código dessa arte lusitana (ou luso-brasileira?) importa ferir, cortar, consumar o sem-limite na carne, oferecendo a morte prêt-à-porter do lógos para a glória estética do corpo, da vida descontínua no continuum. Em suma: é o ser mesmo da poesia que aqui se põe em jogo. O ápeiron é Deus? Ele então "é a espessura do silêncio e da porfia do artista no meio do caos".

 

 

Notas

 

1BARTHES, Roland. Le plaisir du texte. Paris: Éditions du Seuil, col. Points, 1973, pp. 25-26.

2ARISTÓTELES, Física, III, 4. 203 b 6 (DK, 12 A 15). Doxografia de Anaximandro de Mileto. "Os pré-socráticos", in: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 21.

 

 

março, 2020

 

 

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O livro: Luís Serguilha. Os esgrimistas de á-peiron.

[Com um conjunto de desenhos de Francisco dos Santos]

São Paulo: Lumme Editor, 2019, 84 págs., R$ 44,00

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Contador Borges, poeta, ensaísta, dramaturgo, mestre e doutor em filosofia pela USP, pós-doutor em teoria literária pela Université Paris-Diderot e em linguística pela USP.

 

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