CENA SEIS

PLANO DE AÇÃO:

 

MARILYN DEIXA A CÂMARA MORTUÁRIA DO QUARTO. A ALMA É UM BURACO. NÃO HÁ NADA DENTRO, MAS ESTÁ DOENDO (COMO NUNCA). QUE DELÍCIA, ELA VIBRA: O ÊXTASE É O EFEITO COLATERAL DO SOFRIMENTO. O QUE É VERDADEIRO? O QUE É FALSO? ABRE O ESTOJO DE MAQUIAGEM. PARECE A MESMA, MAS NOTA UMA PEQUENA NÓDOA NO OLHO ESQUERDO COMO UM PLANETA DESCONHECIDO: O CORPO TEM SUA PRÓPRIA LÓGICA. NO BANHEIRO, A VERTIGEM. ALGO SEU ESCORRE PELO RALO. BREVE EXERCÍCIO DE AUTOPIEDADE. SABE QUE É O ELO ENTRE NORMA E MARILYN, A DISCÓRDIA. ABRE A GELADEIRA. DEVORA UM DOCE. PENSA NA CRIANÇA QUE FOI GIRANDO NO TEMPO COMO UM PEÃO INAPREENSÍVEL. REMINISCÊNCIA DE UMA APARIÇÃO NA TV. CENÁRIO RETUMBANTE: FELICIDADE POR FORA (BELA VIOLA). ANGÚSTIA POR DENTRO (PÃO BOLORENTO): EROTISMO X POLÍTICA. ACHA QUE NO DIA A PLATÉIA DIVIDIU-SE ENTRE APLAUSOS COMPULSIVOS E O MAIS CONSTRANGEDOR SILÊNCIO. MOMENTO DE REFLEXÃO COM OLHOS DILATADOS. ESCREVE UMA CARTA PARA NINGUÉM. GRAVA SEU MONOGRAMA COM SINETE DE OURO. SORRI POR UM INSTANTE. FAZ CARETA PARA SI MESMA. FICA SÉRIA (MUITO SÉRIA). PAUSA. APELO PATÉTICO AO TERRÍVEL DEUS HINDU. PENSA TER TODOS OS MOTIVOS PARA UMA DEVASTAÇÃO CÓSMICA. NOVA REVELAÇÃO SOBRE A MORTE.

 

 

Ontem acordei sufocada. Tentei respirar e não pude.

Não sabia como. Logo eu, um corpo que vibra e diz sim?

Tornei-me um impulso, doando-me sem ver a quem,

amontoando súplicas sob a camisola nua.

Mas havia algo imenso: o sol estalando o chicote

de intolerável júbilo.

Por que me atrai o carrossel do sono?

Por que me apraz o que acelera as partículas dos dias e noites,

prometendo a mais genuína hecatombe?

Sinto dor nos cabelos: são falsos, mas doem.

Tudo em mim é falso: o riso, a fala, o dom. Menos a dor.

Mas estou me excedendo de novo; desculpe, serei mais direta:

nem de longe sou deusa, estou mais para gata siamesa

ensimesmada, o que, aliás, dá na mesma.

É que não resisto a este método quando estou a ponto de (...)

Você sabe; você domina a arte de ver.

Quanto a mim, vou desligar o que move e ficar suspensa.

Não, vou cantar com toda força das entranhas,

lindamente, alçada em salto 15 verniz

até o estertor: Mr. President, canto para pequenos

e grandes com o mesmo vigor,

mas vos digo, Excelência, bolo de aniversário

é um confeito para aliviar a morte

com carinho branco suspeito.

Não coma muito. Corrijo: exagere no melado, prefiro,

até o dia seguinte, brand new; ou melhor: juízo final.

Cantarei solta, lôbrega, loba voraz, pelo que sou e não sou

na carne insalubre, lívida, borbulhando na náusea,

belladonna, belladonna, gravemente soprano,

entre a farsa e o drama,

até me tornar um pântano de sol e sêmen,

areia-movediça de minhas feridas

e afundar de vez em mim mesma.

Quer saber quem sou? Um Siva de saias rodadas

e braços alados (ia dizer "lunares", me contive).

Rainha platinada rumo ao cadafalso, cuidado!

Pode ceifar meu pescoço, meu crânio lancinante,

pode jogar no cesto, no lixo, não ligo.

E assim, moço, aos poucos me defino (definho)

e assino embaixo com sangue:   

Prodígio.

 

 

[De A cicatriz de Marilyn Monroe. São Paulo: Iluminuras, 2012]

 

 

 

*

 

Chuva forte, você com medo. "Não se preocupe", ponderei, contando os segundos no relógio de pulso, certo de que nenhum raio cairia por perto naquele instante. Que um clarão solitário acompanhado segundos depois de um estrondo não muito forte era sinal evidente de que a lâmina celeste passara bem longe de nossas cabeças, considerando-se a velocidade da luz, verificável a trezentos metros por segundo a partir do lampejo na usina de cores e parando ao ouvir o trovão. Como contei até quatro, o epicentro da fúria de Urano estava a mais de um quilômetro de distância. "Este raio não é o deus ex machina que rouba a vida da heroína do romance. Em outros termos: não serei seu Sade, nem você minha Justine". Você sorriu e pude ler nos seus olhos a insuperável síntese das bonanças.

 

 

[De O reino da pele. São Paulo: Iluminuras, 2003]

 

 

 

 

 

 

 

 

O CÉU DO ARIZONA

 

Para Tula e Sebastian

 

"A solidão se alimenta de restos sob o céu do deserto".

Olhos fechados, não vi os escorpiões entrando na sala

sem pedir licença como soldados brandindo armas,

imagino, nada amigáveis.

E você ainda me informa que sua avó quer aprender francês

antes de ir para a clínica de recuperação?

O que posso fazer?

Não compreendo a língua dos animais peçonhentos,

se é que com eles se pode esgotar as vias de negociação

ou agitar a bandeira da paz antes da batalha final.

De monstros só conheço os seres jurássicos

de meu jogo de armar

e assim mesmo esquecidos nos armários gelados da primeira infância.

Para piorar neste sábado o telescópio quebrou

e só dá para ver os efeitos do eclipse a olho nu

por sinal só encantador pela cor vermelha de lua suja

como a da terra com vergonha

do que fazem com ela.

A lua é um imenso brilhante no território ianque.

Mas não há como sonhar com ela sem tornar ridículo o poema

diante dos pulos moleques de Armstrong.

"Com mil crateras, o que fazer agora?"

O resto da noite erramos nas ruas sem neve num frio

de não sei quantos graus fahrenheits.

"Vamos voltar", você disse, "já passam das dez

e se não comerem logo os cães vão latir sem parar".

Mas cães não ligam para lua, geopolítica ou relações de força

e nem querem saber como se diz sol em francês.

Pode ser que se assustem com escorpiões e aranhas,

mas não como eu e você.

 

 

 

 

 

 

À ESPERA DE ULISSES

 

Um a um vão caindo os simulacros de Ulisses

com bastante cera para que não possa ouvi-los

em falsas promessas a Penélope.

Esta mantém-se fiel porque não pergunta:

melhor o fantasma real do que as cópias

sem  graça do marido. Ulisses, por onde anda

agora, Ulisses, em que onda se esconde?

Em qualquer parte, quem sabe, fora

do mapa, nas regiões internas do mito,

o rosto corado pelo mar cor de vinho.

Ulisses, que mal lhe pergunte e pelo bem-

querer que ela guarda sob o travesseiro

entre lembranças das travessias do corpo,

do habitar seus meandros. Ulisses, o que traz

em cada mão um oceano e Calipso

a seus pés toda ouvidos qual uma concha

que o mantém  prisioneiro. Cronos lhe prateia

os cabelos, só dando em troca seus feitos.

Mas a Ulisses só importa a viagem,

como ao poema, toda paciência, algum sacrifício

e, reza a lenda, nenhum  heroísmo.

 

 

[Poemas inéditos]

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©tom wesselmann]

 

 

 

 

Contador Borges. Poeta, ensaísta e dramaturgo. Publicou, entre outros, os seguintes livros: Angelolatria (1997), O Reino da Pele (2003), Wittgenstein! (2007), A Morte dos Olhos (2007), Insônia ou A Sombra da Lua (2011) e A cicatriz de Marilyn Monroe (2012). Traduziu livros como Aurélia, de Gérard de Nerval, O Nu perdido e outros poemas, de René Char, e A Filosofia na Alcova, do Marquês de Sade. Deste mesmo autor coordena a coleção Pérolas Furiosas da Editora Iluminuras, dedicada às suas obras.