A história das ideias registra algumas ocorrências, mas não muitas, de estudos devotados a investigar as relações entre poesia e filosofia. A julgar pela escassez dos empreendimentos críticos relativos ao tópico, talvez cheguemos à conclusão de que a tarefa seja, de fato, árdua ou, ao contrário, perfeitamente desinteressante. Uns poucos filósofos (María Zambrano, Hegel, Stanley Cavell, Theodor Adorno, Benedito Nunes...) dispensaram atenção ao problema e outros poucos escritores mais ironizaram a coisa do que a levaram a sério. Jorge L. Borges, por exemplo, diz que a filosofia não é senão um gênero literário. Para Ezra Pound, a logopeia — a dança do intelecto entre as palavras —, essa forma, entre outras, de carregar a linguagem de significados, oferece ao poema as condições para que ele se desvele como um experimento também filosofal; que o poema, dadas algumas condições discursivas, instaure o seu modo de filosofar.


A verdade é

Que o mundo 

Não cabe dentro

Do silêncio


Em alguma medida, Traços (Editora Patuá), de Anelito de Oliveira, parece hesitar entre essas duas frentes. Essa hesitação serve a um cálculo determinado, a um controle da enunciação. Por um lado, seus lancinantes gestos crítico-especulativos afirmam que o insumo originário da filosofia vem de reiterações e algaravias de caráter aforismático, de imagens da aporia, isto é, de modos precários e inventivos de linguagem de que nos servimos para representar um mundo vertiginoso. De outra parte, as ideias encapsuladas nas escassas e ermas palavras de cada poema do conjunto, sugerem ou simulam (porque em arte tudo é engano e suspensão) o nascimento de um inusitado filosofar, isto é, mais do que investigar as interações entre a poesia e a filosofia, o que Anelito de Oliveira faz em Traços é dar uma série de passos de dança em direção a uma filosofia da poesia. 


A cada deslocamento

Um pensamento

Me desloca


O que nos resta é o que permanece esboçado. O que desentranhamos ao fragmento. O que sobra da filosofia como documento. O que o corpo se permite como ensimesmado monumento para o outro, enquanto é afetado por uma sequência de intempéries. O sopro do verso que é do corpo, esse pensamento vivo, que volta ao andamento do poema e que diz que há bastante prova de filosofia em não pensar em nada. A arte da demora — a forma literária da meditação — na brevidade excruciante de Traços: em poesia interessa o que (não) é filosofia; em filosofia interessa o que (não) é poesia. 



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O livro: Anelito de Oliveira. Traços.
São Paulo: Patuá, 2018, 140 págs., RS$ 38,00
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julho, 2020



Ronald Augusto é poeta, autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015), À Ipásia que o espera (2016) e Entre uma praia e outra (2018). Dá expediente no blogue Poesia-Pau e escreve quinzenalmente no Sul 21.


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