[Grupo Cemflores, Mostra de arte Postal, 1981. Da esquerda para direita, de pé: Jair Fonseca,

Murilo Almeida, Marconi Dolabela, pessoa não identificada e Marcelo Dolabela. Agachados: Juca,
Luciano Cortez, Valéria Jacovine, Rubinho Mendonça e Adriana Bizzotto]
 

 

 

 
 

 

 

 

Desde que nosso amigo partiu, tenho colecionado os testemunhos de quem com ele se encontrou pelos caminhos das artes, do jornalismo, da pesquisa, das construções coletivas no espaço público em Belo Horizonte. Colhi para este especial da Germina — Revista de Literatura & Arte a síntese feita pelo designer Claudio Santos Rodrigues sobre o poeta e multiartista que há um mês nos deixou: "Marcelo Dolabela era um hub". Sim, de fato esse virginiano incansável funcionava como um conector: extremamente gregário, Dolabela vivia ativando uma extensa, intensa e diversa rede de pessoas em torno da produção poética, musical, visual, midiática, universitária.

Antítese do "poeta de gabinete", Marcelo rimava poesia com cidade e política, com cidadania e democracia. O ambiente que ele plasmava era banhado pela inquietação e pela crítica, recebendo os ecos do pensamento cultural brasileiro antropofágico e tropicalista. Assim, todos que o frequentaram, e que de alguma maneira ali encontraram alimento para suas ideias, compartilham o interesse pelo que se convencionou chamar contracultura – mas nunca enquanto um pensamento refratário à tradição e à erudição, à cultura popular e de massas, pois Marcelo era também uma enciclopédia, uma espécie de dicionário analógico ou temático que fazia as mais inesperadas conexões e dava notícia de tudo. E se a contracultura era uma espécie de ambiente, as vanguardas artísticas funcionavam como uma âncora, uma forte referência para seu pensamento e ação.

Vivenciei a alegria (e por que não dizer, também a ansiedade, a angústia, o medo, o "tudo ao mesmo tempo agora") de participar da equipe organizadora de um dos inúmeros projetos coletivos mobilizados por Marcelo Dolabela: a coleção Poesia Orbital. Lançada em 1997, em comemoração aos 100 anos de Belo Horizonte, a coleção que reuniu 69 poetas em 62 simpáticos livrinhos, com projeto gráfico certeiro da Glória Campos, foi um experimento muito fértil não só em termos do produto gerado, mas também do seu processo: incrível como Marcelo reuniu seus companheiros de jornadas anteriores, um grupo já testado nos embates da política estudantil e da realização de publicações e eventos, a outros coletivos literários, e também a pessoas "avulsas", mas que ele apostou que poderiam compor bem com o grupo, como foi meu caso.

Eu havia sido aluna do Marcelo numa incrível oficina, chamada Do rock'nd'roll da poesia à poesia do rock, no Festival de Inverno de 1987 em São João Del Rei, e desde então ele tinha se tornado uma forte referência para mim. Participar do processo de produção da Poesia Orbital foi uma oportunidade não só de continuar a interlocução, mas também de exercitar o trabalho coletivo com um ganho a mais que agradeço ao Marcelo sempre: ali foram tecidos laços de afeto que permaneceram. Inesquecíveis as reuniões na casa dos poetas do coletivo Dazibao, Adriana Versiani e Camilo Lara, que infelizmente também arranjou de partir mais cedo. Adriana e Camilo abriram sua casa para as reuniões do projeto que duraram quase um ano, criando um espaço alegre e acolhedor para o coletivo que havia se formado.

Do grupo organizador faziam parte Ana Caetano, parceira de Marcelo na revista Fahrenheit 451; Carlos Augusto Novais e Luciano Cortez, que vinham da jornada da revista Cemflores; e Júlio Emílio Tentaterra, poeta e performer do coletivo Razão de Dois, que também já nos deixou na saudade... O grupo contou também com Maysa Gomes, que vinha dos caminhos da militância política, e com três neófitos como eu — Maria José Bretas, José Pereira Júnior e Emília Mendes. Claro que um projeto grande, de publicação de tantos poetas, contou com inúmeros colaboradores! Entre os mais constantes, Carlos Rodrigues, Jimi Vieira, do grupo performático Vírus Mundanus, Lair Mattar e o artista plástico Gilberto de Abreu, nosso querido Gilbertinho, que também publicou na coleção.

Aqui, acho importante inserir um dado sobre este texto: a despeito de vir da formação em jornalismo, aviso ao leitor que escrevo movida pela memória afetiva e pelo que consegui acompanhar a partir da experiência na Poesia Orbital. Não tenho, portanto, o compromisso de dar conta de tudo — até porque isso estaria muito além das minhas possibilidades. Muita gente participou da coleção, entre artistas, jornalistas, professores universitários e poetas 100%, daqueles que uniram poesia e vida radicalmente, como o caso de Paulo Leão (para quem não é de Belo Horizonte, uma nota: Paulo Leão, já falecido, foi um poeta que orbitava na região do Edifício Maletta. Seu percurso foi inteiramente marginal, vivendo os anos 70 com intensidade, vendendo seus livrinhos pelos bares da cidade. A despeito da sua escolha de vida radical, sempre foi reconhecido como poeta por gente criteriosa).

Do conjunto de poetas reunidas(dos), muitas(os) continuam publicando, recitando, acontecendo. Hoje gosto de ver como Adriana Versiani e Emília Mendes ganharam tarimba de palco. A partir da experiência com o projeto, que envolvia também recitais em bares de BH, a poesia falada tornou-se constante na vida de Adriana, enquanto Emília jogou-se no grupo performático Los Borrachos, criado pelo seu companheiro, o baterista Clôde Franco, do Butiquim Desde 1999, onde aconteceu o recital "Poesia de Sétimo Dia" (também ideia do Clôde, o recital foi um momento maravilhoso de encontros com a obra e com os "ambientes" de Marcelo!). Entre as estreias, gosto de ver como Ana Elisa Ribeiro, à época uma jovem estudante de Letras — mas que desde cedo se sabia poeta —, desenvolveu uma intensa produção poético-literária, além de realizar também projetos de cunho coletivo, como o "Leve um Livro".

Ao lembrar os autores e autoras reunidos na Poesia Orbital, a grande diversidade de percursos e gerações, vem-me uma forte característica do Marcelo que diz respeito à sua faceta coletivista: a generosidade. Seus projetos sempre foram inclusivos, como o do coletivo Dez Faces, organizado por ele e Camilo Lara entre os anos de 2006 e 2011. Tal como o Poesia Orbital, o projeto Dez Faces funcionava segundo a ideia de "órbitas poéticas", contando com diferentes editores de outros núcleos para cada número. Foram ao todo 25 jornais que reuniram dezenas de poetas de BH de várias gerações, uma produção impressionante. Antes do projeto Dez Faces, em 1999 e 2000, Marcelo reuniu Camilo, Adriana, Emilia, Ana e Carlos Augusto em torno do jornal Inferno, que seguiu a mesma configuração, impresso acompanhado de recital de poesia. Com os músicos Clôde Franco e Otávio Martins, a trupe também apresentou os "Porões do Inferno" no metrô, no Festival Karlsberg, e seguiu para o interior, encarnando o espírito utópico das caravanas de brincantes que desbravavam o interior do país.

Hoje, ao olhar para a produção de Marcelo Dolabela e para tudo que ele mobilizou, fica ainda mais marcante esse traço generoso, o que exige uma imensa disposição. Com tantos projetos pessoais a produzir, com um impulso criativo tão intenso como era o dele, no entanto o cara nunca deixava de se interessar pelos seus contemporâneos, e de atuar como um interlocutor precioso sempre que solicitado. Tal generosidade, acredito, tem relação com o seu talento de professor, aquele que nasce talhado para a missão. Tanto que, para Marcelo, a carreira de professor nunca foi apenas um ganha-pão, mas algo que ele desempenhava com grande interesse pelas gerações que o seguiram, e com as quais ele contribuiu para muito além da sala de aula. Sua companheira Regina Lage Guerra, a Ná, contou-me que o carinho pela função era tão grande que ele não se desfazia da papelada da universidade em que lecionou, guardando trabalhos de alunos e planos de aula. Marcelo jamais negava uma ajuda, mesmo que o aluno viesse de outra instituição — como foi meu caso uma vez, pedindo a ele uma força na hora de pensar a trilha sonora do filme que faríamos na PUC.

E para não dizerem que não falei apenas das cem flores de Marcelo Dolabela, vamos completar esse relato dizendo o que todos que com ele conviveram sempre souberam: Marcelo era bastante tinhoso. Sempre pronto para a discussão, para a polêmica, às vezes provocava, chamava o camarada pra briga. Ou "a camarada", como também já me aconteceu! (risos!) E isso se tornou parte do folclore da nossa amizade. Hoje, olhando para as situações vividas, penso que Marcelo sempre puxava todo mundo pra briga — já que ele era o "Dolabélico", como gostávamos de zoar carinhosamente. A briga deveria acontecer, de preferência, às seis horas na mesa do Xok Xok, em frente à loja 14, e era pra lá que a gente ia! Mas, enfim... Sem entrar no mérito das discussões, e para além dos afetos que mobilizam, acredito que o que Walt Whitman disse sobre si mesmo vale para o Marcelo: "Eu sou contraditório, eu sou imenso. Há multidões dentro de mim".

Marcelo Dolabela partiu no dia 18 de janeiro. Como disse Rodrigo Leste em seu programa Rádio Poemas, no dia 18 de fevereiro, "você partiu, Marcelo, nos deixando nessa roubada que é enfrentar esse Brasil careta, pentecostal absurdo. Ouço sua gargalhada de anjo torto debochando de nós, que ficamos". Sim, ele nos fará falta, sobretudo agora. Perdemos um guerreiro.

 

 

[foto Luciana Tonelli]

 

 

Luciana Tonelli formou-se em jornalismo pela PUC-Minas, trabalhando com reportagem e edição no campo da cultura e suas vizinhanças. Viveu em São Paulo por mais de uma década, passando a atuar na área editorial. Interessada na interface entre cultura, política e o terreno psi, fez mestrado no Núcleo de Estudos da Subjetividade (PUC-São Paulo). Participou dos coletivos que organizaram as coleções DezFaces (2007) e Poesia Orbital (1997), na qual estreou com Flagrantes do poço. Em 2011, publicou Flagrantes do tempo – Poema-reportagem na Pauliceia (Peirópolis/ProAC-SP). Atualmente vive em Belo Horizonte.