A relação entre poesia e música popular tem uma longa e rica tradição no Brasil. Desde Gregório de Matos, nosso poeta primeiro, até Arnaldo Antunes, e mesmo além, há uma vasta linhagem de artistas da palavra que transitaram da poesia escrita para o poema cantado, cuja figura proeminente no Modernismo foi Vinicius de Moraes. Mas há algo especialmente original no modo como Marcelo Dolabela deu sua contribuição a tal seara, contributo ainda a ser avaliado, por sua enorme importância, pelos futuros pesquisadores dessa matéria, sendo o poeta multifacetado, ele mesmo, um pesquisador incansável e minucioso da música popular brasileira. Sem preconceitos, sem estabelecer hierarquias, mas evidenciando suas preferências muitas vezes aparentemente idiossincráticas, a Dolabela interessava desde Dolores Duran e sua atualização do romantismo noutro tempo e lugar, até o punk rock brasileiro e além, inclusive em seus registros mais precários, marginais e violentos de gravação, os quais ele insistia em colecionar, escutar, estudar e divulgar.

                                                                                              

 

[Juca, Marcelo Dolabela e Jair Fonseca, por Marcelo Pinheiro]

 

 

Numa outra e mesma face da moeda poético-musical, Marcelo Dolabela também criou um grupo, na verdade vários grupos, dos mais ousados e criativos da cena cultural brasileira em quase 40 anos, embora também não devidamente reconhecido: Divergência Socialista, que do início dos anos 80 teve diversas formações, todas mesclando ritmos e estilos musicais variados, de forma minimalista e experimental, com letras cantadas/faladas, à maneira dos próprios poemas de seu mentor, precisas e concisas, mesmo quando eventualmente longas. A liraeletrônica de Dolabela foi um de seus melhores instrumentos coletivosantiprovincianos de atuação na província, sem medo do medo que preside às mentalidades e práticas tacanhas, mesquinhas e preconceituosas, tantas vezes dominantes entre nós, mesmo nos ditos "meios artísticos", tantas vezes bairristas ou solipsistas.

Ao contrário disso, a prática e o legado de Dolabela sempre foi o de um Divergente (porque assertivo e polêmico) Socialista (porque coletivista e generoso), sendo uma marca de sua originalidade na cultura artística brasileira, na relação entre poesia e música, a que aludi acima, o fato de os grupos musicais que ele criou, ou incentivou, surgirem de revistas/grupos de poesia, sendo alguns poetas, inclusive ele próprio, os intérpretes de suas canções.

 

 

Jair Tadeu da Fonseca (Gatto Jair). Poeta, ex-participante dos grupos Sexo Explícito, Divergência Socialista e O Último Número.