Cemflores surge em 1978, num contexto de crise da ditadura, que parecia abrir uma brecha no horizonte político, transformações sociais pareciam novamente possíveis no Brasil e o período é marcado pelo reflorescimento de intensas e fulgurantes lutas populares.

Em Belo Horizonte, quatro estudantes da UFMG — Marcelo Dolabela, Luciano Cortez, Carlos Barroso e Avanilton Aguilar — se reúnem em torno ao projeto comum de criação de uma revista, através da qual buscaram incidir desde a cultura nesse processo de resistência. Em pouco tempo, outras pessoas se agregam ao grupo (segundo Marcelo Dolabela, cerca de duzentos participantes — constantes e efêmeros — passaram por Cemflores): Jair Fonseca, Rubinho Mendonça, Roberto Soares, Adriana Bizzotto, Valéria Jacovine, Vanita Aguilar, Ilka Boaventura, Denise Mendes, Juca, Fuinha, Carlinhos Pisca Pisca, Murilo Almeida, Marconi Dolabela, Virgílio Mattos... Quase todos os integrantes eram estudantes da federal (dos cursos de letras, comunicação, história, filosofia, psicologia, entre outros) e muitos participaram dos DAs. Realizavam reuniões semanais, aos sábados. Foram polêmicos e críticos à ortodoxia da esquerda tradicional, por isso, tornaram-se alvo de algumas tendências e logo foram expulsos do DCE da UFMG. Conseguiram o apoio da UMES, ligada ao MEP (Movimento Pela Emancipação do Proletariado), alguns cemfloristas participaram desse movimento. Contudo, a diversidade — em todos os sentidos: ideológica (eram comunistas, anarquistas, libertários, trotskistas), estratos sociais, jeitos e gostos, visões do mundo, forma de fazer poesia — foi característica de Cemflores.

Sobre o nome, Marcelo Dolabela conta que um dia Carlão chegou numa reunião com um pedacinho de papel que recortou do jornal Movimento, ali estava a expressão "cem flores", todo mundo gostou e o grupo resolveu se chamar assim. Naquele momento, não conectaram o termo a Mao Tsé-Tung e ao seu conhecido aforismo, presente no "Livro vermelho": "Que cem flores desabrochem e cem escolas de pensamento rivalizem, eis a política para o desenvolvimento das artes e o progresso das ciências (...)". Se houve algum vínculo ao maoísmo, estaria mais próximo ao imaginário proposto por "La Chinoise" de Jean-Luc Godard. Desde a primeira revista (Cemflores nº 0, de 1978), na qual os poetas realizam uma homenagem aos cinqüenta anos do Manifesto Antropófago, explicita-se a intenção "deglutidora" do grupo, presente nos gestos de apropriação e montagem de referências diversas: o modernismo brasileiro, a vanguarda (artística e política), a tropicália, os quadrinhos, a arte pop, o cinema, a música, as notícias de jornal...

                                                                                        

 

Cemflores realizou publicações coletivas, como a revista Cemflores, em off-set e em grande formato, na qual já é possível notar o vanguardismo gráfico e poético característico do grupo. Em suas publicações, plasmaram experimentos de poesia visual, traduções e manifestos político-artísticos. Em 1979, com a intensificação das greves em todo país, perguntam-se "qual é a greve do poeta operário?". Na capa da revista Cemflores n 3, respondem: "O poeta é um operário que ainda não pode fazer greve" e, ainda, num carimbo do grupo: "O poema é a greve do poeta operário". Realizam, então, publicações mais precárias e urgentes, em menor formato e rodadas em mimeógrafo ou reproduzidas em xerox, como "Aqui Ó" e a "Cemflores-pirata". A poesia foi levada às ruas, a manifestações, greves e atos pela anistia. Pensaram-se como "trabalhadores em arte" e reivindicaram a socialização dos meios de produção e das formas de fazer, ideias condensadas na frase "em cada cozinha uma gráfica, uma gráfica em cada cozinha!". Pouco depois, criaram a revista "Alegria Bluesbanda" e surgem livrinhos individuais ou em dupla, feitos em mimeógrafo (quase quatro dezenas deles entre 1980-1982!). A partir de 1980, integram uma rede internacional de arte-postal e organizam na Fafich a "Primeira Mostra Internacional de Arte Postal de Belo Horizonte: Todos os Arquinimigos dos Supermen", outras mostras semelhantes são feitas nos anos seguintes. Cemflores participou ainda da Onda, chapa que irá dirigir o DCE da UFMG entre 1983 e 1984, com o lema "Cultura, meu bem!". A Onda buscou pensar a política através da cultura, realizou shows, festas e exposições, que transformaram o cenário cultural da cidade. Finalmente, uma dissidência de Cemflores — a ex-Cemflores — se aproxima da música e surgem as bandas Sexo Explícito, Divergência Socialista e O Último Número, criando uma cena pós-punk em BH.

Ao longo dos oitenta, muitos esforços das esquerdas fracassaram (como a campanha pelas Diretas Já e a derrota de Lula nas eleições de 1989) e, ao entrar nos noventa, num contexto político neoliberal, os integrantes de Cemflores pouco a pouco se dispersam. Contribui muito pra isso também o fato de que muitos se casam, têm filhos, mudam de cidade, já não são estudantes, trabalham, encontram-se, enfim, com menos freqüência. Entretanto, em momentos posteriores, e em decorrência da capacidade aglutinadora de Marcelo Dolabela, muita gente que foi de Cemflores se une a outras pessoas em torno a novos projetos, como a revista Fahrenheit, mostras, publicações e bienais de poesia.

Marcelo Dolabela dizia que, para ele, Cemflores é um modo de fazer coletivo, em que todos fazem de tudo (todos escrevem, diagramam, publicam, montam os livros, vendem, distribuem, participam dos recitais...), por isso, como modo de fazer, Cemflores nunca deixa de existir.

 

 

Clara Albinati é professora de montagem cinematográfica na FCA-PUCMINAS. Formou-se em pintura pela Escola de Belas Artes da UFMG e em direção de ficção pela Escuela Internacional de Cine y Televisión de San Antonio de los Baños (EICTV, Cuba). Realizou o mestrado em Investigação em Práticas Artísticas e Visuais pela Facultad de Bellas Artes da Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM, Espanha), com bolsa da Fundación Carolina. Trabalha como cineasta independente e integra a Red Conceptualismos del Sur. Atualmente, realiza, no ppg-artes da EBA-UFMG, a pesquisa de doutorado "Cemflores: poéticas políticas em Belo Horizonte nos anos oitenta", a partir dos arquivos de Marcelo Dolabela.