©sippanont samchai 
 
 
 
 
 
 
 

O HOMEM-TIJUBINA

|trechos|

 

 

I.

 

 

o homem-tijubina tem um paladar exigente. não digere o ovo do óbvio. somente silêncios de pássaros lhe passam pelos gorgomilos. quando o indagam a respeito desta passagem, diz que o outro lado da vida está no verso. não tem idade, apenas caminha. às vezes para frente quase sempre para o fundo do poço que guarda as lágrimas dos seus ancestrais. é um composto de cortes de unhas-de-gato e incoerências.

 

 

 

II.

 

 

o homem-tijubina vive, se dobra, (des)dobra e recorta como um zine. camelô do calçadão da afonso cunha, pede esmolas como um poeta, é este azulejo quebrado nas tuas mãos. usa colar de hippie, pulseira de sementes antiquebranto, antiódio e antiamor ao mesmo passo e no mesmo cortar de pulso. é poeira invisível nos escombros do cassino caxiense, fôlego  e asfixia nos vivemorres do rio itapecuru. na esperança de novos dilúvios, ele recita cecília: a chuva é a música de um poema de verlaine.

 

 

 

III.

 

 

para o homem-tijubina a infância é como uma ferida sem costura. diz que carrega suas corcundas hereditárias pela força das ladeiras de pedras brancas em que um dia correu com os bolsos cheios de pitombas, penas de passarinhos e sonhos acesos dentro de lampiões improvisados. quando tomado de ira do mundo, enfia o dedo no cu das não levezas do cotidiano e brada contra a apatia dos fantasmas bípedes.

 

 

 

VIII.

 

 

o homem-tijubina é um poema desprezado, por todas as almas viventes e vegetativas, resistente às chuvas e às ferrugens que lhe explodem a pele. um dia ele nasce alguma coisa diferente e deverá outra vez aprender a viver com a indiferença dos homens, dos répteis e de todas as (sub) espécies por um ou vários deuses, darwins ou big-bangs inventados.

 

 

 

 

 

 

PELOS CHÃOS DA MALÍCIA PULSATIVA

 

 

da voz conselheira de meu avô,

tua coragem em me levar, mãe,

pelos chãos da malícia pulsativa,

entre arapucas rachadas de sol,

 

sob o canto religioso dos azulões,

com os pés em vitória sobre as corcundas

espinhosas dos caminhos da roça

e a desconfiança das sementes não vingadas.

 

do fogo que me marcou o corpo,

tua habilidade em me mergulhar no rio

do teu perene afeto, me sarar

e me salvar do não existir.

 

a cacimba do teu olhar me protege

dos afogamentos que o carrasco funda.

 

 

 

 

 

 

ARARUTA

 

 

somos feitos

das mesmas fomes

dos nossos pais,

 

das mesmas lenhas

que os guardaram

do frio súbito das noites

caseadeiras de exílios.

 

de vez em quando,

ouço de longe

a voz da lágrima

do meu pai

e de minha mãe.

 

um quintal de ararutas

nasce dentro

do chão cansado

dos meus olhos.

 

 

 

 

 

 

ÁGUA DE ME INUNDAR

 

 

como se a língua da tijubina

me beijasse cada ferida,

o teu sopro nos meus cabelos de menino

me azeita de febres e forças

para a travessia interminável

à margem que me azougueia.

 

mãe, minha índia,

minha gamela de amor.

 

mãe, minha vida,

olho d'água cercado,

de onde tiro

toda a água de beber,

a água de me inundar.

 

 

 

 

 

A OUTRA MARGEM

 

 

sou dessas sementes desacreditadas

que o vento rouba das cercas da morte

e lança na outra margem do rio

pelo milagre do bico do pássaro.

 

 

 

 

 

 

CAMPO DE FLORES

 

 

o amor é como

dar a entender

um cemitério

a uma criança.

 

 

 

 

 

 

MESÓCLISE & DISENTERIA

| aos poetas josé sarney & michel temer |

 

 

o pior da minha geração

é que ela não existe.

está tudo esface-

lado.

 

tudo que não é espelho

é umbigo.

 

a gente só engole

chá & status,

mesóclise & disenteria.

 

o poeta está de munheca quebrada

com um frande de curubas douradas

no centro da praça principal.

 

 

 

 

 

 

OS CLARÕES DE DENTRO

 

 

do lado

contrário

às imagens

que me

desesperam,

 

uma menina

cega

joga sal

nas feridas

do mar.

 

 

 

 

 

 

OS OLHOS DO MUNDO

 

 

o mundo ainda está no escroto,

na ideia abaixo da ideia.

 

o mundo pensa em suicídio

antes do seu aborto

anunciado.

 

o mundo ainda não tem os olhos

r.a.s.g.a.d.o.s

pela cápsula do sombrião.

 

 

 

 

 

 

PÍFARO

 

 

evita

o salto

suicida

de Safo,

 

 

não a minha sombra morta

dentro do papiro-capemba,

 

na manhã grave ferida

de faca e ferrugem,

 

a flauta do índio

no meio do rio.

 

:

 

funda o pífaro de taboca

de um gamela

 

treze aldeias de sopro

e milagre nos co(r)pos

de flores

 

que saram os acessos

de flechas

nos meus calcanhares.

 

 

[Em O homem-tijubina & outras cipoadas entre a folhagem das malícias. Patuá, 2019]

 

 

setembro, 2019

 

 

Carvalho Junior (Francisco de Assis Carvalho da Silva Junior, Caxias/MA, 1985). Professor, ativista cultural, gestor público e poeta brasileiro. Vencedor do Troféu Nauro Machado no I Festival Maranhense de Conto e Poesia (FESTMACPO) promovido pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Publicou os livros de poemas Mulheres de Carvalho (São Luís: Café & Lápis, 2011), A Rua do Sol e da Lua (São Paulo: Scortecci, 2013), Dança dos dísticos (São Paulo: Patuá, 2014), No alto da ladeira de pedra(São Paulo: Patuá, 2017) e O homem-tijubina & outras cipoadas entre a folhagem das malícias (São Paulo: Patuá, 2019). Membro da Academia Caxiense de Letras (ACL), é um dos organizadores do "Encontro de Poesia Na Pele da Palavra" e faz parte do coletivo de autores alternativos "Academia Fantaxma". Participou, com o poema "Abrigos", da Exposição Poesia Agora (Rio de Janeiro: Itaú Cultural, 2017). Tem poemas publicados em jornais, revistas e antologias literárias nacionais e do exterior. Edita a página de poesia Quatetê.

 

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