Poeta e ficcionista experimentado, José Eduardo Degrazia traz a público, com A nitidez das coisas (Artes & Ecos, 2018), seu 12º livro de poesia, tendo já publicado duas novelas e cinco livros de contos e minicontos. O presente volume propõe uma reflexão poética sobre o tempo, desdobrado em tempo do sujeito entre nascimento e morte, tempo dos objetos e da casa, tempo geológico, tempo do universo dilatado, tempo do que resta, do que fica, do que continua a partir do fim da vida individual, tempo de permanência da poesia e da arte, da ação humana e do afeto.

No poema que dá título ao livro, alguém observa e atribui sentido humano às coisas e a sua própria existência: "No silêncio da casa, quando as madeiras estalam,/ espero o movimento da engrenagem do tempo". Após o deflagrar deste som-ruído, inicia-se uma sucessão de imagens: "espero o levantar da poeira do chão entre as moedas/ nítidas do sol e as moendas trituradoras de emoções", "o destino dos pratos e talheres prisioneiros lentamente/ desfazendo-se em barro e mortal ferrugem". Do resfolegar do tempo o poema retira inusitada conclusão.

O âmbito da casa será retomado várias vezes, exponenciando o sentido de cada abordagem. Em "A humanidade das coisas", de característicos versos longos e imagéticos, fala-se de um efeito reverso: "um dia os objetos mostrarão a humanidade com que foram feitos/ um dia os objetos serão a tua carne e o teu desejo,/ um dia os objetos não mais serão fabricados por ti,/ mas tu serás feito a sua imagem e semelhança,/ olho dentro do olho, espelho dentro do espelho". A concretude da observação, presente na linguagem criativa, marca "A pátina do tempo": "as mesas riscadas pelo sonho da família,/ a ferrugem que foi comendo pelas bordas/ as imagens dos espelhos", "o riso das crianças e dos noivos nas manhãs de maio,/ as fotografias amarelecendo no fundo dos baús,/ o lento apagar das luzes dos velhos afastando-se no corredor,/ só o envelhecer das coisas nos lembra a nossa finitude". Também em "Camadas de pó", a enumeração dos objetos está intimamente ligada à presença-ausência humana, "Não há vento que leve para longe o estrato de risos e desejos", para sintetizar-se na contundente ternura do verso final.

Se, na ponta da ascendência, a antiga casa dos pais foi tematizada, na outra, em "O pássaro da juventude", o crescimento dos filhos para fora do aconchego paterno gera imagem originalíssima, de forte e aguda conotação.

No "Poema da Clepsidra", o rio que é preciso atravessar após a morte, segundo a mitologia grega, ao servir de consciência do fim inevitável, alude também à sensualidade da vida: "Viver é assim entregar-se despido/ ao rio que atravessa Caronte no seu barco,/ e nadar ao lado com o poema nascido/ enquanto a carne se entrega na desvalia/ e a mão desenha o arco de um seio/ na areia que escorre da Clepsidra". A mesma sensualidade de "A vida é", de tom inicial shakespeariano, "A vida é como um parque de diversões/ ou um circo de subúrbio de lona rasgada,/ onde o palhaço move o carrossel da ilusão/ e trapezistas cobertos de lantejoulas dançam/ sobre o fio fino e tênue do destino/ à espera da queda definitiva", quando diz que "e ali ficamos, meninos envelhecidos,/ olhando as pernas nuas da bailarina". A nitidez de "Sobre a morte e o morrer" produz impressionante estocada no leitor, sobretudo pela aparente trivialidade da colocação, em versos de cuidadosa similaridade fônica quanto às vogais finais: "Hoje foste tu, e eu te pranteei,/ amanhã, serei eu".

Em "Principalmente", o tempo se distende ante a ferrugem: "Há sinais de antigas civilizações/ embaixo dos teus sapatos,/ e gritos, e poemas, e salmos,/ enquanto os teus pés pisam,/ indiferentes, a areia dos séculos". O tempo da Terra convoca o tempo geológico, "Bilhões de anos se passaram desde o início,/ até aparecer o homem, 'bicho da terra tão pequeno',/ e construirmos templos e escrevermos romances", para advertir que nossos vestígios restarão apenas por um período. Não há, no entanto, de acordo com "Tempo e poesia", lugar para a submissão: "A ferrugem do tempo/ é uma engrenagem/ que morde por dentro/ e te desafia a lutar sempre".

Em "Paisagem", a dilatação do tempo e do espaço, ou seja, da paisagem, sugerida pela astronomia e pelo próprio livro, é tamanha que "Preciso fechar/ os olhos/ para de novo/ ser". Antes, no tempo da infância de "A bandeira desfraldada", o universo era menos amplo, apenas se insinuava entre Lua e Vênus: "a tarde parecia/ a bandeira da Turquia desfraldada". "O olho que tudo vê" possui feição epigramática: "A sombra do pardal mesmo pequena/ diz tudo sobre a existência do sol", "O gosto do sal traz a onda consigo".

Em "Jogo de dados", a amplitude espaço-temporal é plena: "Quem disse que só aconteceu um big bang?// A vida não é só uma questão de bang bang". Os versos finais, "A vida é um jogo,/ mesmo que Deus/ não jogue/ dados", remetem à célebre frase de Einstein 'Deus não joga dados com o Universo', com a qual pretendia refutar o Princípio da Incerteza de Heisenberg (a impossibilidade de se medir simultaneamente a exata Posição e Velocidade de uma partícula ou, analogamente, a sua Energia e o Tempo), até ser convencido de sua validade por Niels Bohr. Também em "O demiurgo", "diante da criação explosiva das estrelas", há plausível evocação científica quando o poema diz que "do fundo do Universo/ uma canção constante nos adverte/ feito música de fundo numa sala de espetáculo vazia", relativa à Radiação Cósmica de Fundo originada no provável big bang e ainda atuante.

"O giro do tempo" busca imagem semelhante à dupla propriedade do fóton, partícula que surfa em sua própria onda: "O tempo (...)/ feito a alga na onda marinha". "Pensando Bachelard", filósofo da ciência, mostra que, entre corpos inanimados e corpos humanos, o conhecimento científico não abarca a totalidade: "A química se quer exata/ mas tergiversa/ na alquimia complexa/ do amor e do verso".

"Carta de náufrago" tematiza o tempo necessário para o poema, "mensagem escrita só para ti", ser finalmente encontrado, "por uma namorada, por uma tia", recriando conhecido verso de Baudelaire, "Se não por ti, meu semelhante, meu irmão". Enquanto "O nome da coisa" aborda o desgaste das palavras, que a arte poética presumivelmente busca combater: "Para perder o sentido uma coisa,/ precisa ter seu nome repetido/ até o cansaço da própria coisa,/ como se o nome caísse para dentro/ da matéria de que essa coisa é feita". Todavia, o poema dispara: "Por isso não acredite nos poetas/ que só nomeiam tentando gastá-la".

"A palavra para ser dita" ilustra o momento epifânico, em que tudo parece fazer sentido: "Há um momento na vida em que paramos para a palavra,/ paramos em meio ao trânsito da cidade embrutecida,/ na solidão do carnaval de multidão aflita,/ paramos para a palavra única, verdadeira, irrestrita". "Morder a língua" remete ao prazer da arte, "Dizer, é uma face da língua,/ outra é beijar, lamber", mas também ao desconcerto que causa, "Língua, forma afiada/ de faca, adaga". "Tudo passa", que a certa altura diz "A poesia, rio/ que nos dessedenta", conclui afirmativamente, "Só o tempo nos inventa".

Quanto ao que fica, iniciemos com "A permanência da luz". Se a vida tem ou não tem sentido, o que de fato importa? A ação em vida que continua após a morte do sujeito: "Importa que ser passageiro infunde em mim/ a certeza de existir num instante da Eternidade,/ e de estar imerso no devir do Universo,/ como uma estrela que depois de morta/ ainda ilumina a noite imensa com a sua luz". Ante a morte, também existe "A recusa do mundo": "no entanto em mim o mundo/ quer permanecer.// O mundo se recusa a morrer/ em mim". Porque, conforme se lê em "Velhas perguntas", "existe em nós alguma coisa que luta para viver sempre,/ uma canção, um poema, uma religião.// Quem sou eu para dizer que não?". "O coração da pedra" igualmente sustenta a permanência, e "Antigos", após uma negação de acento drummondiano, sintetiza: "A única herança que deves almejar/ é a sutil presença do amor que ficou/ na cama de jacarandá que ainda dá flor,/ ou na mesa de pinho riscada de faca e de lágrima/ e que dia sim, dia não, ainda dói.// Além disso, não esperes nada./ Os teus netos te procuram no futuro".

 

 

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O livro: José Eduardo Degrazia. A nitidez das coisas.

Porto Alegre: Artes e Ecos, 2018, 94 págs., R$ 35,00

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setembro, 2019

 

 

Sidnei Schneider. Poeta, ficcionista e tradutor em Porto Alegre. Publicou os livros Andorinhas e outros enganos (Dahmer, 2012), Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer, 1999), Versos Singelos/José Martí (SBS, 1997) e Poemas 1987-1992 (Artesanal, 1992). Participa de Poesia Sempre (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2001), O melhor da festa 1 e 2 (FestiPoa Literária, Porto Alegre, 2008 e 2009), Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, Florianópolis, 2011), Poesia Gaúcha Contemporânea (Assembleia Legislativa/RS, 2013) e outras antologias. Publicou o livreto De rua e sangas (Maisumascoisas, 2018).1º lugar em poesia no Concurso Talentos, UFSM, 1995; 1º lugar no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu, UFRGS, 2003; Prêmio Açorianos de Divulgação literária, Prefeitura de Porto Alegre, 2008. Membro da Associação Gaúcha de Escritores.

 

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