©yuval yairi
 
 
 
 
 
 
 

ENFERMARIA

 

 

 

guarda-chuvas são animais solitaríssimos. quando adoecem, são abandonados por seus donos. muitas vezes, os encontro no meio-fio, encolhidos, com uma costela quebrada. encontro-os chorando baixinho, ensopados da cabeça às patas, como se já estivessem mortos. recolho-os com todo o cuidado, para que não padeçam ainda mais. levo-os no colo até o escritório e planto-os em meu jardim imaginário. trato-os com o melhor adubo e rego-os todas as manhãs, antes do sol nascer. mais cedo ou mais tarde hão de recobrar as forças, desabrochar. então, o meu jardim de guarda-chuvas, ninguém terá visto outro tão belo. e quando estiver no auge de seu viço, prepararei mudas em pequenos berços e as depositarei na porta dos antigos donos.

 

 

 

 

 

PELIGRO

 

 

Montevidéu. o muro que adentra o mar mais faz pensar em um quebra-ondas do que em um píer. nele, em tinta branca, está inscrita a palavra peligro. nadadores atravessam a enseada, cargueiros deslocam-se no horizonte, enquanto pacientes, sentados na amurada da praia, de frente para o mar, esperamos o sol se pôr. no entanto, a palavra peligro. há um risco iminente de que não nos damos conta? onde? miro o mar sem ondas, miro os grafites no muro que circunda a praia, miro o alto dos prédios, miro a avenida da orla e o calçadão, que aqui chamam rambla. miro minha companheira. não é de hoje a onda gigante que quebra no fundo de nosso olhar. peligro. que ameaça nos ronda?

 

 

 

 

 

PROCURO A MORTE

 

 

quero morrer. procuro um jeito. já tentei roleta russa com arma. já experimentei salada temperada com raticida. realidade ou fantasia? procurei um matador do bairro. pergunto quanto cobraria pra me matar. ele: não, isso não posso fazer. matar a irmã de amigo, não. insisto. sem convencê-lo, resolvo perguntar: quanto custa matar alguém? depende de quem. como começou na profissão? minha família foi morta numa chacina. comecei a matar pra me vingar. o primeiro foi mais difícil, depois acostuma. passou um tempo, fiz um aborto. abortar é uma mistura de homicídio com suicídio. a gente acostuma. hoje trabalho como cuidadora de doentes e idosos. sempre gostei. meu pai morreu. preciso falar sobre isto.

 

 

 

 

 

ANTIDEUS

 

 

um raio começou a ser gestado no céu entre nuvens adiposas, onde pastam elétricos porcos-espinhos. uma faca, uma tesoura, uma baioneta de megavolts fura a atmosfera, rasga a vertigem da hora, atinge a medula do homem sentado à mesa, à luz do abajur, todo transpiração, deitando palavras sem nexo sobre o papel. o cerne do homem implode e, no milissegundo seguinte, o buraco negro de sua alma explode com a máxima violência. farpas de costelas atravessam o cômodo e cravam-se nas paredes. fêmur, tíbia, ilíaco arrebentam as vidraças, destelham a casa, buscam o subsolo. de todo absurdo, de toda morte, nasce um peixe, um pássaro, um inseto, uma gramínea. a vida quer viver, quer felicidade, quer amor. rebelde, desafia cara a cara a ira dos deuses.

 

 

 

 

 

DEPOIMENTO 1 – TIRO

 

 

uma noite, quando servia o exército, minha unidade foi designada para impedir um atentado suicida capturando um terrorista num povoado perto de Shrem. mobilizei nossas forças. para desentocá-lo, disparamos nas paredes como demonstração de força. uma mulher saiu da casa, com uma garotinha no colo e outra trazida pela mão. eram três da madrugada. apavorada, a menina correu em nossa direção. tive medo que fosse atingida. gritei em árabe para ela parar. ela continuou. disparei por sobre sua cabeça. ela parou. naquele instante, o tempo parou. foi o momento mais curto e mais longo da minha vida. a garotinha ficou viva. eu fiquei vivo. ao mesmo tempo, algo morreu em nós dois. quando um adulto dispara numa criança, mata algo em si. algo morre e outra coisa tem de nascer. tive vergonha de disparar nela. uma vergonha doída. acima de tudo, tenho a sensação do meu dedo puxando o gatilho e disparando na garotinha. desse dedo no gatilho tinha de nascer algo.

 

 

 

 

 

DEPOIMENTO 2 – ÁGUA

 

 

esse ano, cobri uma seca muito severa no estado de Maharashtra, na Índia. por um lado, vi pessoas desamparadas por causa da crise hídrica. por outro, vi prédios sendo construídos com piscina em cada andar. não eram prédios de três ou quatro andares. em Bombaim, duas torres gêmeas estão sendo construídas com trinta e sete andares cada. ou seja, serão setenta e quatro piscinas. são torres gêmeas. fui ver quem eram os trabalhadores dessa obra. são todos trabalhadores sem terra e agricultores marginais que deixaram seus povoados como retirantes da seca. e estão na cidade construindo piscinas.

 

 

 

 

 

DEPOIMENTO 3 – DOM

 

 

não tenho medo de morrer. não sei se deus existe ou não. mas prefiro acreditar. e quando olho para o universo, espero que nosso espírito vá para algum lugar onde nos reconheçamos uns aos outros. além de meus pais, adoraria rever meu melhor amigo, que morreu quando tinha vinte e um anos. adoraria passar o tempo com ele, viajando de carona pelo céu, como costumávamos fazer aqui na Terra. também adoraria encontrar todas as pessoas através de gerações que tentaram tornar o mundo melhor. para mim, isso é o mais importante. e quando analisamos as grandes religiões, filosofias e ideologias, e tentamos simplificar dogmas e teologias complexos, tudo se resume ao amor. então espero que meu espírito seja levado para um grande balé, uma grande dança cósmica do amor, onde não haja mais sofrimento nem tristeza. onde não possamos mais magoar ou ser magoados. onde possamos realmente celebrar o grande dom da consciência, o grande dom de ser, o grande dom da vida. e se, afinal, deus não existir, ainda sou grato pelo dom da vida. sempre penso que as últimas palavras que gostaria de dizer antes de morrer são: obrigado, obrigado pelo dom da vida.

 

 

 

 

 

SELF-MADE WOMAN

 

 

Mara, aliás, Srta. Marildes, como faz questão de ser chamada depois que se divorciou, é uma funcionária exemplar. dedicada, com iniciativa, mandona. vive para lá do Jardim Ângela. pega dois ônibus todos os dias para vir ao trabalho. 1,5 horas na vinda, 2 horas na volta, todo santo dia. Srta. Marildes tem um filho já grande para criar, Huang, quase adulto, que não gosta de estudar; prefere o celular, o videogame, a internet, o tempo todo, todo dia. Srta. Marildes ama shopping. gostaria de fazer carreira, mas não teve formação escolar. no início, ainda tentou um supletivo à noite, mas o tempo não deu. conta apenas, pois, com sua força de vontade. começou na faxina, passou a recepcionista (malcriada ao telefone com os clientes — a vida é muito sofrida) e hoje é auxiliar de secretária. trabalha dentro da sala do sócio-presidente. é uma pessoa feliz, a Srta. Marildes. gosta de fazer selfies com os colegas. mas se sente um tanto prejudicada. deixou pais e irmãos no Maranhão, na roça, para fazer a vida em São Paulo. a maior parte do tempo, sente saudades.

 

 

 

 

 

O TEMPO FORA DO TEMPO

 

 

mesa na varanda, vista para o vale. das mãos inaptas da mãe, antes pianista, o vento sequestrou o guardanapo, levou-o cada vez mais alto para o leste, em ziguezague, até tornar-se uma estrela, ferida de mortal beleza pela luz do sol cadente. sentadas ao redor da mesa, a mãe, com Parkinson há muitos anos, e as filhas conversavam. por alguns minutos, deixaram-se levar pelo espanto da flutuante viagem. seguindo o rastro do guardanapo, uma semana depois — 17 de janeiro de 2008 —, a mãe partiu num desastre de automóvel. muito antes, eu sabia do poema visual de Beleza Americana — um saco plástico bailando nos braços do vento. o mundo em suspensão. agora, em 2016, assisto à cena — Dinamarca, alto de um promontório: um casal de amigos, Gerda e Hans, vê o lenço de seda ser-lhes raptado das mãos pelo vento, num fim de tarde de 1930, e seguir volteando o rastro de sua antiga dona, Lili Elbe (antes o pintor de paisagens Einar Weneger), que partira há a algum tempo, convalescente de uma ousada, desejada e malsucedida vaginoplastia.

 

 

 

 

 

PREVISÃO DO TEMPO

 

 

é noite. o vento traz um cheiro úmido. faz pensar que vai chover. mas chuva aqui é algo raro como irmãos siameses, cachorro de seis patas. coisas que jornais populares gostam de estampar, para vender, é claro. só a plateia ignara e os poetas veem nisso algum sentido. o vento traz um cheiro úmido e frio ao semiárido. é inusitado. mas não muda nada. ao fim, nada acontece.

 

 

 

 

 

O ÚLTIMO TREM

 

 

pessoas não são pessoas. pessoas são malas. cheias de alguma coisa, despachadas a destinos, jogadas pra lá, pra cá, achadas e perdidas, de repente esvaziadas pela metade, abarrotadas mais do que nunca. até que, afinal, o último carregador as joga no último trem, em que se vão sacolejando.

 

 

março, 2018

 

 

Ruy Proença, poeta e tradutor, nasceu em 9 de janeiro de 1957, na cidade de São Paulo. É autor dos livros de poesia Pequenos séculos(Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres(Giordano, 1996), Como um dia come o outro (Nankin, 1999), Visão do térreo(Editora 34, 2007), Caçambas (Editora 34, 2015) e dos poemas infantojuvenis de Coisas daqui(Edições SM, 2007).

 

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