o cheiro da mexerica

não é o cheiro da morte

 

a casca rasgada no canto do prato

é o mapa de Guadalamaxica

 

o gomo atravessado nos dentes, como onda na areia,

infiltra o beijo úmido, por séculos tão esperado

 

chupa longamente o sumo da tangerina!

contra o gemido do prazer não há vacina

 

a vida toda é uma muiraquitã

o tempo em que se mordisca a carne da poncã

 

tudo é cegueira, nada mais se nota

quando se come a fundo a bergamota

 

o cheiro

não é o cheiro da morte

 

a chama laranja do amor

cresce por dentro da boca

 

depois, pode-se ler o rascunho do fogo:

cascas, bagaços, sementes e a excêntrica flor felicidade

 

 

 

 

 

 

VARANDA

 

 

a poesia envenenou-me

já não há mais tempo

 

a lua investirá com seus chifres

e as cebolas no escuro despertarão

o olho do coração

 

da cadeira

de balanço

a Paciência contempla a penugem dourada das horas

enquanto um gato dorme

sobre sua cabeça

 

uma tempestade de diamantes

arremessará suas flechas

sobre o Estreito de Magalhães

 

exatamente assim

passará um milênio

 

 

 

 

 

 

LUGARES

 

 

há lugares na alma

tão escuros

que até os cegos

podem contar as estrelas

cadentes

 

contar as estrelas

e fazer muitos desejos

tantos quanto s cabem na alma

de um cego

 

há praias na alma

tão escuras

que até os videntes

pensam que é céu

 

cada grão de mica encerra

uma estrela que caiu

de modo que o mundo

da alma

parece não ter pé nem cabeça

 

 

 

 

 

 

EDIFÍCIO DE HERÓIS

 

 

No décimo terceiro

habita um matador.

Antigo prisioneiro,

matou o touro carcereiro

e fugiu.

 

No décimo segundo

habita um cego, órfão deste mundo.

Salvou uma cidade inteira de seu martírio.

Mas matou o pai

por sugestão e por falta de informação.

 

No décimo primeiro

habita um eloquente e narcisista orador.

Por não ter família de renome

atentou contra o poder

num país grande, mas pouco conhecido.

Foi esquartejado.

 

No décimo

habita um astrônomo.

Quis profanar a Terra, roubá-la de onde estava.

Mas depois, sob tortura,

negou suas intenções.

 

No nono

habita um santo.

Em contato com contraventores

desatinou os filósofos da ética.

 

No oitavo

mora um guitarrista incômodo e intransigente.

Quando não está de bad trip, está em êxtase.

Toca guitarra até com o pé.

 

No sétimo

mora um jogador de futebol aposentado.

Foi rei

e soube conviver harmonicamente com as embaixadas.

 

No sexto

mora um trotskista

perseguido pela polícia política.

Passou a usar bigote y sombrero

e tem sempre pesadelos com machados.

 

No quinto

mora um jovem solteiro

filho de carpinteiro.

Não tem profissão.

Vive de fé.

 

No quarto

mora uma modelo.

Morena, é um herói revelador:

já foi capa da Playboy.

 

No terceiro

habita um jornalista louco. Diz que trabalha a sério num diário.

Todos os dias se atira pela janela

vestido indecorosamente com um collant azul

onde se lê: S.

 

No segundo

reside um chimpanzé melancólico e hipocondríaco.

Vive à base de cápsulas. Sempre no mundo da lua.

Foi à Lua antes de qualquer outro homem.

 

No primeiro

não mora ninguém.

Na porta há esta placa:

ALUGA-SE.

 

 

 

[Poemas de A lua investirá com seus chifres, 1996]

 

 

 

A GALINHA

 

 

a galinha tem pavor ao mar

e mal sabe dar braçadas no ar

 

a galinha tem garras pontiagudas

para plantar-se no chão

e desejar-se raiz

 

a galinha cisca o terreiro

e a cal do muro

 

e mal distingue a quirera do sol

que se levantou no passado

e migra para o escuro

 

ciosa do ovo perfeito

pois nele guarda o futuro

estende sua teia de nervos

e estaca como um para-raio

 

choca como uma árvore

dia e noite

para ver maduro seu fruto

 

e quando um pé de vento

põe a poeira em remoinho

 

lá está ela

comandante louca

de olhos esbugalhados

ancorados no seco da tempestade

 

 

 

 

 

 

O HOMEM-CARACOL

 

 

O homem-caracol

caminha pela parede do viaduto.

 

Sua casa invisível

guarda seus parcos pertences.

 

Aonde vai

arrasta sua amnésia entre os badulaques.

 

Sonhos de alguma infância

cimentaram-se-lhe nos olhos.

 

Sua dignidade é o osso —

sua casa.

 

As pombas o frio

no seu caminho

 

são sua gente.

Amor? Gesto cariado

 

dor

que pratica em público.

 

É um dos poucos homens públicos

que Deus perdoa.

 

Se não me engano

já o teremos visto

 

rebarbativo — na parede de casa

num fim de tarde.

 

 

 

 

 

 

FIAT LUX

 

 

no meu caderno

 

a cerejeira

poderá

 

um dia

 

provar de suas cerejas

 

 

 

 

 

 

O CHEVROLET

 

 

O poema estava lá.

A velha pasta verde na estante

no fundo da pilha.

Um único poema na pasta,

estranho detalhe.

Um velho poema

que não envelhecera.

A imagem central era clara:

um Chevrolet bege anos 50

de linhas arredondadas.

Entrei, sentei ao volante, dei a partida.

Os pneus faixa branca rodando

as marchas passadas.

Enquanto ganhava altura

o destino entrevisto chamava-se Plutão.

No retrovisor o que ficava:

o novelo de poeira desenrolado

a velha estrada de terra.

 

 

 

[Poemas de Como um dia come o outro, 1999]

 

 

 

A INVISÍVEL CICATRIZ

 

 

nascer

é ser novinho em folha

e já deixar cicatriz

 

viver

é cobrir os outros

de cicatrizes

e ser coberto

 

mas nem tudo

são cicatrizes

 

algumas incisões

definitivamente

não se fecham

 

por isso

aliás

morremos

 

 

 

 

 

 

TIRANIAS

 

 

antigamente

diziam: cuidado,

as paredes têm ouvidos

 

então

falávamos baixo

nos policiávamos

 

hoje

as coisas mudaram

os ouvidos têm paredes

 

de nada

adianta

gritar

 

 

 

 

 

 

TRENS URBANOS

 

 

Não são como os ratos

ou os vira-latas.

 

Nunca desviam,

os trens.

 

Este sempre acompanha

o rio morto vivo.

 

Aqui dentro, uns lutam pra dormir,

outros, pra acordar.

 

Uns achando que a vida

é preparação pra morte.

 

Outros, que a morte

é o motor da vida.

 

Outros não acham nada.

Sobrevivem.

 

Os meus botões pensam:

morte em vida é que é problema.

 

Cocteau pensava além: a vida

é uma queda na horizontal.

 

O trem para. A porta se abre.

Na falta,

 

qualquer rua, pra mim,

é rio.

 

 

 

[Poemas de Visão do térreo, 2007]

 

 

 

ZONA DE CONFORTO

 

 

se você

viu um prego

em minha testa

 

e acha

que isso faz

todo o sentido

 

então viver

é menos perigoso

do que eu imaginava

 

vamos

pendure

um quadro

 

 

 

 

 

 

VOO

 

 

as toalhas

estão querendo

voar

 

as cadeiras recostadas

prendem puxam

as toalhas

 

não tive a felicidade

de ser o inventor

da felicidade

 

embora muitas vezes

a tenha erguido nos braços

e rodopiado com ela

 

 

 

 

 

 

CÉREBRO

 

 

se caminho pela trilha

das ilhas

nos arquipélagos

 

se minha vida

é povoada de

sereias

polifemos

 

se desço ao

sulfuroso banho

ou à seção

de degolados

no quinto subsolo

 

se jogo a rede

sobre as estrelas

e depois

as devoro

 

se as garras

dos pterodátilos

durante a noite

rasgam

carnavalizam

minhas sinapses

 

se

estimulada

pelo fole

de meus pulmões

a extrusão

de meus neurônios

se assemelha

à ira dos vulcões

 

se minhas unhas

de amianto

escarificam

a chama o algodão

do último

e mais violento

amor

 

cérebro que só serviu

para me prever

depois de morto

 

 

 

 

 

 

MOBILIDADE

 

 

pedalando

na ciclovia

à margem do rio

aprecio

a natureza

em todo o seu

esplendor

 

mentalmente

tiro o chapéu:

saúdo

cada ser

no caminho

 

bom dia,

capivara

 

bom dia,

vocês aí

tristes

parados como eu ontem

na estação de trem

 

olá,

aves aquáticas

olá, garça

olá, quero-quero

olá, pássaro-colchão

olá, pássaro-garrafa

olá, gaiola-sem-pássaro

olá, paturi-tampa-de-privada

olá, pássaro-geladeira

 

abro os pulmões

e inspiro

o deus amoníaco

o deus ureia

o deus enxofre

 

e expiro expiro

um a um

meus sonhos de baunilha

recém-saídos

de sob o lençol

 

tenho fé

na vida

 

ave, máquinas

ave, operários

salve, construção civil —

mais pontes

mais passarelas

entre este

e o outro lado

da vida

 

evoé, chuva fina

evoé, bailarina

evoé, íngreme escadaria

(agora

carrego eu

a bicicleta)

 

evoé, escritório

evoé, relatórios

evoé, fim de linha

 

evoé, aspirina

 

 

 

[Poemas de Caçambas, 2015]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Ruy Proença, poeta e tradutor, nasceu em 9 de janeiro de 1957, na cidade de São Paulo. É autor dos livros de poesia Pequenos séculos(Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres(Giordano, 1996), Como um dia come o outro (Nankin, 1999), Visão do térreo(Editora 34, 2007), Caçambas (Editora 34, 2015) e dos poemas infantojuvenis de Coisas daqui(Edições SM, 2007).

 

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