©katerina marchenko
 
 
 
 
 
 
 

Bênção

 

 

Hoje uma luz nova pareceu cobrir os mirantes da cidade

e acentuar o brilho acinzentado da baía de São Marcos,

despertar gemidos de dor e luxúria entre buzinas de ônibus,

interjeições do vendedor de frutas — ombro pejado de açúcares

passo de equilibrista sobre o fio de outra manhã,

misericórdia visível nas folhas de amendoeira avermelhando o caminho.

 

 

 

 

 

 

Teus passos

 

 

Quando a tarde cai, teus passos rompem

a quietude fria do meu peito,

és promessa de luz que me ampara

à beira do devir — cercado de bromélias e de espanto.

O rodar da chave na porta, a casa reabitada por tua presença

traz-me o verso inconcluso à tona das frases,

tinge de ouro e púrpura o silêncio.

 

 

 

 

 

 

Cicatriz

 

 

O amor se partiu em lascas de sílex

dor primitiva que ainda ecoa pela web

cegueira insana, rota possibilidade de alegria

cacos de vidro espalhados, restos de luz que se apagam.

Contigo fundaria um reino onde a noite jamais nos alcançasse,

e a vida se regozijasse em nunca envelhecer.

 

 

 

 

 

 

Filogenia

 

 

Vestígio de avós, enigma de renda

colares de contas, bilros, bordados

mar que se cruza, adivinhação.

Não sei fazer doce de espécie

pago impostos, reclamo direitos

não nasci em Itabira, mas luto com palavras

não tive ouro, não tive gado, não tive fazendas

e, vez por outra, preciso ser dura, de mármore

sensível ao mais ingênuo risco.

 

 

 

 

 

 

Amanhecer

 

 

Quando despertas, todas as formas vivas abrem à manhã o quarto frio

peixes se movem no fundo oceanário dos meus olhos

o dia invade o espelho, refletindo flores e sementes

palavras trespassam a dor, unguento milagroso

louça antiga amparada antes de espatifar-se

seda de raro fulgor, teia translúcida e tenaz.

 

 

 

 

 

 

Degelo

 

 

Assim decifram-se palimpsestos

enquanto decifro enigmas abarrotados de frases.

Crispa-se a pele ao frêmito da luz em pleno corpo

reconhecendo vestígios que o esquecimento baniu,

transmuda-se em verso claro a noite ensandecida.

Pego-me escolhendo sedas, berloques, estamparias

com a alegria que arde nas tangerinas maduras.

 

 

 

 

 

 

Sobrado da Rua do Trapiche

 

 

Nem o musgo é capaz de trespassar a angústia

que os cômodos vazios exalam

ou mesmo as roupas penduradas na sacada

disputando luz com insetos e lamúrias.

Ali as horas se encantam em fermentar o ócio

de tudo o que se move e ainda pulsa.

A vida só espera um pouco

nos meninos que soltam papagaios.

 

 

dezembro, 2017

 

 

Lenita Estrela de Sá nasceu em São Luís do Maranhão. Graduada em Letras e Direito, tem 13 livros publicados (alguns, de forma independente e outros, como parte de premiações literárias). Seu último livro, um volume de poesia intitulado Antídoto (7Letras), conta com a apresentação do poeta Salgado Maranhão. Tem poemas publicados nas revistas literárias "O Casulo" (São Paulo: Patuá, 2017) e "Gente de Palavra" (Rio Grande do Sul, 2017); e conto, na revista portuguesa "InComunidade" (2017, n. 62). Incluída por Rubens Jardim na série "As Mulheres Poetas" (São Paulo, 2016). É citada por Nely Novaes Coelho no Dicionário de Escritoras Brasileiras (São Paulo: Escrituras, 2002). Mantém o site literário www.estreladesa.com.br.

 

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