DOM

 

 

O calor parecia dilatar o contorno dos objetos, a própria consistência dos móveis, que pareciam crescidos sobre o desconforto que sentia — uma sensação esquisita de que estava fundido ao sofá, a pele grudada ao recosto recoberto de couro cru.

Naquela manhã se levantou muito cedo, buscando os braços dela sobre o tórax, como gostavam de dormir. Em vez do corpo de Almira, encontrara apenas um bilhete, seco, quase monossilábico: "te ligo". Ainda apalpou os lençóis, meio sonolento, meio atônito, custando a reconhecer o vazio que o corpo dela deixara. De certa forma, já esperava por alguma coisa mais ou menos assim, a amante andava arredia, preferindo as frases curtas, evitando o sexo com a discrição possível, mas deixava à mostra os sinais da atitude que estava prestes a tomar.

Pedro não conseguia se responder por que a namorada o abandonava — "cretina", pensou enquanto terminava de urinar no banheiro. Sempre atencioso, sempre solícito, sempre disposto a amá-la, para ser abandonado assim, quase sem vestígio — de repente, a cama vazia, o banheiro desabitado, a sala iluminada em excesso revelando a incongruência de uma relação que ele supunha perfeita, plácida, definitiva. Almira, para ele, era quase a cor do inexprimível.

Interrompeu a escovação dos dentes, mordeu as cerdas da escova, mirou-se no espelho com a barba por fazer — que fazer sem o cheiro dela, causando nele vontade de pintar? A exposição, como a faria gora? Abriu a torneira do chuveiro, mas em seguida a fechou, andou até a janela, espiou a copa das árvores de maneira automática, fixou a vista na montanha, subiu o olhar pedinte ao Redentor — Botafogo já acordara, buzinas irritadas, barulho de furadeira na construção de outro prédio magicamente espremido entre os terrenos do bairro; como por milagre uma nesga de terra esquecida pelo Império, pela República; operários que se comunicam aos gritos, pressa, agonia, vida em exercício. Balançou a cabeça com incredulidade, enquanto sentia o estômago se contrair e uma absurda sensação de fome. Atirou-se ao sofá, acendeu um cigarro e se afundou sombriamente; semanticamente desorganizado, enunciados que não se concatenavam enquanto pensava: ela fora embora, ele estava só e isso, por mais que não quisesse admitir, incomodava-o agora.

Como num reflexo, apoiou as mãos sobre as coxas no impulso para se levantar. Foi à geladeira — ketchup, queijo, tangerinas cresceram aos olhos de Pedro com suas linhas delineadas, volumes tridimensionais aumentados, como se apenas naquele instante pudesse perceber suas densidades ocupando o espaço da solidão que tragava. Uma mulher seria mesmo tão necessária para alinhava a existência dele? Pegou uma tangerina e voltou a se sentar encostado à parede alaranjada — Almira ardia no esôfago.

Não compreendia por que se entregara tanto a ela, sempre fora acostumado a romances, acostumado a deixar mulheres em fila à espera de um chamado e agora sucumbia à ausência de um cheiro, obcecava-se com a imagem dela – nunca imaginou que a emoção fosse traí-lo de forma tão triunfal. Sem Almira, deprimia-se. Bastava ver a desordem reinante na sala.

Procurou uma bebida forte, qualquer que fosse, apesar da sensação de enjoo por causa do estômago vazio, do gosto oxidado que a ressaca lhe deixava na boca. Em meio ao tumulto, os olhos de Pedro se fixaram no telefone, a palma da mão umedeceu ao tocar o aparelho azul turquesa, enquanto reprimia com dificuldade o impulso brutal de procurá-la, de beijar-lhe os pés, de lamber-lhe o pescoço e implorar que ficasse.

Engoliu a dose de uísque, apertou os lábios, engasgou-se. Atirou-se ao tapete tossindo, enrolou-se sobre si mesmo e chorou sentidamente até a tarde escurecer.

Não sabia em que errara, oferecera-se por completo àquela relação, mas Almira parecia manipular com vaidade os sentimentos dele. Na penúltima crise, passaram dias sem se falar, cada um recolhido a seus pontos de vista, até que ele cedeu , mandou flores, assumiu sozinho a culpa pelo rompimento, deixou cair uma lágrima do olho esquerdo esverdeado e ela o perdoou, não sem antes impor-lhe uma série de novas obrigações.

Conheceram-se sob a luz calma dos olhos de Maria Clara (sorriso distribuído com generosidade segundo o empenho de cada um dos atores durante o ensaio do espetáculo). Todos os dias, esperava Almira à saída do Tablado. No primeiro dia, foram passear no Jardim Botânico, como qualquer confesso casal de namorados -- cuidado extremo em gestos e palavras, mãos suadas, moléculas de clorofila pareciam disputar o ar com minúsculos átomos de água, o vento de junho esfriando o crepúsculo, desejo de aconchego e comunhão.

Gostava do sexo com ela. Passavam horas em carícias delicadas, reinventando zonas de prazer ainda mais intenso e, quando davam por si, a claridade já invadia o quarto; então recomeçavam, até estremecerem ambos entre os espasmos do gozo – momento que nunca conseguiu pintar.

Sem querer, ao passar pela tela inacabada sobre o cavalete num canto da sala pequena, viu espalhar-se pelo chão a tinta rubra que salpicou o sofá como a lhe anunciar que a sua dor não teria alívio. Tantas mulheres no mundo e ele ali ganindo como um filhote de animal abandonado no deserto. Sentiu de novo o estômago se contrair e um gosto amargo adormecer a língua. Tomou outro gole de uísque, engolindo o líquido com dificuldade, os olhos cerrados. Na cozinha, pensou que talvez um café ajudasse.

Mas desistiu, Pedro resolveu se entregar à prostração que o comprimia. Como entardecia, via-se a praia deserta, úmida por causa da chuva que se arrumava por detrás da montanha, por cima dos barcos fundeados na enseada. Encolheu-se sobre os joelhos e soluçou. Nada havia comido até àquela hora. Não imaginara que uma mulher franzina, de rosto comum e gestos triviais, pudesse maltratá-lo tanto — era um colecionador abatido.

Não viu a madrugada passar. Mas sentiu a aragem fria da manhã que entrava pela janela aberta. Ergueu-se com a cabeça pesada, percebeu a tela inacabada e lentamente recomeçou a limpar os pincéis com um solvente químico.

 

 

 

 

 

A CAMINHO DO TRABALHO

 

 

Limpava a gaiola dos canários com extremo cuidado: prendia os passarinhos em outra gaiola, retirava o depósito de água, depois o de alpiste — os gestos meticulosos, dosados, obsessivos, cuidavam para que nada caísse, ou a mulher logo o incomodava com imprecações inoportunas, entre fonemas estridentes, embora jurasse que não se esganiçava para irritá-lo. Felizmente, já se habituara àquela pequena faxina diária. A mulher também se acostumou com a algazarra dos passarinhos, pois jamais pretendera tirar do marido a alegria de participar das competições de gorjeios no Clube Náutico.

— A água, menino — pediu Moreira ao filho mais novo cujo nome esquecera de repente no vácuo criado pela concentração no que fazia — a merda é uma substância incompatível com a leveza de um passarinho, com os alexandrinos de Camões, com o lusco-fusco dos cartões de Natal, com a liberdade, igualdade e fraternidade dos revolucionários jacobinos — considerou ele, enquanto retirava o piso de madeira da gaiola.

O funcionário era dado a pequenas constatações analítico-dedutivas que, segundo ele próprio, aguçavam o senso crítico, essencial ao cultivo da inteligência, que se impunha fosse diário, para que esta não atrofiasse em face das mesquinharias do cotidiano. Aos quinze anos, lera A Poética, de Aristóteles, e cedo aprendeu a se refugiar, aos domingos, nas páginas de Virgílio, de Platão, de Machado. Por isso, entendia tão bem os canários, seres delicados que exigem tato e sensibilidade, dons que agradecia ter recebido do Criador. Se não fora pela dedicação de Moreira, não se teria hoje, na cidade, o intermunicipalmente famoso Festival do Canário de Ouro, cuja organização assumira com entusiasmo.

A mulher apareceu na porta que dava para o quintal, pôs a mão na cintura, apertou os lábios numa expressão azeda, olhou fixo para Moreira, que, rendendo-se à imposição da hora, resmungou um palavrão em meio tom e acelerou a limpeza das gaiolas onde apressadamente repôs os passarinhos.

— São onze e meia, Moreira — disse apenas isso e voltou para a cozinha.

Moreira respirou fundo, como quem se preparava para um sacrifício ritual entre os antigos maias, recebeu a toalha que Fátima lhe estendeu e entrou no banheiro com a alma contraída. Estava na hora de se arrumar para não entrar atrasado na repartição. Há dezessete anos, àquela dada hora, enxaguava o aborrecimento com sabonete Phebo e demorava-se ainda mais quando tinha que tirar a barba de dois em dois dias, se não quisesse que o Carlos Fernando o examinasse com seu característico olhar de recriminação superior. Moreira não suportava esse colega, embora tivesse que tolerá-lo a tarde inteira na assessoria submissa que ambos prestavam ao ministro.

A antipatia era tamanha que na rua não se falavam, podiam passar um rente ao outro pelos shoppings da cidade, mas empinavam o pescoço e dirigiam a vista para longe, para deixar claro que o gesto era proposital. Graças a Deus, não eram só eles a trabalhar na mesma sala, ou a atmosfera haveria de ser insustentável. Sexta-feira mesmo, encontraram-se fora da repartição, e não se cumprimentaram, pareciam ambos prestes a explodir em gestos bruscos, endurecidos pela fisionomia carrancuda que, tanto quanto possível, não amenizavam no trato interpessoal. O que é que a subsistência não fazia alguém aguentar! Tivera um fim-de-semana todo entregue aos canários, mas agora se impunha a segunda-feira, com toda a sua monumental e ressacada monotonia.

Fátima preparou-lhe um guisado de língua de boi com farofa de couve — sublime compensação pelo expediente que começava no início da tarde. Para o corpo sólido de Moreira, o almoço era um oásis a prometer delícias entre o instante de apertar o nó da gravata e o de chegar ao serviço de barriga cheia, agoniado sob o calor da canícula, cujo poder entorpecente e inelutável tanto o impressionou na cena inicial de O Mulato. Nada como o Realismo-naturalismo para desvelar o condicionamento do homem ao meio em que vive, à maldade a que está exposto sem remissão. Pois contra esse vapor sulfúreo, que mais parece escapar das bocas que jamais merecem beijos, mas escarros, não adiantava sequer o ar condicionado do carro importado que financiara em quarenta e oito vezes — para não ficar por baixo do Carlos Fernando.

Dirigindo, lembrou-se da animosidade entre Caim e Abel, até concluir que o vizinho, depois de algum irmão de sangue, é o herdeiro mais imediato do incômodo pelo sucesso do outro. No domingo pela manhã, enquanto lustrava a pintura do carro luxuoso, com suas reverberações azul-metálicas, sentiu-se repentinamente trespassado pelo olhar de Isabel e percebeu, num relance, quando ela cutucou o marido macérrimo com um movimento oclusivo dos lábios. Opa! O sinal fechou. Engatou uma ré apressada, mas não conseguiu recuar a tempo de fugir da multa — "Droga! Vizinhos — para o que servem!". Esmurrou o volante, forçou o nó da gravata com o dedo indicador em busca de ar e desejou fumar um cigarro que não acendeu. Eis que toca o celular.

Fátima avisava-o de que esquecera a minuta do parecer sobre a licitação fraudulenta de computadores em cima do console do corredor. Num átimo, tentou se lembrar do que havia escrito — delito incurso no Art. 9º da Lei 3412/95? Não tinha certeza. A boca encheu-se com o gosto engordurado da língua que almoçara, azinhavrado pelas enzimas liberadas aos borbotões no movimento de refluxo para o meio do esôfago, teve dificuldade em deglutir de novo aquela substância ruminada, mas não teve coragem de sujar o estofo do carro com seu cuspe azedo. Não era possível. Não podia se atrasar. Imaginou-se diante do relógio de ponto com as mãos suadas pressionando o crachá raivosamente, o fariseu que competia com ele jamais se atrasava.

Pisou forte no acelerador, mas foi difícil engatar a marcha para reduzir a velocidade na descida da alça do viaduto, refazendo o caminho para casa. Aumentou o som do CD com um gesto brusco, socou repetidas vezes o banco do carona, olhou pelo retrovisor o movimento do trânsito e tentou uma ultrapassagem, mas o carro da frente não o deixou passar — palavrão pronunciado com todo o ar dos pulmões. Resignou-se, a essas alturas já tinha perdido a corrida da pontualidade funcional. Às vezes, perguntava-se se não teria nascido para outra coisa e se mantinha teimosamente na atividade errada. Talvez pudesse ter sido um atleta de sucesso, um profissional liberal endinheirado, um criador de canário fulltime, mas nunca tivera coragem de largar o Ministério. Ademais, dobrando a curva dos quarenta e cinco anos, não adiantavam mais de nada tais conjecturas, pois perdera o ânimo para começar o que quer que fosse.

Num relance, viu desfilarem em sua lembrança os compromissos da semana: pagar as contas do mês, levar o carro novo para revisão na concessionária, não faltar ao aniversário da mãe de Fátima — suprema tortura de que não podia escapar. Família, família! Era um mal necessário, era o inferno de Dante, era um porto seguro, tempestade violenta, fruta madura, laranja podre... o apito do guarda  invadiu-lhe o ouvido com estridência ainda mais aguda porque sentiu que, ao desviar o pensamento, parou meio carro sobre a faixa de pedestre — era demais, mesmo para uma segunda-feira com gosto de suco de moedas velhas. Teria de espremer ainda mais o orçamento para agora meter nele uma multa injusta ou, no mínimo, desnecessária, sem a qual podia muito bem ter ficado, não tivesse se atrasado só pelo prazer glutão de repetir o prato do almoço, na contramão de todas as recomendações do médico.

De vez em quando, sentia palpitações e calafrios, geralmente aos domingos, após o último programa de televisão e da última cerveja. Era o que pagava por um dia especial, em que tentava negar como pudesse o tédio da semana inteira. Não, exagerava. A vida não era assim tão insossa, afinal tinha os canários, as crianças, o décimo terceiro salário, o Flamengo e, se Deus quisesse, ainda seria agraciado com aquela gratificação por que tanto lutava, por que tanto se matava, por que tanto se consumia — até agora inutilmente.

Acelerou o carro e aumentou a intensidade do ar condicionado, não era hora para economizar gasolina, já que o orçamento acabara mesmo de estourar! Ah, se pudesse ter uma vida de personagem de romance! Sem a tragicidade, é claro! — só com os prazeres de uma existência sutil, pré-determinada e, nessa perspectiva, calma. Por que não nascera um primo Basílio, por exemplo, em vez de funcionário público? Por que Fátima, com seu português truncado, e não Luísa, com a sua sensualidade à flor da pele? De mais nada adiantava reclamar, procurasse viver suavemente com a família e já seria lucro.

Folgou o nó da gravata para tolerar novo engarrafamento que acabava de se formar com o fechamento do sinal, abriu o vidro do carro, desligou o ar condicionado e o rádio e, enfim, acendeu um cigarro. Em meio a tamanho contratempo, pelo menos esse prazer. Pôs o cotovelo para fora e relaxou um pouco, quando, de repente, um jato de água com sabão recolhido por um rodo de borracha passou ocupando todo o olhar dele.

— Para, para, para!

— Qual é, tio, tá nervoso?

Ainda bem que o sinal abriu e Moreira preferiu dar partida no carro antes que a irritação o tomasse de vez. Seriam as coisas diferentes se Fátima também trabalhasse? Às vezes, pensava que sim — somariam as remunerações, por sorte, engordadas por funções comissionadas — às vezes, pensava o contrário: era bom chegar em casa e encontrá-la tomando conta daquele universo doméstico, em que, na maior parte do tempo, sentia-se seguro e à vontade. Tomara que a minuta do parecer estivesse mesmo em cima do console. Mas ainda teria que consultar a Resolução cujo texto não sabia ao certo onde guardara. Hoje não escaparia de um atraso daqueles, dos que fazem o colega simpático levantar os olhos policiais para consultar o relógio de soslaio, quando se entra na sala.

Finalmente, dobrou à direita para entrar na rua em que morava. Já estava esboçando um sorriso leve de satisfação, quando se sentiu observado trespassadamente, reduzido a uma dimensão vitrificada de existência pela obstinação com que a Isabel e o marido, saindo de casa àquela mesma hora, assestavam nele e no carro comprido que exibia à luz intensa do começo da tarde os olhos gelados e duros de vizinhos invejosos. Nova golfada efervesceu no estômago de Moreira, a custo reprimida com um arroto azedo. Procurou de imediato o controle remoto do portão automático, de modo que se sentisse longe o mais rápido possível da bisbilhotice daqueles dois.

E assim nas calhas de roda / gira, a entreter a razão / este comboio de cordas / que se chama coração — o poeta salvou-o de uma vertigem, ao resgatar pela linguagem a azia que parecia pretender detê-lo, impedi-lo de voltar à repartição ante a visão paradisíaca do terraço de casa — "coragem, Moreira", repetiu para si mesmo como uma jaculatória. Mais uma vez, naquela segunda-feira, não conseguira começar a dieta indicada pelo médico — culpa de Fátima, que adorava exibir-se nos temperos, por absoluta falta de preocupações metafísicas consistentes (isso, aliás, era bom pra ela, Moreira reconhecia, adiantara a ele alguma coisa ler tantos livros e estar ali agora com a camisa úmida de suor, a boca amarga, ganhando um salário abaixo do que seu preparo merecia?).

A mulher, ao vê-lo, evitou dizer-lhe o que quer que fosse, mas se sensibilizou com a agitação do marido, ainda mais aperreado com o peso da barriga que já começava a saltar sobre o cinto.

— Quer um chá de boldo? — ele se voltou para ela comprimindo os lábios, enquanto controlava o incômodo que aquela ideia sugeria.

— Não acredito que ainda queira me dar uma gororoba amarga pra engolir. — e saiu apressando o passo na direção do corredor, quando viu a minuta do parecer sobre o console. Apanhou o papel com um gesto brusco de satisfação e raiva. Olhou para a mulher com ar cansado.

— Não consigo chegar na hora. Ela se aproximou dele, com carinho tomou-lhe uma das mãos.

— Você já está mesmo atrasado. Dá uma olhadinha nos teus canários, dá. Ele distendeu a fisionomia, enxugou o rosto com o lenço, sorriu para ela e a beijou de leve na testa.

— Valeu.

Mas, em vez de ir ao quintal, Moreira subiu a escada que leva à pequena biblioteca, improvisada no quarto onde Marcos, o filho mais velho, dormia antes de morrer, há dois anos. Já que não podiam derrubar a casa, trocaram a finalidade do cômodo e Moreira passou a guardar ali os seus papéis da repartição, estantes com obras-primas da literatura universal e alguns volumes de filosofia.

Precisava encontrar a lei que citara de memória no rascunho do parecer do ministro, já eram quase duas horas. Por que não fizera essa consulta na véspera, no intervalo do futebol? Abriu escarcelas, levantou papéis empilhados, abriu gavetas, e nada.

— Fátima!

Ela subiu apressada, disposta a atendê-lo. Retirou livros das prateleiras, abriu outras pastas, tateou nervosamente a bagunça da escrivaninha. De repente, entre notas promissórias e antigos talonários de cheques, deparou com o sorriso meigo e ensolarado de Marcos, que cravava nela os olhos cheios de vivacidade, ao carregar com orgulho uma gaiola de passarinho. Moreira, que procurava a lei em outro móvel, voltou-se surpreso quando a mulher de súbito soluçou. A fotografia o transtornou também, combinaram que as fotos do filho morto seriam guardadas pela mãe dele pelo menos pelos próximos dois anos. Moreira se descontrolou.

— Passa o dia todo em casa e ainda faz cagada.

— Cagado é teu parecer malfeito. E irrompeu em soluços ainda mais altos, enquanto Moreira, também chorando, descia a escada sem se voltar para trás (e sem o texto da lei que procurara).

Entrou no carro limpando o nariz ruidosamente e logo procurou acender um cigarro. Era uma merda. Tanto que se consumiram por aquela piscina bem decorada, bem projetada, bem cuidada, bem exibida para os parentes em piores condições econômicas, para os vizinhos que já tinham mandado construir a deles, porém muito menor e mais estreita — para quê? Para o Marquinhos se afogar nela, num dia de gorduras assadas e farofa de linguiça, entre os goles de cerveja gelada do pai. Moreira ligou o carro e saiu sem se preocupar em fechar o portão. Num gesto impulsivo amarrotou o rascunho do parecer que havia feito, melhor não tivesse vindo procurá-lo, estaria livre dessas lembranças agora.

Após o acidente, pensou em mudar-se daquele conjunto habitacional (onde pretendia erguer uma casa digna de diretor-geral, como, aliás, parecia ser a intenção da maior parte dos vizinhos — pagou parcelas tão suadas ao arquiteto pelo projeto bacana!), pensou em procurar um apartamento noutro lugar, quem sabe, encontrasse um em condomínio de luxo também financiado em prestações módicas, mas o luto foi se acalmando e ele protelando a ideia. Pensou nas vantagens de poder ampliar a casa aos poucos, como faziam todos os colegas cheios de pose da repartição, como fizeram os vizinhos da esquerda, que, de crediário em crediário, ergueram uma casa envidraçada que, sinceramente, mexia com ele e com Fátima. E ela, meu Santo Deus, como teria ficado? Na certa, ainda chorava e passaria a tarde prostrada na cama. O sinal fechou. Moreira percebeu que o punho da camisa estava encatarrado e sujo, diversas vezes enxugara a testa suada enquanto fumava. Podia apostar como, na reunião com o ministro, o Carlos Fernando estaria lá, com seu riso amarelo fácil de hiena talentosa, um terno de marca famosa e mais perfumado que a colega de gabinete em dia de confraternização natalina. Ainda se a reunião fosse apenas entre os dois e o ministro até que o efeito estufa poderia ser tolerado como em tantas outras vezes, a tão duras penas, mas tinha certeza de que a Lourdes Mousinho estaria presente — de novo passou sobre a testa o punho da camisa.

Até o Lourdes daquela moça ela pretendia especial, exigindo a grafia afrancesada. Combinavam com ela esses detalhes supostamente refinados com que se esforçava em camuflar a origem pobre, os anos de ralação da faculdade, as dificuldades da família oriunda do interior. Agora morava em prédio de luxo, tinha cargo de chefia, comprazia-se em declamar a lista de conhecidos nas colunas sociais, no firme propósito de fomentar para si uma autoimagem privilegiada. Moreira bem que imaginava à custa de quantas prestações pendentes, mas era obrigado a ouvir com biliosa paciência as pabulagens da colega — por que não nascera ele herdeiro de rendas? Não conseguia metabolizar a letargia existencial de certos bilionários americanos que se arriscavam a perder o nariz no Everest para driblar o tédio dos dias endinheirados — não sabiam que parte da felicidade humana era não ter que negociar espaço numa sala com uma Lourdes Mousinho, capciosa e afetada.

Conseguiu estacionar de volta à repartição meia hora depois, após duas voltas no pátio arborizado e lotado. Essa circulação, pelo menos, trouxe a ele um adicional de satisfação naquela tarde atribulada, porque pôde verificar que seu carro importado certamente vinha incomodando os colegas. Sentiu isso concretamente, pois nenhum o cumprimentou pela aquisição recente, apenas lançavam olhares compridos à manobra que fazia, de propósito, vagarosamente à hora da saída. Procurou o crachá na pasta de couro lustroso, que completava a aura elegante, e foi subindo os degraus. Ao passar pela portaria, sentiu as costas queimando com o olhar do segurança, que testemunhava sorridente seus frequentes atrasos. Num gesto defensivo, apalpou o antiácido que trazia no bolso do paletó.

 

 

 

 

[imagens ©till rabus]

 

 

 


 

 

 

 

Lenita Estrela de Sá nasceu em São Luís do Maranhão. Graduada em Letras e Direito, tem 13 livros publicados (alguns, de forma independente e outros, como parte de premiações literárias). Seu último livro, um volume de poesia intitulado Antídoto (7Letras), conta com a apresentação do poeta Salgado Maranhão. Tem poemas publicados nas revistas literárias "O Casulo" (São Paulo: Patuá, 2017) e "Gente de Palavra" (Rio Grande do Sul, 2017); e conto, na revista portuguesa "InComunidade" (2017, n. 62). Incluída por Rubens Jardim na série "As Mulheres Poetas" (São Paulo, 2016). É citada por Nely Novaes Coelho no Dicionário de Escritoras Brasileiras (São Paulo: Escrituras, 2002). Mantém o site literário www.estreladesa.com.br.

 

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